Crisóstomo Ñgala*│Cedo ou tarde, o desconfinamento chega. Enquanto alguns países traçam estratégias de retorno à normalidade, outros estão no pico do caos. Adicionado a isso está a saturação de narrativas. Abundam previsões de gurus e especialistas dos que querem resolver velhos problemas, uns defendendo a urgência do retorno à normalidade, sendo que o estado de excepção não pode ser a regra dos novos tempos e o demorado confinamento pode resultar em perdas piores; outros vaticinam um permanente Estado de Emergência, porque o retorno à normalidade seria a solução mais absurda, visto que o problema nasceu da normalidade. Assim por diante!
O vírus foi politizado e os meios de comunicação de massa, transformados em veículos de um teatro de teses. Teses miraculosas, distópicas, selvagens, técnicas, todas com o intuito de propor um remédio social para a doença social dos tempos actuais. Sim, doença social porque o vírus é apenas uma estrutura celular infecciosa e que tem um tempo de vida muito curto. Através de pessoas negacionistas, céticas e superdotadas da douta ignorância e do analfabetismo funcional, tem sido difícil conter a propagação do Sars-Covid-2 (Síndrome Respiratória Aguda Grave do Coronavírus 2). Todos nós somos potenciais portadores do vírus, ele só vive dentro das pessoas e é transmitido através do que sai pela boca. Oxalá a boca de alguns políticos e fazedores de opinião permanecesse fechada e calada.
Entre a complacência e o pânico, é oportuno desenvolvemos a coragem de nos enxergarmos como resilientes, em vez de nos definirmos a partir de vulnerabilidades psicologizadas e em narrativas de culpas. ‘Quando um mal nos atinge, segundo Rubem Fonseca, podemos superá-lo, quer suprimindo sua causa, quer modificando o efeito que produz em nossa sensibilidade: por meio da conversão do mal num bem, cujo benefício talvez só mais tarde se revelará. Muitos contentam-se com o normal da vida que levavam até então e procuram reestabelecê-lo, esperando que seja restaurada e reconstruída toda ordem social, pois a sociedade é uma construção.
É verdade que enquanto alguns reflectem, outros executam. E em democracias, o Executivo é eleito para este fim. Enquanto filósofo, conforta-me o que G. K Chesterton diz em “O que há de errado com o mundo”, de que ‘quando há um problema, precisamos de pessoas práticas. Porém, quando as coisas vão muito mal, precisamos de um teórico, pois uma pessoa prática é alguém acostumada à mera prática quotidiana, à maneira como as coisas funcionam normalmente’. A questão aqui não é apenas a de retomar, abandonar, transformar a normalidade ou mudar de paradigmas. É muito mais, pressupõe a adoção de verdades salutares, benéficas, calmantes e verdades não-míticas e não-místicas que devem colocar em questão a ideia de humanidade construída até agora. Pois é facto que o que chamamos de humanidade tem por base escolhas erradas e justificadas. Pior ainda é o que a escola ensina ser civilização.
Ao longo dos dias de confinamento obrigatório, os oportunistas da autoafirmação exercitaram gestos simbólicos invejáveis, distribuindo cestas básicas, sabão, álcool em gel e oferecendo máscaras, etc. E como o vírus veio para desmascarar orgulhos do que nos deveríamos envergonhar faz tempo, pessoas superficiais revelaram como é superficial nosso conhecimento sobre as pessoas, pois um altruísmo que causa mais problemas que o egoísmo é loucura e aberração selvagem, não é filantropia ou solidariedade alguma. Lamento dizer, o auxílio emergencial em certos países está a ser um desastre.
Há dias, enquanto terminava de presidir uma celebração de exéquias, desisti de fazer a bênção final bem feita porque enquanto os quatro familiares autorizados a participar do velório estavam em prantos, eu fiquei pensando em como doravante será encarada a morte. Não sei se os que perderam seus ente queridos culparão a Deus, à natureza ou ao homem. Todavia, apenas sei que muitos não puderam enterrar, como desejavam, seus parentes, e não sei como está a ser o luto.
Feitas quatro exéquias, das quais duas de Covid-19, uma de pneumonia e outra de AVC, enquanto retornava ao convento com sandálias castanhas bem franciscanas, hábito castanho, máscara e luvas brancas, o segurança estranhou e de longe ouvi ele dizer, “poxa Frei, em tão pouco tempo o mundo mudou!”. Concordei com a cabeça meneando, e na medida que atravessava os corredores e subia os degraus do convento, após ter feito tudo o que as autoridades sanitárias recomendam, obviamente, pensei: se o mundo mudou, com ele também o conceito de privacidade. Se verdade for, quer dizer que se foi o tempo do direito à privacidade? E a nossa autodeterminação informativa? E a protecção dos nossos dados?
Enfim, o confinamento obrigatório e tudo mais que adveio da pandemia, em vez de encararmos passivamente como resultado do destino, um desastre ou um acidente que veio para ceifar vidas, acabar com os empregos e afundar a economia, o melhor é encarar tudo isso como problema técnico. Decreto divino não é, acredito! Assim sendo, problema técnico merece solução técnica. É certo que o termo normalidade suscita equívocos, pois entende-se normal como o aceito, o frequente, o morno, etc. Em todo caso, para a manutenção da normalidade é imprescindível seguir a ciência, mas também é importante admitir que o ser humano não é capaz de solucionar todos os problemas técnicos. Temos de ser realistas em nossas espectativas, saber que a árvore do conhecimento não é a da vida, reconhecer as falhas organizacionais e que somos todos transitórios. Ao menos, que tudo isso nos leve a redobrar esforços para protegermos a vida e ressignificar a morte.
*Artivista, filósofo e frade franciscano.
O regresso à normalidade é uma ilusão irracional. Não é possível, sairemos dessa fase mais pobres do que nunca, mais miseráveis do que nunca e as economias, até dos ladrões internos e imperialistas estará de «patas pro ar». Creio que é hora de repensar o mundo e o seu rumo. Mas, honestamente, não vejo um mundo daqui 40 ou mais anos, alguma sensação empírica diz-me que acabaremos nos matando de alguma forma, teremos mais um problema desnecessário causado por nós, aliás um de nós.
Aos humanos que tenhamos paciência de compreender os tempos e a dinâmica das coisas. Existem situações que não tem solução, outras têm soluções drásticas – Covid cura-se com a morte também. A humanidade parece que tem amor pelo mal e encontra algum prazer nisso, claro, alguns sobrevivem disso.