Adriano João Tchauque│Moçambique tem sido marcado, nos últimos anos, por uma onda de ataques, com destaque para a zona centro. No início de Outubro 2017, começou uma outra contestação violenta ao Estado, na província de Cabo Delgado.
Inicialmente associado a um banditismo de mera perturbação da ordem pública, o fenómeno rapidamente ganhou proporções alarmantes, multiplicando-se os ataques. Em Dezembro de 2017, a Polícia da República de Moçambique, ao mais alto nível, esteve na zona e visitou os distritos de Mocímboa da Praia e Palma. No que realizou na vila sede de Mocímboa da Praia, o Comandante Geral da Polícia deu um “ultimato” aos atacantes, decretando sete dias para se entregarem às autoridades (FORQUILHA e PEREIRA, 2020).
No entanto, os ataques espalharam-se para outros distritos da zona norte de Cabo Delgado. Entre finais de Março e meados de Abril de 2020, a violência armada atingiu níveis nunca vistos antes, com o assalto e a ocupação temporária de quatro vilas nos distritos de Mocímboa da Praia, Quissanga, Muidumbe e Ibo (Idem).
Com esta ocupação temporária, várias indagações e análises fizeram parte do seio da sociedade civil, procurando-se apurar o seguinte: O Estado está, ou não a perder o controlo em Cabo-Delgado? Até que ponto os ataques põem em causa a soberania do Estado? Até que ponto os insurgentes são organizados ao ponto de perigarem a unidade nacional?
Neste sentido, a presente reflexão procura fazer uma análise em torno das diferentes perspectivas com relação à capacidade de resposta do Estado face ao surgimento e desenvolvimento das acções dos insurgentes. Estabelece, igualmente uma ponte de ligação entre a insurgência e a soberania do Estado, enquanto uma questão colocada em perigo. Na mesma senda, este ensaio chama-nos à razão sobre a necessidade de se repensar as acções do Governo em defender a Soberania do Estado, e também na questão da unidade nacional. Para prosseguir, nos subtítulos que se seguem, várias abordagens são postas em constante confrontação, tanto elas de entrevistados, reflexões académicas e artigos científicos.
O Estado está ou não a perder o controlo em Cabo-Delgado?
Para responder uma das perguntas acima ilustradas, importa debruçar em torno da capacidade de resposta do Estado face aos últimos ataques em Cabo-Delgado. Assim sendo, desde a propagação deste conflito nos finais de Março e meados de Abril de 2020, tem se notado várias incursões dos “Al-Shabaab” ou “Daesh” – dependendo da nomenclatura – e tentativas de resposta aos mesmos, sendo que a eficácia das actividades do Estado tem gerado diferentes opiniões e análises.
Por um lado, existe a crença expressa de que o Estado não está a perder o controlo em Cabo-Delgado. Esta ideia baseia-se nos pronunciamentos do Ministro do Interior, quando referenciava que as Forças de Defesa e Segurança abateram 50 terroristas em Cabo Delgado, depois de os mesmos terem protagonizado pelo menos 11 ataques em sete distritos. Neste sentido, no dia 13 de Maio os insurgentes foram surpreendidos pelas forças de defesa e segurança na via que liga Chinga-Ambawe. No dia 14 de Maio estes tentaram controlar Quissanga, mas tal não ocorreu, tendo resultado na morte de 8 terroristas e ferimento de outros (Jornal O País; 2020).
Por outro lado, há uma linha de pensamento que refere que o Estado pode estar a perder o controlo no Norte do país, sendo que os últimos relatos de ataques ditam que 11 foram protagonizados em sete distritos de Cabo-Delgado, resultando na destruição de casas e infraestruturas do Estado. Entre estes distritos, passa-se a mencionar: Nangade, na aldeia de Litingia, Ngologolo, Quissanga, Mocímboa da Praia, Muidumbe, Macomia e Mueda, reflectindo um avanço dos insurgentes (Idem).
Tendo em conta estas duas perspectivas, pode-se referir que as medidas com vista a barrar a acção dos insurgentes foram e são notáveis. No entanto, seria pecaminoso desta parte admitir que o Estado apresenta sucesso total nas suas medidas e que possui o controlo da província de Cabo-Delgado. Em primeiro lugar porque, o Estado Moçambicano por vários motivos tem dificuldades em combater os insurgentes, tal como o acima exposto ilustra, e as suas vitórias não tem sido duradouras, quer pelos conflitos latentes, recursos, bem como pelo movimento proto bantu da insurgência, proveniente da região dos grandes lagos.
Na mesma linha crítica, seria difícil referir que os insurgentes possuem total controlo no Norte do País, pois como as notícias reflectem a cada dia, há ataques de insurgentes de um lado e do outro da contrainsurgência. Existem medidas levadas a cabo pelo Estado Moçambicano, embora tenham apresentado algumas dificuldades, mostram-se constantes, reflectindo uma pedra no sapato dos insurgentes, que dificilmente sossegam.
