A Democracia como “forma mista” de governo em Norberto Bobbio

A Democracia como “forma mista” de governo em Norberto Bobbio

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Por Giuseppe Tosi || O objectivo deste texto é reflectir sobre as diferentes concepções de democracia de BOBBIO, sem a preocupação em manter uma finalidade ao seu pensamento. Como se sabe, Bobbio não deixou um tratado sistemático de teoria política ou de teoria da democracia, mas numerosos anseios esparsos posteriormente reunidos em colectâneas que tratam do tema (O Futuro da Democracia, 2009). Também não pretendemos sistematizar o seu pensamento nem se alimentar a ele, mas reagir aos seus conceitos para reflectir sobre os problemas do nosso tempo.

Olhando para história das doutrinas políticas ocidentais, podemos identificar uma primeira divisão geral entre doutrinas democráticas e não democráticas dependendo da resposta as perguntas: quem deve governar? E como deve governar? Temos aqui fundamentalmente duas respostas: as elites e, portanto, algum tipo de aristocracia: os mais fortes (trasímaco) os melhores por sangue e tradição (a nobreza) os que filósofos segundo Platão (uma aristocracia intelectual e moral), e hoje diríamos os técnicos (uma tecnocracia), ou todos, o povo, a maioria, a massa (democracia).

Prima facie, podemos considerar como doutrinas democráticas aquelas que defendem a tese de que todos devem governar, porque todos possuem o discernimento, a competência política e como doutrinas antidemocráticas as que negam ao povo tal competência e afirmam que somente uma elite (económica, social, política) deve governar (PLATÃO & PROTÁGORA, 1999). Normalmente, as doutrinas antidemocráticas são também doutrinas anti-igualitárias (TOSI, G, 2010). O debate sobre democracia entre Sócrates e Protágoras, no diálogo homónimo de Platão, é um dos pontos de clivagem para distinção entre duas doutrinas democráticas e antidemocráticas. Sócrates (e Platão) se perguntavam porque que é preciso ter um treinamento e uma habilidade particular para exercer qualquer profissão, menos no caso da política, que é a arte mais importante de todas.

Neste caso, todos os cidadãos se sentem aptos a opinar e exercer cargos públicos, mesmo sem possuir treinamento ou habilidade específica. Por isso Platão na República, afirma que somente os guardiães – filosófos, após uma colecção e um longo treinamento podem terminar a cidade (Platão 1995).

Protágoras responde as objecções de Sócrates recorrendo uma alegoria que pode ser considerado como verdadeiro “mito fundador da democracia”. Prometeu, para ajudar o homem que seu imprevidente irmão Epmiteu havia deixado sem nenhum recuso, “no, descalço sem abrigo e sem defesa, ” havia roubado a Atenas a sabedoria técnica e a Hefesto o fogo, instrumento indispensável para utilizar esta sabedoria e os havia doado aos homens. Porém, essas artes não eram suficientes para vida em sociedade, porque faltava a arte de gerir a cidade (politiké techne), sem a qual os homens não conseguiam se proteger dos outros animais e viver pacificamente entre eles.

Por isso Zeus temeroso de que a humanidade desaparecesse totalmente da face da terra, enviou Hermes para levar aos homens “respeito (aido) e justiça (dike) para que houvesse na cidade ordem e laços que suscitassem a amizade (pilha)”, e determinou que essas qualidades fossem distribuídas a todos os homens indistintamente: “porque não haverá cidades se somente uns poucos partilharem delas como acontece para as outras artes” (Platão 1999, 322D).

Com esta alegoria Protágoras faz uma firme apologia á democracia em resposta as objecções de Sócrates: “Deste modo, e por este motivo, Sócrates, quer os outros povos quer os outros povos quer os Atenienses, quando o discurso é na área da arte da carpintaria ou de outra qualquer especialidade, consideram que só a alguns compete uma opinião. E se alguém, fora destes poucos, se pronunciaria, não aceitariam, tal como tu dizes, e com muita razão, repito eu. Porém, quando procuram uma opinião a propósito da virtude política (politiké areté), em que é preciso proceder com toda a justiça e a sensatez (sophrosyne), com razão a aceitam de qualquer homem, pois a qualquer um pertence partilhar efectivamente desta virtude ou não haveria cidades. Neste facto reside Sócrates, a razão do que perguntas (PLATÃO, 1999, 322e – 323a).

O diálogo prolonga-se num extenuante exercício dialéctico por parte de Sócrates para demonstrar que a virtude não pode ser ensinada, no qual, desta vez, Sócrates é menos conveniente do que o sofista Protágoras (FINLEY, M, 1992). O que interessa para nós é que o mito traça uma linha divisória entre as teorias democráticas e antidemocráticas da política: o ponto de descriminação é justamente o reconhecimento ou a negação da competência politica dos cidadãos, o que Protágoras chama de politiké techné, que consiste nas virtudes do respeito, da justiça da sabedoria prática. Por isso, todas as doutrinas para serem democráticas precisam reconhecer algum tipo de competência política dos cidadãos, mas nem todas o fazem da mesma forma.

In: Democracia, Direitos Humanos, Guerra e Paz. SP: Paz e Terra, 2013:223-225.

 

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