A credibilidade problemática dos midias

A credibilidade problemática dos midias
????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????
[Pt| rmc]

Por Daniel Cornu || Porquê uma interrogação ética? Mesmo sem entrar na discussão sobre os poderes, reais ou supostos, dos media, a simples dimensão da realidade mediática exige uma reflexão sobre o espaço de liberdade de que gozam os seus actores e sobre a extensão da sua responsabilidade. E seja qual for a natureza da função reconhecida ao jornalista, simples peça funcional de um sistema cujos objectivos e mecanismos o ultrapassam ou agente responsável pela informação que fornece, põe-se a questão da legitimidade do seu papel, da sanção da sua actividade pelo público. É a ela que se refere o título do ensaio de um antigo presidente do Conselho da Imprensa suiça, Bernard Béguin, “Jornalista, Quem Te Fez Rei?” Ora o público considera com reservas o mundo da informação e a credibilidade que reconhece aos media está sujeita a variações sensíveis no tempo.

Fazem-se regularmente inquéritos e sondagens na maioria dos países de tradição liberal, visando avaliar a confiança depositada nos media. Em França, a revista Médiaspouvoirs e o diário La Croix publicam regularmente, desde 1987, inquéritos realizados pela Sofres. O semanário Télérama associou-se-lhes em 1991. Segundo a sondagem realizada em Dezembro de 1989 e publicada na primaveira de 1990, os media recolhiam uma apreciação bastante favorável junto do público: mais de metade e quase dois terços das opiniões eram positivas(1). Este inquérito desenrolou-se em plena revolução romena, mas antes da revelação do simulacro dos cadáveres de Timisoara, apresentados como provas de um massacre, e das manipulações múltiplas da televisão romena. O inquérito feito em Outubro de 1990 registou uma queda muito nítida de credibilidade dos três principais meios de informação. Revelou uma verdadeira «linha de fractura» na confiança concedida aos media. A maneira como estes trataram a guerra do Golfo três meses depois, no inicio do ano de 1991, abriu uma crise visível. Mas foi efectivamente a informação sobre a revolução romena que operou a fractura, pelo menos segundo os inquéritos feitos em França. Basta o estudo dos números globais, tendo em conta a soma das respostas positivas e mais positivas, por um lado, negativas e mais negativas, por outro, para se concluir que a queda é eloquente(2).

A esta visão crítica da credibilidade dos media em geral junta-se o olhar pouco complacente lançado sobre os jornalistas. Os inquéritos da Sofres mostram que a maioria das pessoas interrogadas considera que os jornalistas franceses não são independentes. Dito de outra maneira: que não são capazes de resistir às pressões dos partidos políticos, do poder e do dinheiro(3). Embora com alguma tendência para diminuir, não deixa de ser chocante o fosso entre essa maioria e a minoria que reconhece aos jornalistas a independência que, quase sempre, estes pretendem. Em Novembro de 1993, 56% das pessoas interrogadas (contra 36%) consideravam que os jornalistas eram vulneráveis às pressões dos partidos e do poder, 58% (contra 27%) às pressões do dinheiro. As respostas traduzem, como acontece na parte do inquérito sobre os media, a sensibilidade do público aos acontecimentos do momento. Assim, a sondagem efectuada um ano antes, em Dezembro de 1992, coincidiu com a revelação de um caso no qual se encontravam envolvidos vários jornalistas conhecidos (o caso Botton). Isso bastou para aumentar as dúvidas quanto à independência dos jornalistas (62%) e para reduzir o sentimento de que estes são capazes de se defender contra as diversas formas de sedução e de pressão (28%).

Imprensa camera
[Pt| rmc]
A diferença entre o julgamento ainda relativamente positivo formulado em Outubro de 1988 sobre a qualidade das informações propostas pelos media e o julgamento negativo reservado aos próprios jornalistas inspirou à Médiaspouvoirs este comentário «(…) num caso trata-se de julgar um serviço prestado à colectividade por instituições, no outro caso trata-se de julgar os agentes desse serviço. Os jornalistas continuam a ser, colectivamente, mal-amados em França e o seu problema de imagem de marca parece concernir, no essencial, a ética profissional. A correcção desta imagem passa necessariamente por uma reflexão profunda sobre o assunto»(4).

