Muata Sebastião*│Sou adepto da experiência em sala de aulas, pertenço a esse lugar chamado escola, mesmo não compactuando com a forma como ela é pensada e encarada pelos seus idealizadores, assim como os estudantes que participam do processo educativo. Ambos não pensam a escola como um espaço ideal e necessário da consciência crítica. Pensando desta forma, me vem em mente o pensamento atribuído ao filósofo alemão, Immanuel Kant, ao dizer que, é por esse motivo que se mandam as crianças à escola; não tanto para que aprendam alguma coisa, mas para que se habituem a estar calmas e sentadas e a cumprir escrupulosamente o que se lhes ordena, de modo que, depois, não pensem mesmo que têm de por em prática as suas ideias.
Falar sobre o papel da escola na formação da consciência crítica é um desafio reflexivo que se impõe, sobretudo, numa época em que é constante a banalização de valores e que a educação, enquanto instrumento de construção intelectual, não foi poupada. Trata-se de um desafio que, além de envolver tempo, é importante que se conheça o lugar a partir do qual a análise é feita. Cada escola representa um tipo de sociedade e forma os seus membros em função da concepção de sujeito que pretende construir. Logo, é necessário repensar e recontextualizar uma educação que atenda as demandas da nossa sociedade.
O tema da nossa reflexão é desafiador, mas para tornar fácil a compreensão achamos conveniente reflecti-lo ao nível do ensino médio, 2º ciclo, uma vez que é nele em que temos estado a desenvolver a nossa docência, já há algum tempo. Isso não significa dizer que o assunto não possa ser aplicado a outros níveis de ensino.
Pensar a educação requer o apoderamento de diversos recursos interdisciplinares, tomando as contribuições históricas, pedagógicas, psicológicas e não só. Mas, é na análise social que podemos enxergar a multiplicidade do espaço vivencial do ensino e aprendizagem que se manifestam no seio familiar, nas instituições religiosas, entre outros espaços que reúnem características pedagógicas. Todavia, é na educação escolar que se estabelece a responsabilidade de proporcionar o ensino formal, por meio de actividades que permitam aos alunos desenvolverem habilidades, dentre as quais o senso crítico.
Embora a escola possua essa responsabilidade, não poucas vezes deparámo-nos com situações em que ela é transformada num espaço de assimilação forçada de ideologias. Não entendida — tal como Tracy defendia na sua obra “Elementos da Ideologia” — como a ciência das ideias, mas sim a partir da percepção de Marx e Engels, de que a ideologia aparece sempre como instrumento de dominação da classe burguesa, que dela se utiliza para manter a “ordem estabelecida” e impedir a mudança social”. Como se pode notar, é clara a dominação e a inversão dos valores da escola o que compromete em grande medida, não somente o processo formativo, como também retira toda e qualquer possibilidade dos estudantes serem eles mesmos.
Existem algumas práticas que tem estado a comprometer o sucesso da escola no nosso contexto e, uma destas é a presença partidária, sobretudo na elite dos gestores escolares que, além das suas funções, fazem o papel de fiscais, controlando e inibindo algumas práticas, por mais positivas que sejam. O outro factor comprometedor é a concepção neoliberal da educação, que sendo um sistema de doutrina que se define como modo de governo de um estado mínimo, da livre iniciativa privada, dos maiores resultados em menores custos, do lucro empresarial e pessoal, do individualismo e da redução de distribuição de rendas para camadas sociais vulneráveis, utilizado no contexto da educação, tende a objectivá-lo num mecanismo de formação de dinheiro. Este modo de encarar o papel da escola, segundo entende Mbembe (2014,p.13), caracteriza-se também pela produção da indiferença, da codificação paranóica da vida social em normas, categorias e números, assim como por diversas operações de abstracção que pretendem racionalizar o mundo a partir de ideologias empresariais.
Por esta razão, há toda uma necessidade de se reflectir a formação da consciência crítica na escola, sobretudo, entre os estudantes do ensino médio, partindo sempre do princípio de que há uma estreita relação entre a escola e a sociedade e esta relação traduz também o tipo de interesses que a sociedade persegue, que são interesses de várias ordens, tais como: económicas, políticas, sociais e outros factores que traduzem na sociedade o tipo de escola que se tem ou se quer ter.
Desenvolver a crítica neste nível de ensino significa dar possibilidades para que o estudante consiga olhar além do convencional, consiga tomar distância do senso comum e tome parte, enquanto cidadão nos negócios da pólis. Para tal, é preciso que a educação tenha a qualidade necessária para permitir aos agentes (professores, alunos e a comunidade) as vias da participação cidadã.
