A informação e a questão ética

A informação e a questão ética
JORNAL ANGOLA
[Pt/rmc]

 

Por Daniel Cornu|| Nunca na história as comunicações entre os homens foram tão numerosas, diversas, rápidas e eficazes. No começo dos anos 60, já Marshall McLuhan decretava que o mundo estava reduzido à dimensão de uma aldeia planetária. Para a época, era uma afirmação revolucionária. O desenvolvimento da rádio e da televisão e, mais ainda, a chegada de todos os novos meios de comunicação electrónicos anunciavam, a seu ver, o desaparecimento do impresso, o declínio da «galáxia Gutenberg». McLuhan via esta evolução com olhos optimistas, ou mesmo lúdicos. Dedicou-se à definição das regras de um jogo de comunicação novo, considerando os media elétricos como um prolongamento dos sentidos e do sistema nervoso do homem. Inventou uma fórmula mordaz: «o medium é a mensagem» («themediumisthemessage»); por outras palavras: a forma da comunicação substitui o conteúdo da mensagem. McLuhan fez mesmo resvalar esta fórmula para uma outra, que levava a provocação ainda mais longe, ao afirmar que «o mediumé a massagem» («themediumisthemassage») ou ainda que «a mensagem é a massagem»; o que significa que os media oferecem uma espécie de prazer comunicacional anestesiante(1).

Jornalista in Kenia
[Pt/rmc]

Com o tempo, as teorias e as instituições do profeta de Toronto entraram na história da sociologia dos media. Algumas delas continuam a ser clarificadoras, apesar das muitas controvérsias que levantaram(2). A começar por aquela visão do homem moderno «agarrado» aos seus programas diários de televisão. Mas subsiste algum cepticismo quanto às faculdades previsionais do seu autor. Por razões diversas de factibilidade tecnológica, de custo económico ou de aceitação social, algumas das inovações anunciadas ou virtuais não transpuseram a porta dos laboratórios nem passaram da fase experimental. E, ao menos por agora, o papel, o jornal, o livro, continuam a oferecer um suporte sólido à comunicação. Paradoxo mordaz: depois de Marshall McLuhan, escreveram-se e publicaram-se páginas e páginas sobre a morte anunciada do papel impresso…

A expressão feliz da «aldeia global», rica da sua promessa utópica, conheceu uma tal fortuna que seria certamente integrada no dicionário das ideias feitas de um Flaubert do nosso tempo. Mas não perdeu validade. Nem todas as evoluções anunciadas por McLuhan se produziram, mas os media constituem hoje uma realidade infinitamente mais complexa que as redes de comunicação tradicionais herdadas do século XIX. É esta realidade que o jornalista francês François-Hneri de Virieu pretende descrever no seu livro A Mediocridade. Os media já não seriam meros colectores, crivos, transportadores e difusores de informações. Constituíram, pela sua própria existência, pela extensão dos seus desempenhos, um novo princípio organizador da vida social. Virieu propõe-se por isso analisá-los por aquilo que eles são: «uma realidade social que ao mesmo tempo prolonga e reforça os poderes anteriores, perturba as relações tradicionais e dá um peso considerável a novos actores». Quais são estes novos actores? As opiniões públicas e os mediadores profissionais que «destronam cruelmente os especialistas, os intelectuais e os políticos»(3).

OI imprensa livre
[Pt/rmc]

O jornalista francês acumula observações, reúne factos e emite hipóteses que, sem que deles se reclame explicitamente, o enfileiram na vasta categoria dos autores tentados por uma teoria global do media autónoma entre o conjunto das teorias sociais. Depois do célebre livro de Sege Tchakhotine, publicado em França no ano de 1939 e logo proibido para não desagradar à Alemanha nazi, A Violação das Multidões pela Propaganda Política(4), foram inúmeras as obras que tentaram descrever o poder específico dos media, quase sempre para o denunciar. Um dos méritos de FrancisBalle, em Media e Sociedades, é pô-los em oposição constante com as investigações empíricas, cujas conclusões fragmentárias conduzem a uma visão mais reservada quanto à influência real dos media(5). Tais investigações empíricas são elas próprias constitutivas de teorias gerais que qualificaremos de funcionalistase cujo último avatar seria a aplicação da sistémica aos media. A sociologia dos media é, há mais de meio século, atravessada pelas correntes contrárias da escola americana empírica, que se ilustrou principalmente pelas suas investigações sobre os efeitos dos media, e das teorias europeias, a começar pelas da Escola de Frankfurt, que tentam situar o papel dos media numa teoria geral da sociedade(6). Virieu toma em linha de conta a mudança decisiva que se verificou ao longo da segunda metade do século XX: se a escrita ainda não morreu, a verdade é que uma proporção cada vez maior dos cidadãos dos países desenvolvidos já só recebem informação da rádio e da televisão, de uma forma mais pulverizada, mais emotiva também que a apresentada por escrito. Esta evolução leva o autor a pôr a questão que orienta o seu ensaio: «A defesa das liberdades, o comportamento da sociedade, a procura de justiça e de legitimidade poderão continuar a ser regidas por poderes codificados e separados há dois séculos, a partir do momento em que se verifica que um poder de uma nova natureza e com desenvolvimento imprevisíveis vem perturbar a sua organização(7)?».

