A raça, o novo amanhecer e a autenticação do ser

A raça, o novo amanhecer e a autenticação do ser

Xénia de Carvalho│ Dizem-me aqui que raça é tema de debate aceso, coisa científica e necessária para o entendimento das desigualdades sociais e económicas que grassam nesse mundo vasto.

Dizem-me aqui que raça é para derrubar, ainda mais nestes tempos pandémicos que nos assolam, em que as diferenças se acentuam.

Dizem-me aqui que raça é assunto para tratar.

Vou de começar.

Já fui loura, ruiva e de cabelo encaracolado, agora está esbranquiçado e meio acobreado. Ah, velhos tempos esses em que era morena de cabelo preto! Ah, como brilhava esse meu cabelo – e não havia cá produtos abrilhantadores das raízes e derivados (dessas coisas, infelizmente, pouco sei, deixo-vos o Google – diz que tem lá tudo).

Foi nesse passado de moreneza que me encontrei frente ao mistério do ser e o desvendei. “It’s a new dawn/It’s a new day/It’s a new life for me/And I’m feeling good”. Peço que parem o trânsito, desliguem os semáforos, metam os polícias sinaleiros na casota, porque Nina Simone canta: “Sleep in peace when day is done, that’s what I mean”.

Epa, como se conta a história da descoberta do ser? Nina canta “Birds flying high you know how I feel”. Essa senhora ginga, como ginga! E traz essa música lá dos anos 60, escrita pela dupla britânica, Leslie Bricusse e Anthony Newley.

Bricusse e Newley escreveram “Feeling Good”, que Nina explode no mundo quando canta – oh! se explode!-, para acompanhar o musical, também escrito por eles, The Roar of the Greasepaint – The Smell of the Crowd, em que se pautam em tons graves, agudos ou intermédios, o estado das classes sociais, do poder e da raça na Inglaterra dos anos 60. E raça – o assunto que me fez vir aqui hoje – é poder e classe social, mas também memórias do ser e do cabelo. Anda tudo ligado: Nina, “Feeling Good” e a humanidade, essa por Mia Couto. Bem sei, retorno a Moçambique, esta sina pa…. É que é de lá que trago a humanidade e o desvendamento do ser, esse desraçado.

Bom, Mia? “River running free, you know how I feel”, oh yeh, mama! Sei, sei, ó se sei. O SER… Descobri o ser na multiplicidade, nessa coisa dos cabelos e por isso iniciei com essa narração: “Era uma branca, de longos cabelos loiros”. Não, não! Não são minhas essas palavras, não são não. Mas podiam ser. Já fui loira e percebo disso mais do que o dito, mas não são não, não são não! Confesso. São do Mia – “And I’m feeling good”.

Meus pais me puserem esse nome que carrego (já habituei, ganhei-lhe estima), e eu encontrei-me noutro, o de Ezequiela, a do Mia. Aí me libertei e encontrei o SER, chutei isso da raça, não tem o meu tamanho, nem as minhas medidas. Desracei-me.

Quem é essa Ezequiela? Espera lá, já vou contar…. Primeiro, vou desvendar esse homem, que é animal assumido, e escreve como lhe apetece, desentranha palavras como quem cospe caroços de azeitona preta (as outras não prestam, nem temperadas). Esse homem bicho desorganiza a escrita, torce as palavras e acrescenta superlativos ou inventa verbos que não há não nesse dicionário da Língua Portuguesa (porque está mesmo a ver-se que português português só há um, o que todos falam, mas no livro só vem a versão oficial, o português engravatado, com brilhantina no corno do bigode). Nessa desorganização desraça-se e desraça o leitor – eu, que já tive “longos cabelos loiros”. Vós? Pois, isso já não sei. Vou Mia’grafar, mostrar o bicho que há no homem. Talvez isso explique isso do “It’s a new dawn/It’s a new day/It’s a new life for me/And I’m feeling good” (escuta aí, Simone…).

Breve acto de Mia’grafar

Mia Couto, nascido em 1955, é biólogo e escritor moçambicano e usa nome de gato. “Eu era miúdo, tinha dois ou três anos e pensava que era um gato, comia com os gatos. Meus pais tinham que me puxar para o lado e me dizer que eu não era um gato. E isto ficou. Eu lá fora, sou sempre esperado como preto ou como mulher.  (…) Isto me diverte. Essas questões de identidade me divertem muito, quer seja do sexo, quer seja da raça. Eu não tenho raça. Minha raça sou eu mesmo” (em entrevista à Folha de S. Paulo, 2002). Desraçou-se, portanto. Também não é de estranhar: homem que se acha gato e desconstrói o dicionário, que tanto trabalho dá nisso da organização justificada das palavras – esses organizadores merecem reconhecimento pela tentativa de uniformização de tanta gente a usar uma língua, cuspindo variações, e eles “que não, essa variação não entra aqui, é corruptela, na escola não se ensina calão não”.