“o pensamento crítico não provém, portanto, da simples discussão, ou da confrontação de posições contrárias, ou da doação de soluções pelo professor. A crítica pode ser avaliada pela capacidade dos alunos em formular questões e objecções de maneira organizada, estruturada rigorosa.”
Não poucas vezes vimos pessoas a reclamarem sobre a má qualidade da educação, não só porque os alunos estão constantemente a fazer cábulas ou têm deficiência de ler e interpretar textos, mas também, porque poucos não têm dificuldades de exercitar o raciocínio. Quando estas reclamações surgem, é claro que se está a expor uma situação política pois, a educação, além de ser uma questão de cidadania, é obrigação do Estado garantir qualidade, criando políticas educativas que tornam possível não só o direito das pessoas frequentar uma escola, mas, sobretudo o direito de serem livres, pois, é para isso que as escolas existem, e que pela crítica os estudantes possam ter noção da sua autonomia. Essa qualidade passa por proporcionar condições aos estudantes de participarem da vida social e política do país.
Nesta perspectiva, a escola constitui-se num espaço favorável para aprendizados críticos e autónomos pois, é por via disso que os estudantes, além de saber ler e escrever, engajam-se de forma activa nas questões das suas comunidades, lutando pela justiça social e na defesa dos seus direitos como é o caso da educação.
A nossa escola é ainda carente de formação autêntica, aquela que, além de possibilitar a auto-estima dos alunos, dá-lhes saberes que os permita lutar pelos seus direitos. E isso é em função do que mencionamos anteriormente. Daí que, ao reflectir na escola como um lugar em que se desenvolve a crítica, pretendemos que a acção pedagógica seja ressignificada pois, somente isso permitirá que a escola observe mudanças positivas melhorando o clima de liberdade, participação, responsabilidade e que por via destes elementos os estudantes consigam dar o salto de qualidade não somente em relação ao saber sistemático, mas pela qualidade do raciocínio trazendo para o espaço público e, com alguma qualidade, os problemas das comunidades e da escola.
É na escola que deve ter início o exercício da cidadania pois, é lá onde se formam as bases para a actuação futura da sociedade. O aluno precisa aprender a ser actuante, pensando de forma rigorosa porque é isso que significa aprendizagem crítica.
A cidadania não está fora da pessoa, ela começa na relação que a pessoa faz consigo mesma e depois vai se expandindo para o outro e para a sociedade como um todo. Desta relação entra também em jogo o papel da educação familiar pois, é lá onde tudo começa e a escola é apenas uma sequência, se bem que em alguns casos a escola precisa fazer também o papel da família. Todo este processo, tanto familiar quanto escolar, devem concorrer para a formação da consciência crítica do indivíduo, disso depende a qualidade da sua participação em questões sobre a sociedade em que vive. Neste conjunto de obrigações a escola tem a maior responsabilidade que de acordo com Lima (2002, p.17) “a educação escolar para a cidadania só é possível através de práticas educativas democráticas, desta forma, promove valores, organiza e regula um contexto social em que se socializa e se é socializado”
Os alunos precisam conhecer, para aprender a gostar, precisam entender os significados e as suas respectivas importâncias para praticar. A cidadania aprende-se na prática e se a escola favorece a aprendizagem da cidadania, a primeira coisa a fazer, é tornar possível entre os alunos, o exercício da cidadania.
As sociedades projectam o tipo de escola e de cidadãos que querem, mas para que este desiderato tenha os efeitos positivos é preciso envolver todos aqueles que fazem parte do quotidiano escolar, isso permite que as decisões sejam tomadas de forma democrática, pois, só se consegue o bem comum e avançar nos propósitos, quando todos estão imbuídos dos mesmos objectivos.
As decisões devem ser tomadas de forma participativa e democrática. Isso irá permitir com que cada minuto do aluno na escola seja para direccioná-lo para a formação de uma práxis de cidadão crítico, responsável e transformador. Isso permite também devolver à escola a sua real missão social, olhando para os pontos nevrálgicos que precisam ser atacados e corrigidos, seja no próprio processo de ensino e aprendizagem, como na forma de ensinar, de aprender e avaliar. A intenção é ir além do conhecimento intelectual que proporciona ao aluno ferramentas para a actuação profissional, se quer que este seja uma pessoa feliz, com boa auto-estima, considerado pela sua sensibilidade, solidariedade e respeito ao seu semelhante, que seja um ser humano convicto da sua responsabilidade perante a sociedade. É preciso garantir habilidade crítica, pois, somente isso permite que o cidadão participe de forma consciente nas questões que lhe dizem respeito enquanto cidadão.
