“O país que ainda não existia” e a morte da máquina de costura

“O país que ainda não existia” e a morte da máquina de costura

Xénia de Carvalho│ Andei eu à procura de uma história, revolvi memórias e livros antigos, e não é que acabei onde sempre começo? N’ “o país que ainda não existia”.

Bem sei que outros países por aí existem e outros escritores neles habitam. E lá irei, mas por hoje fico-me por este.  Faz parte da herança familiar que deixamos para a geração mais nova. Que se calhar até preferia um Mercedes Benz, mas isso não nos cabe nas estantes….

Deixam-se os livros e o Benz da Joplin: “Oh Lord, won’t you / Buy me a Mercedes Benz / My friends all drive Porsches / I must make amends”.

Ao som do Benz, pousei as memórias no afamado Patraquim de seu apelido, Luís de nome próprio. Esse aí que escreve sobre a morte de uma mulher com nome de moeda e das aulas de estudo político para implantar nos crânios mais despistados o materialismo histórico e dialéctico, mais precisamente a “origem do homem” e sua ligação aos bichos.

Essa coisa do nexo entre a origem do homem e a distinção entre os outros animais foi assunto que sempre vi debatido desde a infância. Ora lá nas missas católicas a argumentação não era das mais convidativas, especialmente porque a instituição andara em séculos atrás a queimar pessoas por discordância. Na actualidade já não seria necessário, eliminam-se os discordantes de forma mais ecológica.  O homem é, no entanto, bicho como os outros, até de qualidade menos certificada, porque lhe dá para matar pelo simples prazer do acto.

Desviei-me aqui do conto de Luís Patraquim sobre a “origem do homem”, a morte da máquina de costura e suas ligações às aulas “de estudo político”, que resultaram na morte de Raquel Duzenta.  Antes de entrar assim de uma só vez no conto do Patraquim, vou-vos biografar o escritor.

O escritor biografado

Luís Patraquim, nascido em 1953 em Maputo, à data Lourenço Marques, é jornalista, poeta, guionista e reunista – no sentido que reúne “em bares de poetas, que estão a acabar” (em entrevista a Cláudia Aranda, 2016, Ponto Final). A sua principal actividade, diz, é sonhar.

Patraquim esteve como refugiado político na Suécia de 1973 a 1975. Uma vez regressado a Moçambique, trabalhou na imprensa moçambicana, no jornal A Tribuna, mais tarde na Agência de Informação de Moçambique (AIM), vindo a laborar entre 77 e 86 como roteirista e argumentista no Instituto Nacional de Cinema de Moçambique. Coordenou a Gazeta de Artes e Letras da revista Tempo, entre 84 e 86, em conjunto com Calane da Silva, nascido em 1945, também ele poeta-escritor-jornalista, e com Gulamo Khan (1952 – 1986), também ele escritor-jornalista, falecido no acidente que vitimou o presidente Samora Machel (1933—1986).

Em 1986, Patraquim mudou-se para Lisboa, pelo menos o corpo. Felizmente tenho lá ido [a Moçambique] todos os anos, tenho o bilhete de identidade moçambicano. Mas, como sou um bocado esquizofrénico – digo isto na brincadeira – o corpo está aqui, mas o espírito está lá, os sentimentos e todo o meu imaginário está sempre em Moçambique (em entrevista a Aranda).

É referência na poesia moçambicana, descrito como provavelmente o maior poeta do país, depois de Knopfli, Alba e Craveirinha. Luís refuta: “Isso do maior poeta é uma simpatia de alguns críticos. Tenho só um metro e setenta e sete de altura, haverá outros bem mais altos do que eu (…) não há um ‘poetímetro’. Ou há poesia ou não há” (em entrevista a Aranda).

Em 2016, dizia que tinha “dois livros de poesia praticamente prontos, não sei quando sairão, também não tenho pressa, porque sou uma espécie de poeta bissexto [aquele que só faz poesia de vez em quando]” (em entrevista a Aranda).

Começando a literatura pela poesia, como diz Patraquim, e antes do conto da morte da máquina de costura, deixo aqui cair o início de um dos poemas de estreia do poeta-jornalista, a “metamorfose” (do livro “Monção”, 1980): “Quando o medo puxava lustro à cidade/ eu era pequeno/ vê lá que nem casaco tinha/ nem sentimento do mundo grave/ ou lido Carlos Drummond de Andrade”.

Ora, agora regresso à “morte de Raquel Duzenta”, conto escrito em 1990 e do qual trata este artigo. Conto esse integrado numa “Antologia do Conto Moçambicano – As mãos dos Pretos”, organizado por Nelson Saúte (nascido em 1967), também ele escritor-jornalista e professor moçambicano, edição das Publicações Dom Quixote, ano 2000.

O fim da tecnologia dos brancos e a doutrina política

Raquel Duzenta viu-se certo dia perante a impossibilidade de continuar viva. Foi no momento em que se levantou a “tropegar. Todas as certezas se tinham desmoronado!” A origem? Uma “aula de estudo político” orientada por um “jovem balalaica”, isto porque o “quadro” do partido trajava a roupa de funcionário do Estado.

Mas recuemos um pouco aqui na história para que percebam o que escreveu o poeta-jornalista.

Começa Patraquim o conto com a explicação de que “Naquele tempo quem sabia bem português eram só os assimilados. Daí que os ignorados cidadãos do ‘país que ainda não existia’ adoptassem nomes que lhes deviam soar muito bem ao ouvido mas que, enfim…, não passariam em nenhum salão da cidade colonial”.

E assim se explica o nome de Raquel.

Duzenta, “moedinha da sorte”, foi nome dado pelo pai, acréscimo à sugestão do padre da catequese, pois com tal segundo nome queria seu pai que Raquel fosse bafejada pela “prosperidade”.

Mesmo que bem intencionado pelo pai, Raquel não prosperou, “desconseguiu de chegar sequer a assimilada”.

Contudo, Duzenta fez jus ao seu nome com a máquina de costura “Singer”, “que foi o grande marco da tecnologia dos brancos a maravilhar a aldeia e a fazer a Raquel senhora de suas duzentas bem cobradas no amanho das roupas de seus vizinhos clientes”. Depois veio a cheia “e levou tudo”.

Quando chegou “o Uhuru [liberdade, em ki-swahili], a independência”, Duzenta mudou-se para Maputo e começou a “reunar” de forma a obter “esclarecimentos muitos sobre a sua própria e apagada estória, sobre a dialéctica marxista-leninista à luz da Teoria da Dependência, sobre a sua renúncia, dela Raquel Duzenta, à Filosofia da Negritude em nome da verdadeira autenticidade do processo revolucionário em Moçambique”.

Numa dessas reuniões, Duzenta viu-se impossibilitada de continuar viva, como contava no início. Deveu-se isso à explicação do jovem balalaica sobre a origem do homem: “a origem de vocês, camaradas, aqui! Estão a compreender bem? Essa coisa aí – e gaguejava – essa coisa aí dos padres a dizer que somos filhos de Deus é mentira, camaradas!”.

O balalaica esclareceu a origem dos camaradas: “Nós, vocês aí, camaradas, são filhos do macaco!”. Duzenta viu-se descrente, “Xicolonho é que chamava macaco à gente”. E regressou a casa, onde se deu por falecida.

 

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