CARTA A UM ASSASSINO

CARTA A UM ASSASSINO

Xénia de Carvalho* ǀ Gentil cavalheiro de fato elegante e gabardina no braço,

De traje britânico, duque de botins encerados, 

Lhe iria questionar no arranque desta missiva sobre sua saúde. Mas se diz que aos mortos não se demanda tal assunto. Creio que vossa mercê se dá como falecido. O cavalheiro confirma? AGUARDO CONFIRMAÇÃO. STOP.

N

A

D

A.

Prossigo.

Se dá como falecido por conveniência após o assassinato encomendado? Lhe dá jeito essa morte enublada? STOP. TRAVAGEM BRUSCA. Não um, mas DOIS ASSASSINATOS. Pelos menos esses lhe são conhecidos. 

Cavalheiro dos botins encerados,

Fato impecavelmente cortado,

Lhe escrevo para anunciar que conheço sua identidade. Pai e filho a revelaram, herança do pai morto quando lhe percebeu sua natureza: “É como se tudo estivesse a repetir-se”.

FOI A ÚLTIMA COISA QUE O MEU PAI DISSE ANTES DE SER MORTO PELO DISPARO DE UM FRANCO-ATIRADOR.

Assim Carlos Carballo revela a história de dois assassinatos na Colômbia, um de herança deixada por seu pai e recontada por seu avô e sua mãe, ao escritor Juan Gabriel Vásquez, que nos guia n’A Forma das Ruínas. 

Colômbia 1914, assassinato de Rafael Uribe Uribe

Colômbia 1948, assassinato de Jorge Eleiécer Gaitán

Uribe e Gaitán foram expirados por si, cavalheiro a quem dirijo esta carta, monsieur elegante e bem remunerado, porque se sabe que de todas as PROFISSÕES a que tem CONTINUIDADE é a do ASSASSINATO POLÍTICO. É um ofício em que a sociedade se reconstrói sem mudar ou desviar um milímetro: a família lhe coloca onde bem entende, o círculo é restrito a botins encerados e cavalheiros de porte encomendado. É uma distinta carreira no anonimato aparente – porque quem se mantém no poder lhe conhece sua identidade.

HÁ DUAS MANEIRAS DE VER OU CONTEMPLAR AQUILO A QUE CHAMAMOS HISTÓRIA: UMA É A VISÃO ACIDENTAL, SEGUNDO A QUAL A HISTÓRIA É O PRODUTO FORTUITO DE UMA CADEIA INFINITA DE ACTOS IRRACIONAIS, CONTIGÊNCIAS IMPREVISÍVEIS E FACTOS ALEATÓRIOS.

A

OUTRA

É A VISÃO CONSPIRATIVA, UM CENÁRIO DE SOMBRAS E MÃOS INVISIVEIS E OLHOS QUE ESPIAM E VOZES QUE SUSSURRAM NAS ESQUINAS, UM TEATRO NO QUAL TUDO ACONTECE POR UM MOTIVO, OS ACIDENTES NÃO EXISTEM E MUITO MENOS AS COINCIDÊNCIAS, E ONDE AS CAUSAS DO QUE ACONTECE SÃO SILENCIADAS POR RAZÕES QUE NINGUÉM CONHECE

(Escrita de Vásquez)

O assassinato de Uribe e Gaitán se encaixam nesse segundo ofício de historiar, nos levando a entristecer, como Vásquez, que nos releva em sussurro ser aterrador viver nesse mundo em que há neste momento quem saiba que algo de mau irá acontecer e que nada fará para evitar o estrago”. Sim, cavalheiro dos botins encerados, acontece neste momento e essa é a condição que pretende manter: imutabilidade. Esse povo que pinta unhas e conta calorias, que aparentemente não vai além dessas duas condições de inutilidade interventiva. O cavalheiro conhecerá todas as outras condições, porque povo se manipula, gente se ensina a baixar a cabeça e a aceitar actos de assassinato, desde que devidamente embrulhados num vídeo TikTok – Make Your Day, com cenas que não se excedam os 15 segundos. Ninguém aguenta, a atenção se dispersa – 15 segundos??? Porra, que dá trabalho segund’ar isso tudo, aos 16 capotam e mudam o cenário.

Não lhe vou (re)contar a história de Uribe e Gaitán, isso o faz Vásquez (não tem versão TikTok – Make Your Day 15 segundos, lamento lhe informar), mas lhe (re)lembro o que o motivou a actuar, senhor assassino dos botins encerados. A MARCHA DO SILÊNCIO lhe levou ao assassinato de Gaitán por via indirecta, que já recordamos no baixar da escrita. No momento, Vásquez, me dá permissão para te reutilizar. Obrigada.