Esta visão crítica do mundo da informação não é exclusiva da França, há que dizê-lo. Um inquérito aprofundado foi feito na Suíça, de Novembro de 1988 a Fevereiro de 1989, orientado pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de Genebra. A imprensa escrita ocupa o décimo sétimo e último lugar de uma lista de instituições estabelecida pelos responsáveis pelo inquérito de acordo com as realidades sociais dominantes na Suíça. É creditada com uma taxa de confiança de 42,5%. A televisão não consegue muito mais, com 45,6%. Ocupa o antepenúltimo lugar(5).

A confiança dada aos meios de informação mede-se. As observações efectuadas ao longo do tempo mostram que esta está em parte sujeita às circunstancias. Quando há crise de confiança significativa, as reacções exprimem-se de maneira espontânea, sob as formas mais diversas: cartas de leitores aos jornais, intervenções políticas, promulgações de leis ou decretos. Pode mesmo tornar-se um tema cultural e inspirar obras de ficção. Ninguém esqueceu a repercussão que teve na Alemanha o romance de Heinrich Böll, A Honra Perdida de Katharina Blum, sobre as perversões do jornalismo(6). Se Böll é testemunha dos «anos de chumbo», outros acontecimentos ao longo dos anos 80 e da última década do século que provocaram questões e protestos justificativos da urgência de uma reflexão ética.

tv uu
[Pt| rmc]
Durante um colóquio organizado em Paris no mês de Maio de 1987 pelo Instituto Internacional de Geopolítica, Alain Minc notava: «Os media ocupam a cena social, chegam mesmo a fabricá-la, e no entanto não existe nenhuma teoria sobre eles. Conhecemos práticos dos media, observadores, sociólogos mas nada de filósofos(7)». É evidente a sua razão. A ética é dos três amos principais da filosofia clássica, ao lado das teorias do conhecimento e da natureza. Trata, de acordo com as categorias da razão moderna, da razão prática. Mas os filósofos, quando se interessam pela ética, só raramente prestam aos domínios da informação e dos media uma atenção à medida da sua importância social. Parece que a matéria «informação» é bastante inconsistente, demasiado volátil, talvez demasiado fútil. A ponto de a ideia de misturar filosofia e prática da informação poder parecer incongruente.

Ao orientar a minha reflexão sobre a actividade do jornalista, julgo não perder de vista que uma ética da informação, qualificada de individual segundo as úteis clarificações feitas por Heinz Pürer(8), não poderá abstrair-se artificialmente dos próprios media, nem situar-se fora de uma relação com o público, também interpelado pelo ângulo da ética. Com efeito, num primeiro tempo, trata-se de tentar responder a uma questão aparentemente muito simples: como, em que condições, é um jornalista capaz de produzir uma boa informação? Porquê boa? É que a ética tem precisamente por objecto tradicional o Bem. A questão é no entanto mais complexa do que o deixa supor a prática quotidiana. Não se limita a aspectos técnicos e pragmáticos. É por isso que as regras profissionais e a deontologia do jornalismo não a esgotam. A resposta depende da maneira como o Bem se articula com o Verdadeiro e com o Justo, das relações entre o Verdadeiro e o Justo no domínio particular da informação jornalística. Supõe uma interrogação ética.

