PARA QUANDO, O FIM DO CATIVEIRO?

PARA QUANDO, O FIM DO CATIVEIRO?

Mário Zezano* ǀ A história é testemunha de impérios que pareciam perpétuos, de civilizações que pareciam imortais, de tiranos que se endeusaram. Hoje, perguntamo-nos: Onde andam tais impérios, o que se conserva dos ditadores? O que dizer do império egípcio, do império greco-macedónico, do império romano e dos impérios coloniais da recente era moderna e contemporânea? A resposta é apenas uma: não se escraviza um povo para sempre; a liberdade pode tardar, mas é uma conquista que nenhum tirano pode dar-se ao luxo de impedir para sempre. A religião, por exemplo, pelo seu papel letargo ou activo em relação à escravatura, foi sempre olhada com desconfiança, o que levou, inclusive, Marx afirmar ser “o ópio do povo”, justamente pela pacificação do evangelho do amor que leva o oprimido a “sofrer com paciência” os maltratos do opressor. Todavia, consultando os textos bíblicos, percebe-se que Deus nunca quis uma religião que apoiasse a opressão; daí a existência dos profetas que eram a consciência crítica da monarquia e da própria religião. Deus, no livro bíblico do Êxodo, mostrou ser contra a opressão, enviando Moisés como libertador do seu povo: “Vi a opressão do meu povo (…) Ouvi o seu clamor (…) Conheço os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar” (Ex 3,7-8). A partir deste pronunciamento, a gente percebe que Deus é atento, tudo vê, embora respeite a liberdade dos homens. O povo bíblico tinha caído na armadilha do desespero devido à extrema dor de uma escravatura que se alastrava no tempo e na história. O sofrimento fez o povo prescindir da sua fé e esquecer-se das promessas que Deus fizera aos seus pais – Abraão, Isaac e Jacob – pelo que Deus pensou enviar alguém em seu nome, Moisés, para libertar e despertar o povo a fim de tomar consciência do que ele é: povo da Aliança, portanto, povo eleito.

No livro do Génesis encontramos a criação, onde se destaca a criação da imagem e semelhança de Deus, o ser humano (cf. Gn 1,26); no Êxodo encontramos a opressão da imagem, justamente porque o Faraó instrumentalizou o povo de Deus para estar ao serviço do império. Ora Deus é democrático porque quer a igualdade de direitos entre as suas criaturas. Tanto que Moisés desce do Palácio para encetar uma revolução, mas é o povo que se mostra não estar preparado para ser liberto, por isso Moisés foge (cf. Ex 2,11-25); Deus desce do Céu para libertar o seu povo (cf. Ex 3,2); nestas duas descidas, apenas o Faraó não desce, por se considerar maior às outras criaturas. Assim, no livro do Êxodo Deus apresenta-se como defensor dos direitos humanos.

Diante de tudo isto, perguntamo-nos: será que havia necessidade de 400 anos para o povo ser libertado do cativeiro do Egipto? Na verdade, a liberdade está associada à libertação, tanto que o povo tinha alcançado a liberdade mas a libertação continuava a ser um processo para que fosse conquistada a verdadeira independência. Com efeito, a imagem do Egipto sobressaltava quando faltava pão, água e outros produtos de que o povo necessitava, porque o povo pensava que o Egipto era tudo o que podia ter (cf. Ex 16,3ss), quando Deus, na verdade, tinha outro projecto para este povo.

O que mais prejudicou o Faraó foi o despertar do povo, o ter tomado consciência de quem era: povo eleito. E o povo angolano é o povo de Deus, muito antes de ser nação, pois, durante os 500 anos de escravatura, Deus esteve com este povo, e depois da independência conheceu o cativeiro dentro da sua própria terra. A independência foi sinal de liberdade, mas não de libertação porquanto o MPLA ter-se sentado na cadeira que o império colonial deixou vago, não permitindo que os outros movimentos de libertação que lutaram pela independência se sentassem com ele à mesma mesa. Este problema inicial não foi corrigido até hoje. A gente olha para as instituições públicas e mostram ser uma extensão do poder político-partidário do MPLA e do regime que ele alimenta contra a vontade do povo. O caso mais triste deste exemplo foi a Comissão Nacional Eleitoral (CNE) e o Tribunal Constitucional (TC) terem-se mostrado incapazes de respeitar a vontade popular, deixando-se enredar pelos estratagemas do MPLA; por isso, sua agenda foi atendida sem oposições nem discussões. Todavia, já disse Nelson Mandela em Junho de 1961: “Nenhum poder na Terra é capaz de deter um povo oprimido, determinado a conquistar a sua liberdade”. Apesar da intimidação da Polícia Nacional e das Forças Armadas contra o povo indefeso, olhamos para as ruas – desde o anúncio do resultado das eleições do dia 24 de Agosto até tomada de posse, a 15 de Setembro – percebemos que as Forças de Segurança do Estado estão para velar e salvaguardar os interesses de um Partido e não da Pátria.

Em Angola não existe a promoção humana; para tal, a Igreja por sua vez é convidada a estar ao lado do pobre como recomendam os textos sagrados desde o Velho Testamento ao Novo Testamento. Os líderes da Igreja têm de erguer a voz e evitar o excesso de prudência que denuncia cumplicidade, quando se calam diante da injustiça onde o povo é trucidado pelo governo. É neste sentido que a Escritura recomenda: “Abre a boca em favor do mudo e em defesa dos desfavorecidos. Abre a boca e pronuncia sentenças justas, defendendo o pobre e o indigente” (Pr 31,8-9).