O autor junta a esta pergunta uma observação sobre as novas técnicas da comunicação. Já não há, como tantas vezes se pretendeu, media tradicionais de um lado e «novos media» do outro. Ou ainda uma divisão decisiva entre o texto e os suportes baseados na imagem e no som. A informática tornou-se a linguagem dominante e subverte as categorias. A digitalização do sinal tem por efeito a anulação das diferenças entre as linguagens da comunicação. Agora tudo é codificado da mesma maneira pelo computador e a informação circula da mesma forma: «A última fronteira, a linha de demarcação multimilenária entre o legível e o visível, entre o texto e a imagem, entre o abstracto, com as suas palavras, os seus sinais e os seus capítulos, por um lado, e o concreto, directamente perceptível pelo cérebro humano, por outro, está em vias de desaparecer(8)».

Notas Bibliográficas

(1) McLuhan: Understanding Media, Nova Iorque, McGraw-Hill, 1964; trad. fr. J. Paré: Pourcomprendreles média. Lesprolongementstechnologiques de l´homme, Tours/Paris, Mame/Seuil, 1968. Ver também, quanto ao aspecto lúcido, The Mediu mis theMassage, com QuentinFiore, Nova Iorque, Londres, Toronto, BentamBooks, 1967.

(2) McLuhan hot and cool, apresentado por G.E. Stearn, Nova Iorque, The Dial Press, 1967; trad. fr. Por G. Durand e P.-Y. Pétillon: Pour ou contreMcLuhan, Paris, Seuil, 1969.

(3) F.-H. De Virieu: La Médiacratie, Paris, Flammarion, 1990, p. 19.

(4) S. Tchakhotine: Levioldesfoules par la propagande politique, Paris, Gallimard, col. «Tel», 1992.

(5) F. Balle: Médias etSocietés, Paris, ÉditionsMontchrestien, 1988, especialmente pp. 547-585.

(6) Esta oposição é claramente descrita por Robert Merton, quando assinala que «os Americanos põem em relevo um agregado de informações, enquanto os Europeus oferecem sistemas completos de doutrinas». É que, salienta Merton, estes últimos dão menos importância à informação que ao conhecimento, entendido como um conjunto de factos e de ideias. Assim, a investigação americana «estuda fragmentos de informação isolados do seu contexto», quando a investigação europeia «pensa numa estrutura total do conhecimento». Merton constata que casa uma destas atitudes conduz a desvios significativos. As teorias europeias tendem, é certo, a dar pouca importância aos factos na medida em que se consideram coerentes. Mas a investigação empírica americana despreza as causas: «Muitas vezes, a grande preocupação da prova empírica leva a reduzir prematuramente a hipótese criada pela imaginação: ao trabalhar-se sem descanso com o nariz sobre os factos, é-se incapaz de ver mais longe que a ponta do mesmo. (…) Na escolha dos assuntos e na definição dos problemas a examinar, o método americano presta pouca atenção ao passado histórico, pois considera que os dados não são válidos. Assim se explica a tendência americana para privilegiar os problemas a curto prazo, tais como as reacções à propaganda». R. Merton: Social Theoryand Social Structure, Glencoe, The Free Press, 1964, pp. 440 e segs. Segundo Paul Beaud: La sociétéde connivence. Media, médiationset classes sociales, Paris, Aubier, 1984, pp. 25-27. Este confronto das tradições de investigação, aplicado à sociologia dos media, clarifica indirectamente as diferentes concepções em matéria de informação, no sentido restrito da informação jornalística.

(7)Op. Cit., p. 14.

(8)Op. Cit., p. 15.

Fonte: In Jornalismo e Verdade – Para uma ética da informação. 1994, pp.9-11.  

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