A pergunta errada que tem séculos de história

A pergunta errada que tem séculos de história

Domingos da Cruz*ǁ Pais, outros parentes e instituições, desde muito cedo martirizam e confundem as crianças com a seguinte pergunta: o que queres ser? Em virtude da inteligência inquestionável das crianças, é comum responderem com uma pergunta que revela «o erro e a contradição interna» da questão: «como assim?» E continuam: «não entendi…!»

Uma vez que o adulto moldado, ou melhor, destruído pelos padrões e referenciais sociais, vê nestas duas questões/respostas a expressão da confusão de sentido ou incompreensão da pergunta. Por isso, é comum repetir a questão com as mesmas palavras. Devagarinho: «o-que-que-res-ser?». Para dar força à estupidez, acrescentam outras perguntas: «Vais fazer o quê na vida? Queres ser bombeiro, informático, pedreiro? Por exemplo, o teu tio é professor e ele vai continuar a fazer isso a vida inteira. É mais ou menos isso que eu gostaria que dissesses».

É óbvio que estas perguntas adicionais não esclarecem nada. A razão do desesclarecimento é simples: nós, os humanos, já somos desde a concepção. O ser enquanto categoria ontológica, nada tem ad ver com o fazer; o papel social não é construtor do ser. Os humanos simplesmente já são porque são. Não carecem de nenhum papel ou atributo acidental e externo para que possam incorporar a categoria ser. O reconhecimento da independência do ser, não significa negar a influência de factores externos sobre a concepção que cada indivíduo tem sobre o mundo. Por isso, este ser também é um constructo quando colocado no plano da liberdade.

O erro da pergunta que corrói o ser, cujas implicações éticas e sociais são conhecidas e, se levada até às últimas consequências, é possível identificar nela mais um problema cuja solução está na antropologia, na biologia e psicologia. Estas ciências e outras correlativas, permitem-nos compreender a singularidade de cada indivíduo. Uma vez que nos é reconhecida e garantida a unicidade ─ ser único e irrepetível ─ a nossa presença e condição no mundo deve obedecer às forças e energias internas que brotam da nossa singularidade; devemos caminhar nesta terra a construir uma história que se adequa com as nossas disposições singulares e não aos ditames da família, da escola, da igreja ou outro qualquer, sob pena de obliterar esta singularidade e que com ela desça cova abaixo a criatividade.

A propósito da escola, é frequente os professores colocarem a mesma questão acima referida. Forçam os estudantes a encaixarem num esquema de disciplinas pré-estabelecidas institucionalmente, mesmo que a sua disposição interna não se adequem a nada do que lhes é proposto. Por isso, no contexto educativo, talvez as perguntas chaves para o nosso tempo, e que devem ser colocadas aos estudantes são: que problemas deste mundo gostarias de resolver? Que conhecimentos gostarias de estudar e re/construir?

Identificado o problema, de qualquer natureza, que o aluno desejasse resolver, os professores ajudariam a identificar caminhos e saberes necessários à solução dos problemas.

Imagina que o aluno gostaria de criar uma vacina contra o HIV? Se é este o seu projecto de vida, não vale a pena forçá-lo a estudar as constelações, nem as rochas magmáticas. Excepto quando é por vontade própria para fins de cultura geral. Neste sentido, é razoável afirmar que nem todo o conhecimento deve visar necessariamente a resolução de um problema. Pode servir para que algum colega de outra área resolva questões que se lhe coloca a realidade, enquanto a outro não. Há ainda casos cujo cultivo do conhecimento tem como fim, o saber pelo saber sem qualquer fim instrumental. Somente por subjectivação gnosiológica, cujo valor do conhecimento, só aquele que o experimenta pode explicar.

Finalmente, é preciso lembrar que o neoliberalismo se apropriou da pergunta «o que queres ser?», replantou-a na escola e criou raízes profundas. Estas raízes moldaram o nosso imaginário colectivo a uma dimensão quase universal, de tal modo que hoje parece que não somos capazes de pensar a escola e o conhecimento à margem do mercado de trabalho. Esta escola como a conhecemos, instalou no fundo dos corações e mentes, a cultura da competição selvagem, e inviabiliza o despertar de habilidades necessárias ao nosso mundo e a nossa humanidade ─ o cuidado ao outro, a cooperação, a contemplação estética, o pensamento crítico e a criatividade.

* Pesquisador no Centro de Estudos Interdisciplinares em Cultura e Sociedade, Universidade de Concórdia, Canadá (em curso), Pesquisador no Programa de Doutoramento em Filosofia Política, da Universidade de Zaragoza, Espanha (em curso). Pesquisador convidado no Departamento de Comunicação e Media, Universidade de Johannesburg, África do Sul (em curso). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil, e graduado em Filosofia e Pedagogia pelo Instituto Dom Bosco de Estudos Superiores, Angola. Jornalista e Professor, venceu o Prémio Nacional de Direitos Humanos Ricardo de Melo. Publicou dez livros e duas centenas de artigos. Coordenador do Observatório da Imprensa de Angola.

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