O militante-cidadão II

O militante-cidadão II
Sedri foto Greve
[F/rmc].

Por Sedrick de Carvalho || Alguém escreveu o seguinte: “Não existe sucesso ou felicidade sem o exercício pleno da cidadania e da ética global”. Sob anonimato, um internauta publicou esta frase: “Exercer cidadania não é apenas eleger mas também cobrar, rejeitar, protestar […]”.

Na sequência da série sobre as militâncias partidárias e o exercício da cidadania, que me proponho abordar em vários capítulos e em diversas dimensões da esfera pública, apresento agora uma reflexão no contexto laboral. Claramente a análise não é exaustiva, pelo que os subsídios dos leitores são imprescindíveis.

Na esfera laboral também é possível identificar o militante-cidadão, invés ou raramente o cidadão-militante. Há mais trabalhadores respeitantes das ideologias e directivas partidárias do que as normas legalmente instituídas.

Exemplo: A greve é um direito constitucionalmente consagrado. O artigo 51º da CRA assim dispõe. A legislação laboral, na alínea c) do artigo 6º, cumpre com o plasmado pela norma hierarquicamente superior, e inclusive o direito à greve está regulamentado: lei nº 23/91, de 15 de Junho.

Falo sobre o direito à greve para destacar que este direito dificilmente é exercido pelos trabalhadores das empresas quer públicas como privadas que operam no país. E vejamos que há inúmeros motivos para o exercício deste direito – baixos salários, atrasos salariais contínuos e alarmantes, falta de pagamento de subsídios legalmente estabelecidos, descontos abruptos, etc.

Muitas empresas são controladas pelo também chefe no partido. Muitos trabalhadores são simultaneamente militantes do partido em que milita o chefe. A firma funciona, em muitos casos, como uma célula do partido – em representação da empresa, os trabalhadores marcam presença em massa nas actividades políticas, como passeatas em saudação ao aniversário do Presidente da República, onde inclusive são sancionados os “faltosos”.

Quando o assunto é reivindicar direitos violados, aparece “meia dúzia de indivíduos”. O trabalhador pensa primeiro no que o chefe do partido vai pensar dele ao se aperceber que também é grevista.

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[F/rmc].
– Este afinal também é arruaceiro? – Questionará o chefe. E por este facto o trabalhador sente-se inibido de realizar greve, pois será sancionado partidária e laboralmente – despromoção, redução salarial, retirada dos parcos benefícios a que tem direito, etc.

Tal como acontece com os agentes militarizados – afectos às Forças Armadas Angolanas e Polícia Nacional -, é praticamente proibido aos trabalhadores de inúmeras firmas exercerem, para além do direito à greve,outros direitos.

Não lembro de ter ouvido um Presidente do Conselho de Administração (PCA) de uma empresa pública questionar alguma decisão do governo.

Ora vejamos: o aumento dos preços dos derivados do petróleo está a surtir, e surtirá ainda mais, resultados nefastos na rede de transporte público – embora que quase nada fazem -, na renda dos taxistas, moto-taxistas e camionistas.

A empresa pública TCUL – Transportes Colectivos Urbanos de Luanda – enfrentará certamente os efeitos do aumento do preço dos combustíveis, ao menos que tenha beneficiado de algum incremento estatal através do OGE, informação esta que ainda não se encontra disponível, pese embora no projecto de lei do OGE estivesse na ordem dos 3,07 por cento, diferente do ano findo que estava em 2,68 por cento, isto para os transportes rodoviários.

Por sua vez, esta empresa terá de colmatar de qualquer forma as despesas decorrentesdacompra dos combustíveis. Neste caso, terá de optar entre aumentar o preço das passagens, reduzir despesas com o pessoal mediante demissão ou então retirar da via alguns veículos, estes que já quase ninguém os vê.

Já que foram proibidos de subir os preços dos serviços que efectuam, os presidentes das associações dos taxistas, moto-taxistas e camionistas não questionaram ao Ministro das Finanças, Armando Manuel, onde sairá o dinheiro para emendar as despesas em combustível que aumentaram em menos de quatro meses. Algumas associações inclusive justificaram tal passividade em nome da “parceria estratégica” que mantêm com o governo.

“Nós, associação e na qualidade de parceiros do governo, particularmente, no ramo dos transportes, vamos trabalhando no sentido de sensibilizar as empresas de transporte para que não alterem os fretes, que até então, têm vindo a cobrar”, exortou, em entrevista à Rádio Nacional de Angola,o presidente da Associação dos Camionistas de Angola, António Martins.

Estas questões não foram levantadas publicamente, e se calhar até em privado, pelos representantes desses serviços indispensáveis para o alavancar da economia do país. E a razão é simples: o militante não questiona as decisões superiores, apenas obedece a todo o custo.

Reivindicar é um acto de cidadania. É normal nas sociedades democráticas. Melhor ainda: é uma acção “natural”. Demonstra preocupação com o caminhar do país.

Mas aqui, por raramente termos cidadãos na primeira linha mas sim militantes, tudo se resolve no comité, na base da vassalagem.

À par do partido, há a “lei da barriga”. Esta “lei” é corolário da submissão da cidadania à militância partidária e é outro empecilho para o desempenho de muitos direitos no decurso da relação empregador-empregado.

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A “lei da barriga” é alicerçado pelo seguinte ditado popular: “a necessidade fala mais alto que a moral”.

Sob pena de perderem o emprego, trabalhadores encaram os problemas sociais, económicos e até políticos em silêncio. Aos povos de Angola foi incutida a ideia segundo a qual criticar pressupõe “arranjar” problemas e por isso abstêm-se do debate sobre a realidade angolana.

Analisar os benefícios e consequências antes de partir para uma investida é o recomendável e compreensível. Acontece, porém, que na nossa sociedade a análise é sempre no plano imediato-material. Antes de qualquer acção, o angolano pensa mais no emprego e salário que pode eventualmente perder – que já é pouco, reconhece-se -, quando o que está previsto ganhar é maior – dignidade, respeito, reconhecimento como cidadão e, por último, o cumprimento das obrigações laborais por parte do empregador, pois o “balance of power in work” estaria equilibrada e facilmente o patrão sentar-se-ia à mesa para negociar.

Ter iniciativa para a resolução dos próprios problemas é um acto de cidadania, pois é necessário criar oportunidades efectivas e que envolva o cidadão. Ao agir assim, qualquer indivíduo poderá exercer livremente até o direito à filiação partidária, passando a ser um cidadão-militante e não o contrário.

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