O juiz Adriano Cerveira Baptista, do Tribunal Provincial de Luanda, presidirá, a partir de 15 de Dezembro, ao julgamento de Rafael Marques de Morais. O réu é acusado de denúncia caluniosa, por ter exposto abusos contra os direitos humanos na região diamantífera da Lunda-Norte.Sete generais, liderados pelo ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do presidente da República, general Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa”, para além de representantes da direcção de duas empresas diamantíferas (sócios dos generais), nomeadamente da Sociedade Mineira do Cuango e da ITM-Mining, são os queixosos. Os restantes seis generais, que desfilarão no Tribunal Provincial de Luanda na qualidade de queixosos, são Carlos Alberto Hendrick Vaal da Silva (inspector-geral do Estado-Maior General das FAA), Armando da Cruz Neto (deputado do MPLA), Adriano Makevela Mackenzie, João Baptista de Matos, Luís Pereira Faceira e António Emílio Faceira.
Trata-se do caso sobre o livro Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola, da autoria do réu e publicado em Portugal em Setembro de 2011. A obra relata, em detalhe, mais de 500 casos de tortura e 100 casos de homicídios perpetrados em 18 meses nos municípios do Cuango e Xá-Muteba. Segundo depoimentos de vítimas e testemunhas, tais actos foram cometidos por guardas da empresa privada de segurança Teleservice, ao serviço da Sociedade Mineira do Cuango, e por militares das Forças Armadas Angolanas (FAA).
Na sequência da publicação do livro, a 14 de Novembro de 2011, o autor apresentou uma queixa à Procuradoria-Geral da República (PGR), em Angola. Requereu a investigação sobre a participação moral dos generais, enquanto proprietários da Teleservice e sócios da Sociedade Mineira do Cuango (SMC), na manutenção dos abusos. Como proprietários da Lumanhe, que detém 21 por cento da SMC, os generais passaram a lucrar com a promessa contratual de “assegurar o relacionamento da Sociedade com a comunidade local, contribuindo para a estabilidade social e o desenvolvimento harmonioso do projecto na área do Contrato”. Na realidade, o agravamento da pobreza e da violência tem marcado o referido relacionamento. Desde então, o litígio entre os generais e Rafael Marques de Morais tem circulado entre Luanda e Lisboa, conforme a narrativa que abaixo se expõe.
Inquérito preliminar
A 5 de Março de 2012, a PGR ouviu quatro declarantes citados pelo autor, na sequência do Inquérito Preliminar que abriu sobre o caso. Três dias depois ouviu o autor da queixa, que juntou ao processo os relatórios sobre a violação dos direitos humanos na região, por si publicados em 2005, 2006 e 2008.
Em Novembro de 2012, a PGR comunicou a sua decisão de arquivamento da queixa-crime contra os generais e associados a Rafael Marques de Morais. Na verdade, o processo foi arquivado em Junho do mesmo ano, e a sua comunicação extemporânea serviu para frustrar a possibilidade de o autor recorrer atempadamente.
Na sua decisão, a PGR desqualificou as declarações das vítimas, porque estas se limitaram “a repetir o que já teriam dito ao jornalista e que também consta do seu livro”. Em reacção, uma delegação de altas autoridades das Lundas deslocou-se a Luanda, onde, a 9 de Janeiro de 2013 entregou uma petição ao PGR, general João Maria de Sousa, na qual denunciavam a violação sistemática dos direitos humanos nas suas comunidades. Apelavam, também, à reabertura do inquérito preliminar e à investigação, no terreno, dos crimes denunciados.
Ardilosamente, o gabinete do procurador-geral reagiu a uma falsa notícia do semanário O Continente sobre o processo. Emitiu, então, um comunicado despropositado contra Rafael Marques de Morais e aproveitou para informar a opinião pública de que não reabriria o inquérito. Publicou ainda, no diário estatal Jornal de Angola, em quatro páginas, a sua decisão de arquivamento do processo.A 15 de Fevereiro de 2013, o autor do livro escreveu ao presidente José Eduardo dos Santos, na sua qualidade de mais alto magistrado da Nação, denunciando a Procuradoria-Geral da República, por esta se ter negado a investigar os casos denunciados de assassinatos e tortura nas Lundas. O presidente nunca respondeu à carta sobre a denegação de justiça por parte da PGR.
Queixa em Portugal
Em Novembro de 2012, nove generais e gestores da Sociedade Mineira do Cuango, de cuja empresa são sócios, intentaram uma acção em Portugal contra o autor do livro, por calúnia e difamação. Para além dos acima mencionados, os generais António dos Santos França “Ndalu”, deputado do MPLA, integrava a lista dos queixosos em Portugal, enquanto a queixa do general Paulo Lara foi logo considerada improcedente.
Por sua vez, em Fevereiro de 2013, a Procuradoria-Geral da República portuguesa arquivou a queixa-crime contra o autor e a sua editora, Tinta-da-china, por falta de indícios incriminatórios. Na sua decisão, o Ministério Público invocou o rigor da investigação. Para tal decisão valeram as provas apresentadas pelo autor, que, seis meses antes da publicação do livro, a 4 de Março, manteve um encontro com a direcção da Teleservice. Conforme acordado no encontro, o autor enviou, via e-mail, todos os casos que havia recolhido de denúncias de homicídios e actos de tortura perpetrados por agentes da Teleservice para o director-geral Valentim Muachaleca, com vista a um pronunciamento formal sobre a investigação. A resposta foi o silêncio absoluto.