O primeiro passo para a formação do cidadão participativo, consciente de seu papel na sociedade é fazê-lo um cidadão cívico, que respeita a sua pátria e seja respeitado, que entenda o verdadeiro sentido de ser cidadão, ultrapassando a lógica que olha na escola apenas como um espaço de mera formalidade retirando o carácter social que sempre teve e a importância que tem para o desenvolvimento do homem por meio de uma educação que toma como base o contexto social, pois, a educação não pode apenas ser compreendida como um corpo de saberes dispersos, mas enquanto um processo que compreende diversas dimensões de saberes que concorram para o crescimento do estudante, possibilitando-o a atingir a inteligibilidade e por esta via, o aluno por si só, consiga construir por meio da crítica, uma “linguagem de segurança”.
Pela crítica, o estudante consegue reverter situações alargando o grau do seu entendimento, “pois onde os ingénuos só vêem factos diversos, acontecimentos amontoados, o aluno que desenvolve a crítica estará apto para discernir sobre o sentido do que vê e ouve, denunciando a ingenuidade do falso cientista” (Favaretto, 1993, p. 98), ou a ideologia de quem vê na escola o espaço ideal para alienar.
As escolas precisam educar para a inteligibilidade que, para Favaretto, “significa submeter os interesses dos alunos a um tratamento que lhes permite descobrir os encadeamentos a lei, a estrutura que está (ou não está) nos discursos vazios (geralmente do professor), por simulacros de reflexões, ou então, se tornem apenas um lugar para se discutir, criticar, etc. Significa ainda reafirmar que a crítica não vem antes das convicções que a tornam possível”.
Para tal, os professores precisam entender que o pensamento crítico na escola é fundamental para o desenvolvimento dos alunos pois que, ele permite que os mesmos consigam tomar distância do senso comum, do convencional e do supérfluo e, pois, que, “o pensamento crítico não provém, portanto, da simples discussão, ou da confrontação de posições contrárias, ou da doação de soluções pelo professor. A crítica pode ser avaliada pela capacidade dos alunos em formular questões e objecções de maneira organizada, estruturada rigorosa.”
Isto significa criar condições para permitir que os alunos consigam deslocar-se e criarem as suas próprias posições, sem interferência do professor.
Como notamos, não podemos olhar a escola como um espaço alheio à realidade social e muito menos projectá-lo longe do contexto dos alunos e professores. É preciso que estes dois elementos primordiais do processo de ensino e aprendizagem possam ser considerados.
A educação, sobretudo a escolar, implica sempre, para o aluno, um confronto com o desconhecido que nalguns momentos pode causar medo e noutros curiosidade daí é que, para Favaretto (1993, p. 1001) “o primado do ensino na prática institucional da escola implica que a aprendizagem seja compulsória, exactamente para validar a identidade da instituição, o espaço do homogéneo”. Esta realidade permite que o desenvolvimento do saber crítico permita ao aluno adquirir habilidades com o objectivo de usá-los com o intuito de dilatar as suas percepções, questionando factos e produzindo resultados em prol do bem comum.
Neste âmbito, a escola, enquanto formadora de consciência, precisa ser exemplo, lugar onde o saber é transmitido de forma democrática, respeitando as liberdades dos intervenientes do processo. Isto equivale à adopção de práticas não somente reflexivas, mas do puro exercício democrático em que o indivíduo se compreende como tal.
Para que a nossa escola seja, de facto, o modelo e o reflexo de uma sociedade que se compromete com a verdade, o respeito e a ética precisamos tornar presente o ideal democrático na escola. Assim sendo, a escola precisa de ocupar somente o lugar de destaque, não para transferir saberes, mas para produzir conhecimentos e desenvolver as habilidades dos estudantes e sem nos esquecermos de que o sucesso da escola depende muito do tipo de famílias e do tipo de políticas educativas gizadas. E num tempo em que tudo muda rapidamente, é preciso estarmos atentos porque as novas dinâmicas vão não somente tomando conta das nossas acções enquanto educadores, mas também influenciando as nossas decisões ou como gestores, professores, encarregados e estudantes. Já não há mais um único jeito de fazer educação, precisamos estar atentos e pensar rápido e de forma reflexiva.
*Filósofo e professor.