Notas

([1]) Um pouco mais de metade das pessoas interrogadas (55%) estimavam que as notícias lidas no jornal correspondiam a coisas que se tinham «verdadeiramente» (7%) ou «mais ou menos (48%) passado tal como o jornal as contava. Mas 38 por cento tinham reservas: há sem dúvida «bastantes diferenças» (34%) ou as coisas «não se passaram de facto» (5%) como se leu na imprensa. A rádio era creditada de uma confiança superior: 63 por cento, incluindo um «núcleo duro» de credibilidade junto de 12 por cento das pessoas inqueridas, contra 29 por cento de opiniões reservadas ou negativas. Quanto à televisão, essa era considerada o media mais digno de confiança: 65 por cento aceitavam que as coisas se tinham passado «verdadeiramente» (14%) ou «mais ou menos» (51%) como a televisão as mostrava. As dúvidas quanto à sua credibilidade atingiam contudo cerca de um terço das opiniões: 32 por cento. Médiaspouvoirs, n.º 18, Paris, 2º trimestre de 1990. O inquérito abrangeu uma amostra nacional de 1000 pessoas, representativa da população com 18 anos e mais. Decorreu nos dias 22 e 23 de Dezembro de 1989. É interessante notar que poucas pessoas integram o grupo dos «sem opinião» no que respeita à televisão (3%), mas são um pouco mais numerosos quando se trata do jornal (6%) e da rádio (8%). Os franceses com menor interesse pela actualidade são os menos inclinados a confiar na imprensa escrita. Finalmente, a proporção das pessoas que confiam realmente na informação que lhes é fornecida é fraca relativamente à de pessoas que, cépticas ou resignadas, a consideram «mais ou menos próxima da realidade».

(2) De 1989 a 1993, o índice de credibilidade dos três grandes media caiu de mais 16 pontos para menos 4 pontos para a imprensa escrita (variação: -20), de mais 34 para mais 23 no que respeita à rádio (variação: -11) e de mais de 33 para 0 quanto à televisão (variação: -33).

O índice de credibilidade é obtido pela diferença dos resultados entre as opiniões mais positivas e as opiniões mais negativas. Médiaspouvoirs, n.º 33, 1.º trimestre de 1994, que dá o conjunto dos resultados desde 1987.

(3) Um clássico da literatura francesa sobre o jornalismo é o livro de Jean Schwoebel, antigo redactor do Monde: La Presse, le pouvoir et l´argent, Paris, Seuil, 1968.

(4)Médiaspouvoirs, n.º 13, Janeiro de 1989, p. 43. O comentário é de Jean-Louis Missika.

(5) O inquérito foi realizado pelo Instituto Isopublic, que interrogou 1400 pessoas entre os 20 e os 80 anos. Segundo este inquérito, os suiços têm a maior confiança nas suas autoridades comunais (77,8%), à frente das autoridades do cantão (77%) e da Confederação (75%). Após as instituições políticas, é a polícia (75%) que recolhe o maior número de sufrágios, precedendo o ensino (74,7%) e a justiça (70,8%). As grandes empresas (46,6%) e os bancos (55,7%) conseguem um melhor resultado que os media. Estas apreciações estão evidentemente sujeitas às condições políticas, económicas, sociais do momento. A diferença dos resultados entre o alto e o baixo da classificação é todavia eloquente. La Tribune de Genève, 24 de Maio de 1989.

(6) H. Böll: L´honneur perdu de Katharina Blum, trad. fr., Paris, Le Seuil, 1975.

(7) Reproduzido por H.-F. de Virieu, op. Cit., p. 18.

(8)H. Pürer: «Ethik in Journalismus und Massenkommunikation», em Publizistik, Vierteljahreshefte für Kommunikationsforschung, Heft 3, 37. Jg 1992, Universitätsverlag Konstanz.

Fonte: In Jornalismo e Verdade – Para uma ética da informação. 1994, pp.11-13.

RELACIONADOS:
Gabriel Tchingandu: “No jornalismo angolano falar de ética e deontologia é utopia”

«Aquilo que prevalece no jornalismo angolano vem de muita gente estranha a esta actividade. Muitos dos que fizeram parte da actividade jornalística vieram da Segurança do Estado e, até hoje, Leia mais

Um subsídio ao repto de normalizar a ética na mídia

Por Siona Casimiro||O Director do Jornal de Angola, meu José Ribeiro, fulminou há dias: «Exijo dos reguladores, auto-reguladores e poderes públicos que acabem com a legitimação da ilegalidade e a Leia mais

O papel dos “mass media” no terrorismo

[Pt|rmc]  Por Benjamim Formigo|| A definição de terrorismo varia consoante os interesses políticos e conjunturais do poder instituído. Nas palavras do padre Leonardo Boff, teólogo da Leia mais