

Manuel Ngangula* | Resistir ou desobedecer constituem a mola impulsionadora das grandes transformações ocorridas ao longo das diversas épocas. É o que diz em nota de apresentação, o jurista Serafim Gonçalves, na sua dissertação de mestrado com o tema: “O Direito de resistência: Legitimidade para a desobediência civil ─ O caso Português ─ na qual questiona se esses grupos sociais poderão justificar e legitimar as suas acções através dos institutos da desobediência civil e da resistência, colocando-se a questão se serão eficazes ou válidos no aparecimento e na efectividade dos novos direitos fundamentais, querendo com isso referir-se ao artigo 21.º da Constituição Portuguesa que consagra o direito de resistência.
O direito de resistir, segundo Maria Diniz, é o direito reconhecido aos cidadãos, em certas condições, de recusa à obediência e oposição às normas injustas, à opressão e à revolução, quando esta ordem que o poder pretende impor for falsa, divorciada do conceito ou ideia do direito imperante na comunidade (Dicionário Jurídico, 2005).
A característica principal do direito de resistência e de desobediência civil, quase sempre associadas, é a sua utilização como ultima ratio pelos cidadãos para fazerem valer os seus direitos, enquanto instrumento jurídico-legal, visando a modificação de uma situação urgente de abuso de poder, opressão e injustiça.
É um direito legítimo de cidadania com uma valoração omissa e indeterminada, por a sua previsão ou consagração constitucional não ser de considerar, por essa razão, como uma legitimação efectiva do direito de resistir ou desobedecer às más políticas do Estado.
Perscrutando sobre o Direito Internacional dos Direitos Humanos, nada expresso consta sobre o direito de resistência quer na declaração Universal dos Direitos Humanos, quer no Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos ou na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, pois não fazem referência explícita sobre o direito de resistência, devendo, em nosso entender, tal inferência retirar-se da interpretação das normas relativas ao direito que cada povo tem de autodeterminação e luta contra o opressor.
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos prescreve no seu artigo 20.º, n.º 1 que “Todo o povo tem direito à existência. Todo o povo tem direito imprescritível e inalienável à autodeterminação. Ele determina livremente o seu estatuto político e assegura o seu desenvolvimento económico e social segundo a via que livremente escolheu”. O n.º 2 refere que “Os povos (…) oprimidos têm o direito de se libertar do seu estado de denominação, recorrendo a todos os meios reconhecidos pela comunidade internacional”.
Esta norma dirige-se aos povos em geral, a ideia central consta na Carta das Nações Unidas (art. 1.º, n.º 2). É o tal direito à autodeterminação dos povos e à escolha livre do estatuto político. A maioria dos estados escolheu, como estatuto político, o Estado de Direito Democrático, onde se incluem os Estados Lusófonos, ou seja, de expressão portuguesa, sendo que o facto de serem Estados de Direito (no texto constitucional) radicam a ideia do respeito à dignidade da pessoa humana como núcleo central dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos que o Estado deve não só consagrar como efectivar a sua realização.
Os países de língua oficial portuguesa, quanto à consagração do direito de resistência nas suas constituições, apesar de serem Estados-parte de vários instrumentos sobre os direitos humanos, quer a nível universal (ONU) e nos planos regionais, segundo a sua localização geográfica, não reconheceram, todos, o instituto do direito de resistência nas suas constituições, e as opções políticas estiveram na base destas escolhas.
Assim, Angola, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe não consagram nas suas Constituições o direito de resistência. No caso de Angola, mesmo que se quisesse fazer uma interpretação de harmonia com o direito internacional, por força do artigo 26.º, n.º 2 da Constituição da República de Angola, que prescreve que “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos e os Tratados internacionais sobre a matéria, ratificados pela República de Angola”, não chegaríamos a esse desiderato.
A Constituição Portuguesa consagra no seu artigo 21.º (direito de resistência) que todos têm direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade.
A Constituição Federal do Brasil consagra no seu artigo 5.º que «todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I (…), II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.», sendo essa norma susceptível a diversas interpretações…
A Constituição da República de Moçambique refere no seu art. 80.º que o cidadão tem direito a não acatar ordens ilegais ou que ofendam os seus direitos, liberdades e garantias.
A Constituição da República Democrática de Timor-Leste consagra no seu artigo 28.º (direito de resistência e legítima defesa), n.º 1, que «todos os cidadãos têm o direito de não acatar e de resistir às ordens ilegais ou que ofendam os seus direitos, liberdades e garantias fundamentais.»
A Constituição de Cabo Verde consagra no art. 19.º (direito de resistência) que é reconhecido a todos o direito de não obedecer a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão ilícita, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.
Todas estas normas referentes à consagração do direito de resistência têm a mesma matriz, a da Constituição Portuguesa, com excepção da brasileira.
Apesar do seu elevado grau de indeterminação, que não permite a sua efectivação no plano prático, estas normas são de aplicação directa nos ordenamentos jurídicos onde se mostram consagradas.
*Jurista e advogado.








A análise é muito pertinente, sobretudo quando observamos a realidade angolana. Embora Angola seja parte de vários instrumentos internacionais de direitos humanos, a verdade é que a Constituição não consagra expressamente o direito de resistência, ao contrário de outros países lusófonos. Mesmo com o artigo 26.º a exigir que os direitos fundamentais sejam interpretados à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Carta Africana, isso ainda não é suficiente para reconhecer formalmente esse direito no nosso ordenamento.
Este cenário mostra que, em Angola, a proteção do cidadão contra abusos de poder depende mais das vias institucionais existentes do que de um mecanismo constitucional explícito de resistência ou desobediência civil. A discussão é, por isso, extremamente relevante, pois chama atenção para a importância de fortalecer o Estado de Direito, garantir maior segurança jurídica e assegurar que os direitos, liberdades e garantias sejam realmente protegidos e exercidos na prática.