Falar-se-ia posteriormente desse 7 de Fevereiro [de 1948] com o tom das lendas. Há que imaginar a cena: a Praça de Bolívar, sob o céu cinzento da cidade, enchera-se com mais de cem mil pessoas, mas era possível ouvir o sapateado dos que vinham lá de atrás, a tosse de um velho, o choro de uma criança cansada do outro lado do espaço aberto.

C

E

M

Mil pessoas: a quinta parte da cidade inteira estava ali, acudindo ao chamamento do seu líder. Porém, a multidão não gritava o seu apoio nem os seus vivas nem os seus morras nem acendia tochas nem levantava punhos cerrados, pois o Chefe [GAITÁN] pedira-lhes uma única coisa: silêncio.

Os seus camaradas eram assassinados como animais em todo o país, dissera, mas não responderiam à violência com violência. Dariam uma lição, sim: marchariam em silêncio, e o seu silêncio pacífico seria mais forte e mais eloquente do que a fúria do povo amotinado.

Foram horas com pessoas a se dirigirem para a praça, vindas de todo país, de toda essa Colômbia fragmentada, sem se escutar um só grito. SILÊNCIO. Gaitán falou, proferiu a sua oração pela paz e pediu, “como se estivesse a falar no velório de um amigo”, ao presidente da República que estancasse a violência em seu país. Sua sina ficou ditada nesse dia. “Este homem acabou de assinar a sua sentença de morte” (escrita de Vásquez).

Señor Presidente: Aquí no hay aplausos sino millares de banderas negras que se agitan.

Señor Presidente: Aquí están presentes todos los hombres que han desfilado y demuestran una fuerza y un poderío no igualados y sin embargo, no hay un solo grito. Aquí hay una contradicción a las leyes de la psicología popular. Un pueblo que es capaz de contrariar las leyes de la psicología colectiva es un pueblo que os demuestra que tiene un espíritu de disciplina capaz de superar todos los obstáculos. Ningún partido en el mundo ha dado una demostración como ésta. Pero si esta manifestación sucede es porque hay algo grave y no por triviales razones. Y esto obliga a los hombres universitarios a escucharla y oírla. Somos la mejor fuerza de paz en Colombia (excerto da Oração pela Paz, em content (ucc.edu.co))

Me dirá Excelso e Gentil cavalheiro de fato elegante e gabardina no braço,

De traje britânico, duque de botins encerados, 

O povo cumpriu suas ordens, na inconsciência dos 15 SEGUNDOS, depois do 7 de abril de 1948, quando seu esbirro, de grande estima e por isso substituível, actuou em seu nome e assassinou Gaitán, sendo devidamente arrastado e morto pela multidão esquecida da ORAÇÃO PELA PAZ.

Ilustre assassino,

Cavalheiro que tem a arte da manipulação,

Lhe deixo um acrescento, fazendo com Vásquez eco dessas memórias: Ninguém esqueceu o Bogotazo, o dia 9 de abril e os três dias que se lhe seguiram, em que “morreram em Bogotá umas três mil pessoas” (escreve Vásquez), em que os “agitadores tomaram as ondas radiofónicas logo após o crime”, lançando “discursos incendiários” e “instruções para o fabrico do ‘cocktail Molotovov’”. Essas imagens perduram e a história de quem morreu no Bogotazo nem sempre se encaixa nos 15 SEGUNDOS e no povo que vossa excelência intenta controlar.

Assassino,

Escrevemos e continuaremos a escrever

Para lembrar

Essas verdades pequenas e frágeis que se afundam no poço malcheiroso do esquecimento porque os encarregados de contar a história nunca chegam a vê-las nem a dar pela sua modesta existência (Vásquez).

Por Gaitán recordamos a sua oração da paz aqui Jorge Eliécer Gaitán discurso por la paz, 7 de febrero de 1948 (youtube.com).

*Antropóloga, Investigadora Associada, CRIA/ISCTE-IUL.

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1 Comentário

  1. Florentino

    Importante reflexão, principalmente numa altura em que parece emergir uma sociedade dos 15segundos caracterizada pelo mais fácil. Fundamental por nos remeter ao ano de 1948 naquela histórica praça de Bogotá, devemos sempre lembrar daquelas manifestações com sentido de querer aprender.

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