No livro A miséria de um povo rico, dissemos que a Igreja deve intervir na política quando está em causa os direitos humanos e a dignidade da pessoa; e nisto temos de recorrer mais uma vez ao Êxodo; pois é nas lutas de libertação humana registadas em quase todas as páginas da Bíblia que deve partir a mística da libertação. No Êxodo domina e perpassa toda a montagem literária onde Deus se faz presença no meio de um povo injustiçado e que não sabe a quem recorrer para encontrar o alívio do seu sofrimento. O Êxodo é a grande proeza de Deus e, portanto, a biografia da presença de Deus na História do homem. A salvação da humanidade de que é responsável a Igreja inclui a intenção e necessidade de sacudir os jugos dos diferentes opressores que aparecem ao longo da história. Em Angola, a Igreja não deve olhar com leveza os jugos pesados que o povo carrega desde o período colonial, consciente de que o “Evangelho anuncia e proclama a liberdade dos filhos de Deus; rejeita toda a espécie de servidão” (GS 41).

Na epístola aos Romanos há uma perícope que sacrilegamente tem sido usada e abusada pelos que apoiam o regime autoritário: “Que todos se submetam às autoridades públicas, pois não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. Por isso, quem resiste à autoridade opõe-se à ordem querida por Deus, e os que se opõem receberão a condenação” (Rom 13, 1-2).

Este texto deve ser entendido no seu contexto histórico, pois, o autor faz uma denúncia que, por ignorância ou por defeito moral, muitos eram cúmplices do poder temporal em detrimento do santo povo de Deus: o Império Romano tinha concedido certos privilégios e benefícios ao Judaísmo; e o Cristianismo considerado seita do judaísmo gozava também destes privilégios. A religião, dentro dos privilégios recebidos do Império Romano, podia ter os seus pequenos tribunais (Cf. Mt 26,3-5; Mc 14,53-65). É neste contexto que o autor da carta aos Romanos quer, com a referida perícope, ajudar os cristãos, portanto a Igreja, a renunciar estes privilégios a fim de os cristãos submeterem-se totalmente à autoridade estabelecida, isto é, que se pague tudo, que não tenham privilégios, para assim poderem ficar livres para fazer a denúncia profética contra o abuso do poder de certos líderes políticos. Lembremo-nos que, enquanto cristãos, “importa mais obedecer antes a Deus do que aos homens” (Act 5,29). A vontade de Deus é que todos vivam livres dos jugos de servidão e da ditadura, tal como relatam muitos livros do Velho Testamento e os textos evangélicos.

E a pergunta permanece: para quando, o fim do cativeiro do povo angolano? Se analisarmos bem o fim do cativeiro do povo hebreu no Egipto, um dado interessante sobressai: o fim do cativeiro deveu-se à tomada de consciência. Como cantou Valete na sua música Sente Medo: “é o conhecimento que destrói o medo e destrói os enredos que a mentira constrói”. Os opressores temem a educação libertadora; os opressores temem a qualidade da educação, pois, não lhes interessa ver o povo livre do obscurantismo, porque se tomar consciência de como as coisas poderiam ser, eles teriam de se demitir. Voltando à experiència do Êxodo, diante de alguém que trouxe a mensagem de liberdade, Faraó respondeu com a opressão mais pesada: aumentou o peso do trabalho, e o povo reagiu furioso contra Moisés, o enviado de Deus (cf. Ex 5,1-21). Esta estratégia foi caindo por terra depois das pragas, pois, Deus é promotor dos Direitos Humanos e da dignidade da vida humana.

Em Angola, o povo percebeu que a principal causa da sua desgraça é o MPLA, porque se antes de 2017 os jovens ergueram a voz para se oporem aos muitos anos de governação de José Eduardo dos Santos, hoje o povo percebeu que o problema não está numa pessoa mais num regime que deve ser revezado. À nuvem de insatisfação que paira sobre o país, o Partido que governa respondeu com a intimidação, subornando os órgãos de segurança do Estado, o que deu a entender que os altos funcionários dos tribunais e dos órgãos de segurança do Estado não trabalham pelos interesses da nação mas pelos interesses do Partido, o que explica no dia do empossamento do Presidente da República e da Vice- Presidente, no discurso o Presidente ter prometido melhorar o salário das Forças Armadas nos primeiros dias do seu novo mandato; e nisto a Polícia Nacional não ficou de fora, mostrando-se preocupada com os actos de rebelião promovidos nas redes sociais. Na verdade esta é uma estratégia para o Partido no poder ter as forças de segurança do Estado como aliados, porque percebeu que já não goza da estima do povo. Mas como ensina o livro bíblico do Êxodo, a revolução não é feita de rosas, porque os cativeiros são destruídos quando o povo oprimido exige a sua liberdade, e mais uma vez notamos que Faraó cedeu quando perdeu o seu filho primogénito, portanto, o herdeiro da coroa, nesse desejo de não querer libertar o povo hebreu.

Em Angola precisa-se mesmo repetir a saga do Êxodo para ver terminado o cativeiro deste povo martirizado? Já não bastou a história recente da guerra vergonhosa motivada pelo poder político? E mais, para os que apoiam o MPLA vale a pena tal posicionamento? Será que faz sentido derramar sangue inocente e ver os jovens insatisfeitos a lutarem e a protestarem exigindo qualidade de vida, enquanto os que deviam proteger intimidam a população para perpetuar João Lourenço no poder?

*Padre Católico.  

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2 Comentários

  1. Nkrumah Pinto

    O MPLA conhece profundamente a Psicologia do povo e até da oposição, sabe que variáveis manusear para controlar o comportamento da maior parte do povo e da população. As forças do MPLA são o analfabetismo, a promoção do álcool, a fome e o impressão do medo. O trabalho para a libertação pedirá um esforço profundo e colectivo de todas as forças vivas que já despertaram.

    O padre esteve bem. Parabéns!

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