E-CARTA AO MANO MAIS VELHO

E-CARTA AO MANO MAIS VELHO

Xénia de Carvalho│Carta que se preza começa nos bons dias e essas todas cortesias que se lhe seguem. Mas dei de escrever ao compasso de Alanis e do “That I would be good, even if I did nothing”.

Essa música fez jazz’ar meu contar, não entendia seguir caminho por essas estradas improvisadas. Lá tem minha casa e meu estar, meu ser está sempre colado em mim, não tem como escapar. Mesmo. Quem disser o contrário, papá, está mentindo. Vou de improviso então, com esse som de companhia.

Meu mundo é esse espaço que fica entre a passada barriguda e o cheiro das árvores em flor. Caminho na direcção do hospital central, vou de ouvido nessa melodia, cantarolando – mal, que tenho voz grave como tromba de elefante. Caminho para lá, para essa consulta da grávida, que vai dizer quantos meses mais faltam para o bebé nascer. Caminho no som e com o sorriso das árvores.

Essa música é minha casa, onde retorno e me reinvento quando o tempo dos homens é pesado de aceitar. Nessa minha casa estou lá eu e todos os que me definem.

Esse mundo cão pa! Cão porque fiel, volta sempre onde deve. Um desses dias pediram que fosse de dar consultoria, explicar lá aos americanos o que dizem as mulheres que perderam filhos. Era isso e o engajamento masculino na maternidade e criação dos filhos, que como sabemos é de duvidosa existência. Fazer filhos, isso os gajos fazem, mas dar de criar, ser assistente da mulher, epa! aí a coisa já não procede. Sei, sei, estava na avenida a caminhar no sorriso das árvores.

Essa música me jazz’a o pensamento…. Deixa lá, mano mais velho, vou de reorganizar. Os americanos vêm primeiro, sim, não esqueci que eles são os doadores e tudo sabem, e têm todos laptops topo gama com conexão ao satélite hiper-topo-e-tudo. Depois eu derrapo no finalzinho da história e uno as pontas com o hospital central. Vale?

Fui de consultora, especialista mano mais velho, nota lá isso, e-s-p-e-c-i-a-l-i-s-t-a de saúde social. Porra. É de boss, não?! Bom, fui de ouvir as mulheres a contarem como e por que perderam os filhos, não deram parto, correu mal, deixou sequelas depois e por aí fora. Os americanos pediram a história, mas já davam o guião e o tempo que cada uma das mulheres tinha para contar o evento 1, evento 2 e evento 3. Se contarem assim organizadas, depois já se consegue entender, né? E isso facilita a tarefa, brother, sai já codificado e é só pôr lá no inglês, que gringo manda no mundo e o mundo é em inglês.

Essa música deu de terminar, mas a net diz que dá para repetir, até ao infinito e enquanto a bateria se aguentar. Vou de repetir, se não como escrevo de casa??

As mulheres contaram, dentro do prazo pré-determinado lá pelos gringos, mas havia lá perguntas que não dava para entender. Quanto tempo a mamã levou de casa até à unidade sanitária? Levantei de manhã e assim depois de ir na machamba, já tinha ido na água, assim lá meio da tarde, acho que tarde, ou na noite, não lembro, fui dar parto. Mamã, mamã, os gringos querem saber a que hora a mamã foi dar parto. Pois, a hora é essa mesma, depois de ir buscar água, ir na machamba, fiquei cansada, fui dar parto lá na noite. Mamã, os gringos isso não entendem, é tempo desse, vês esses ponteiros? É desse tempo que tens de falar. Epa, esse não conheço… Mamã, o evento 1 foi à tarde ou à noite? Lembra lá, mamã. Era tarde noite…? Mas não estavam a pedir para contar como perdi filho? Sim, mamã, mas ainda não, esse é evento 2. Ah…

Essa música continua aí, por detrás dessa carta que te escrevo, mano mais velho, “That I would be good even if I lost sanity”…

Foi no ouvir das histórias que ouvi a minha. Não, mano mais velho, não tive criança. Perdi assim, como essas mulheres também. Contam depois o que tiveram, e eu encontro-me lá, tendo o mesmo, sem perceber bem o que era mesmo. E vê lá, mano, eu até doutoramento fui de fazer, e em inglês. Não serve, não explica. Brother, isso da saúde social é como a saúde mental, varia conforme as medições.

Essa música me empurra para lá, oiço o som das flores dessas árvores que enfeitam lá o hospital central…

Essas mamãs vêm até mim. Suas histórias, quem as ouve? Alguém aí nesse mundo dos que tudo sabem parou? Alguém escutou mesmo? É que me explicaram que o tempo para escutar as mulheres era suficiente, e eu de achar que não tem tempo não, que essa história de perder filho não tem compasso, é ao ritmo de quem conta. Sei, mano mais velho, tenho de me adaptar, de aceitar que o mundo manda como devemos fazer. E que devemos ficar todos em processo de aceitação. Epa, mano mais velho, mas essa música, “That I would be good if I got and stayed sick”, essa música me leva no sentido contrário. E-te-foste mas e-te-aqui. Lembro de ti, sempre. E das vozes dessas mulheres, que também são a minha. E-tempo de parar e escutar. Vamos fazer diferente desta vez, e-mano mais velho? Dá aí um empurrão, agita os búzios, dá porrada cá em baixo com o trovão, agita as águas e eu cá estou, e-por enquanto, mas e-free.

Um abraço, mano.

25 de abril de 2020.

RELACIONADOS:
Uma voz feminina na pandemia: “Cidadã de segunda classe”

Xénia de Carvalho │A pandemia me devastou, mas não me quebrou não. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete). "Eight to the bar", há quem lhe chame. Usam-se oito notas. De Leia mais

A raça, o novo amanhecer e a autenticação do ser

Xénia de Carvalho│ Dizem-me aqui que raça é tema de debate aceso, coisa científica e necessária para o entendimento das desigualdades sociais e económicas que grassam nesse mundo vasto. Dizem-me Leia mais

“O país que ainda não existia” e a morte da máquina de costura

  Xénia de Carvalho│ Andei eu à procura de uma história, revolvi memórias e livros antigos, e não é que acabei onde sempre começo? N’ “o país que ainda não Leia mais

2 Comentários

Comments are closed.