Mas não só de animal é feito o escritor, também é doente incurável. Explico então: em 1974, seguindo o legado familiar (o pai foi jornalista e poeta – “doença hereditária”, segundo lhe dizia a mãe), inicia-se no ofício de jornalista. Foi director da Agência de Informação de Moçambique (AIM), director da revista Tempo até 1981 e trabalhou no jornal Notícias até 1985. Nesse ano, deixa o jornalismo e vai tirar biologia na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. É nos anos 80 que começa a publicar contos, como o de “Ezequiela, a Humanidade” (1987), esse que me liga ao cabelo loiro, à Nina Simone “And I’m feeling good” e me deixou desraçada. Esse conto está junto de outros “Na berma de nenhuma estrada” – daí que não sejam necessários os policias sinaleiros, mantenham-nos nas casotas.

Da autenticação do ser e da desnecessidade da raça

Um certo moço apaixonou se por uma moça, de cujo nome Ezequiela. O jovem se designava de Jerónimo. Foi amor de anel e altar. Em prazo fulminante ajuntaram destinos, ele e ela, os dois e ambos”.

Começa assim o conto do Mia e Nina canta “Birds flying high you know how I feel”.

Não há conto que comece e fique logo tudo resolvido. “It’s a new life for me yeah”, Nina, a voz que imobiliza o trânsito e anuncia essa nova vida.

Jerónimo deu de casar, Mia disse. Mas certo dia acordou e deu com “a branca, de longos cabelos loiros”, ali mesmo, ao lado dele. “Ele cismalhou: quem é esta?”. É que essa não é a mulher dele! Grita por ela, “Ezequiela!”. Às vezes podem-se perder as mulheres… Nada! Ela lhe explica, é ela, Ezequiela, mas Jerónimo não está crente, e lhe desafia: “Como, se você é branca retinta e minha mulher é negra? Como, se os cabelos…”.

A moça lhe explica que “mudava de corpo de cada vez em quando. Ora de um tamanho, ora de uma cor. E ora bela, ora feia. Actualmente, branca e posteriormente, negra. Que ela se convertia, vice versátil”.

Ezequiela procura aceitação: “O problema sendo mesmo esse, o da identidade exacta dela mesma, a autenticada Ezequiela”. Mas Jerónimo não caí não, não foi com essa que casou. E a mulher lhe propõe que se deixem estar, “vir o porvir”.

Simone, “Butterflies all havin’ fun, you know what I mean”. Oh yeah, sabemos sim. Jerónimo não resistiu e “tricotou seus dedos pela seda dos cabelos dela” …. Voltaram ao estado de graça. Só que…. Conto tem dessa paragem sincopada, vai o leitor já lançado e mudam-lhe o rumo. Mia brinca, como se fosse novelo os olhos de quem segue os destinos de Jerónimo e Ezequiela…

Jerónimo tricotava os cabelos dela, a tecelagem foi até ao remate final e regressaram ao estado primeiro – ela de loira, ainda, mas mulher. Só que, lembrem lá a questão da identidade…. Dou um segundo, sim. Identidade? Pois. A autenticada acordava versatilisada, convertida: “acordou esquimó, peles amareladas, olhos repuxados em ângulo e esquina. E, numa outra vez, ela se indianizou, pele aperdizada, cabelos azevichados”. Jerónimo depois de ficar no “vir o porvir” acabou aceitando-a, “transitável mas intransmissível”.

Diz o escritor que o “acerto e reacerto” não foi assim fácil no começo, levou tempo, até que Jerónimo “encontrou gosto nesse jogo de reencorpagem”. Nina – esse trânsito continua parado? – “Sun in the sky you know how I feel”, yeah! Sei, sei. Sorte a desse gajo, todas mulheres numa só!

Disse sorte? Nada, esquece isso, azarou, Jerónimo azarou, Ezequiela reencorpou certo dia em “homem, barbalhudo e provido de músculo”. E isso é que não: “A sua mulher: um homem? Já se vertera em branca e em preta, baixa em alta, tudo isso, sim. Mas sempre mulher”. Homem, não. “Seria ela, integralmente, um ele?”, Jerónimo deu de verificar, espreitou lá, escondido, e “estremecimento geral: era mesmo” um ele, sua esposa era um homem!

Não aceitou essa reencorpagem não, casou com mulher – que virasse loira, morena, ruiva ou careca, mas de género feminino. Agora gajo?

“- Desculpe, mas agora é de mais. Enquanto você for Ezequiel eu fico fora…”.

Jerónimo botou o pé na estrada e foi dormir lá onde calha ficar quem se perde. Só que (Mia, o novelo, e Nina – “It’s a new dawn, it’s a new day, it’s a new life for me”) … Jerónimo caiu doente. E quem se adoece regressa a casa e “deparou ainda com a esposa em fase de macho”. Mas o macho tomou conta dele, “lhe trouxe toalha fresca e uma aguinha benigna”. E Jerónimo lá foi caindo no adormecimento, “mesmo estranhando um raspar de barba em seu pescoço”.

E agora sim, Nina e o momento da libertação, o fim da opressão: “It’s a new life /For me /And I’m feeling good”. Jerónimo “despertou reanimado e se olhou no espelho”. Só que não era espelho não, “do outro lado da moldura era um outro trajando seu próprio corpo”. Jerónimo “avançou a pergunta: – Ezequiela?”. A voz do outro lhe devolveu na resposta: “-Como Ezequiela? Você, Ezequiela, não reconhece o seu marido?”. Desracei-me “And I’m feeling good” (tira lá os polícias da casota, já pode haver trânsito).

25 de junho de 2020.

 

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