O autor suportou ainda os custos de deslocação a Luanda da camponesa Linda Moisés da Rosa, cujo filho foi morto à catanada por um guarda da Teleservice a 5 de Fevereiro de 2010, em Cafunfo, no município do Cuango.
Linda Moisés da Rosa encontrou-se com a direcção da Teleservice a 4 e 5 de Março de 2011. A camponesa recusou a oferta de US $10 mil pelo homicídio do filho, conforme seu depoimento prestado no Tribunal de Lisboa em Fevereiro passado de 2014: “Eu disse que não sabia qual era o valor de uma pessoa no mercado onde vendem pessoas, por isso não podia receber aquele dinheiro porque o meu filho não tinha preço.”
A PGR portuguesa argumentou ainda que “a publicação do livro se enquadra no legítimo exercício de um direito fundamental, a liberdade de informação e de expressão, constitucionalmente protegido”. Algumas semanas após a decisão da PGR portuguesa, em Março de 2013, os generais intentaram uma nova acção cível, junto do Tribunal de Lisboa, exigindo uma indemnização de 300 mil euros (US $400 mil) ao autor e à editora.
Derrota em Portugal, vitória em Angola?
Insatisfeitos com a justiça portuguesa, nessa altura, os generais e seus sócios recorreram à justiça angolana, a quem confiaram inicialmente um total de 11 queixas-crime contra Rafael Marques de Morais, por difamação e calúnia.
Na sequência dessas queixas, a 3 de Abril de 2013, o Departamento de Combate ao Crime Organizado, da Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC), constituiu Rafael Marques de Morais como arguido.Por sua vez, em Junho do mesmo ano, um grupo de 16 organizações não governamentais (ONG), nacionais e internacionais, escreveu ao procurador-geral da República, general João Maria de Sousa, a denunciar uma série de irregularidades do processo e a solicitar o arquivamento das queixas. A petição lembrou que, no ordenamento jurídico angolano, o Departamento de Combate ao Crime Organizado não tem competência para instruir um processo sobre difamação. Indicou ainda que o arguido foi interrogado sem ter sido previamente notificado, tendo sido apenas chamado por telefone, dois dias antes, para receber uma notificação, o que o impediu de ter assistência jurídica durante o seu interrogatório. As ONG apelaram ainda ao general João Maria de Sousa que investigasse, com seriedade, os crimes de homicídio, tortura e corrupção expostos no livro.
Entretanto, a 31 de Julho, foi a vez de a Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP) ouvir o jornalista e defensor dos direitos humanos em interrogatórios. Constituiu-o arguido em 11 queixas-crime, inicialmente por calúnia e difamação, por causa do seu livro. A 20 de Dezembro de 2013, o advogado Luís Nascimento requereu o arquivamento das 11 queixas-crime intentadas contra o seu cliente pelos generais e empresas associadas.
Luís Nascimento fez lembrar à DNIAP que “a legislação angolana limita o prazo de instrução preparatória a dois meses, quando não há arguidos presos e os prazos são improrrogáveis”. A instrução preparatória do caso contra Rafael Marques de Morais durou oito meses. O advogado referiu também o princípio constitucional que proíbe a dupla incriminação. “Um cidadão não pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto”, lembrou, reportando-se à acção intentada pelos generais em Portugal, pelos mesmos factos. A 23 de Dezembro de 2013, a DNIAP remeteu o processo-crime referente à queixosa ITM-Mining para o TPL. Do mesmo modo, quatro dias depois, a 27 de Dezembro, o órgão da PGR remeteu mais oito processos-crime ao TPL, em que figuram os generais e a Sociedade Mineira do Cuango como queixosos.
Também a 27 de Dezembro de 2013, a DNIAP respondeu ao pedido de arquivamento do processo, tendo informado que “o requerimento foi objecto de análise profunda e ponderada, tendo-se constatado ser razoável o pedido para se pôr termo à instrução, o que desde já foi feito, pois a fase de formação do corpo de delito foi declarada nos autos como concluída”.
Só nessa altura o arguido foi informado de que as queixas eram por denúncia caluniosa, baseadas apenas no conteúdo do relatório final do inquérito preliminar da PGR, que ordenou o arquivamento da queixa apresentada por Rafael Marques. Desse modo, a DNIAP justificou não haver dupla incriminação porque o caso, em Angola, não é sobre o livro Os Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola, nem por calúnia e difamação dos generais e sócios ofendidos.
A 25 de Março passado, em processo de Polícia Correccional, o Ministério Público deduziu a acusação, contra o autor do livro, por oito crimes de denúncia caluniosa. Em referência ao nono processo-crime, a 5 de Maio, o Ministério Público deu por encerrada a instrução preparatória sobre a queixa apresentada pela ITM-Mining, iniciada em Janeiro de 2013, remetendo o referido processo para julgamento. Dos autos constam, como grandes diligências realizadas pela DNIAP, o envio de cartas a todos os bancos comerciais angolanos, para monitoria de todos os movimentos bancários do arguido. A DNIAP descobriu depósitos no valor de pouco mais de US$3,000, domiciliados num dos bancos.Por contraste, os generais pedem que Rafael Marques de Morais pague uma indemnização no valor de um milhão e 200 mil dólares. Outra grande diligência da DNIAP consistiu no registo minucioso dos movimentos migratórios do réu. O julgamento promete. [F/ MAKAANGOLA].