Contudo, há que reter que, não importa estabelecer uma opinião cabal de qual é a real capacidade de resposta do Estado moçambicano, com relação aos ataques no norte do país, mas sim, reflectir em torno da dimensão deste grupo e procurar meios mais eficazes de resposta ao Al-Shaabab ou DAESH.
Entre a Insurgência e a Soberania
Decorrente das duas perspectivas acima referenciadas, importa trazer uma breve reflexão em torno da relação entre insurgência e soberania. Procura-se aqui, questionar até que ponto os insurgentes perigam a soberania, resultante dos últimos ataques aos vários distritos de Cabo-Delgado.
Assim, partindo da ideia de soberania de Jean Bodin, segundo a qual “seria um poder absoluto e perpétuo de um Estado-Nação”, importa discutir alguns factos resultantes dos ataques dos insurgentes, enquanto um elemento que periga a soberania.
Neste sentido, há uma ideia desenvolvida de que a soberania está em risco. Isto porque, atendendo em consideração os últimos ataques em Cabo-Delgado, transparece-nos uma possível impotência das Forças de Defesa e Segurança (FDS), na medida em que, nos últimos dois meses, integrou-se uma equipe de protecção. No entanto notou-se um fracasso da mesma alegando não ter comprido os objectivos para os quais fora requerida. Em segundo, verifica-se que, dos ataques efectuados até então, 90% são direccionados às instituições e propriedades estatais. Por fim, presume-se que há uma base estabelecida dos insurgentes no Norte do país, apesar dessa ideia suscitar opiniões adversas no seio da sociedade, sobretudo pelas medidas de contrainsurgência desenvolvidas pelo Estado moçambicano.
Aliando ao acima exposto, existe a ideia, veemente levantada, que as acções conjuntas, das FDS e dos mercenários da DAG revelam, efectivamente, que o Estado sente-se perigado quanto à sua soberania, e que, por outro lado, o Estado não precisaria de apoio externo para fazer face a insurgência.
Os insurgentes enquanto um perigo à Unidade Nacional?
Para responder a esta questão é preciso que, em poucas linhas, entendamos como os insurgentes se formaram, se desenvolveram e, sobretudo como estes estabelecem as suas actividades.
Segundo os registos, “Al Shabaab” formou-se em 2016, tendo iniciado os seus ataques armados na província de Cabo Delgado a 5 de Outubro de 2017, concretamente no distrito de Mocímboa da Praia (Chichava, 2020).
O que inicialmente foi considerado pelas autoridades moçambicanas como um mero acto de banditismo, transformou-se, em poucos meses, num conflito armado complexo, com morte de muitos cidadãos indefesos, destruição de infraestruturas públicas, habitações e a consequente crise humanitária de populações deslocadas. Independentemente do debate sobre as causas/motivações do conflito, as evidências do terreno mostram que o avanço da insurgência é alimentado pelas múltiplas clivagens, nomeadamente étnicas, históricas, sociais e políticas. A insurgência parece desenvolver-se em áreas e no seio de populações marginalizadas pelo Estado, mobilizando sobretudo jovens em ruptura com o Estado, mas também com a sociedade tradicional, na medida em que adoptam uma prática fundamentalista do Islão” (Brito, 2020: 6) apud (Forquilha e Pereira, 2020).
Esse grupo funciona com muitos desafios, mas tem o mérito de ter a consciência de que os seus integrantes estão a viver um problema comum e de que o processo de busca de solução também passa pela partilha de informação, coordenação e cooperação (DW, 2020).
Neste sentido, os insurgentes têm desenvolvido as suas actividades na esteira de dificuldades. Porém, têm se mostrado organizados, até aqui pela partilha de informação, coordenação e cooperação. Esta organização resulta de duas perspectivas ligadas às lideranças locais: a primeira, de lideranças islâmicas locais que, pelo medo estabelecido pelos insurgentes, acabam apoiando-os como forma de sobrevivência; a segunda, de uma liderança local que adere pela concepção de marginalização pelo Estado, sobretudo no que respeita aos recursos naturais.
Assim, percebe-se que o apoio aos insurgentes, proveniente das lideranças locais, pode constituir uma base de perigo à unidade nacional que há muito fora prezada e preservada.
Últimas Notas
Neste presente texto, na sua fórmula introdutória, procurou-se responder às seguintes questões: O Estado está, ou não a perder o controlo em Cabo-Delgado? Até que ponto os ataques põem em causa a soberania do Estado? Até que ponto os insurgentes são organizados ao facto de perigarem a unidade nacional?
Factos mostram-nos, em primeiro lugar que é difícil estabelecer uma resposta cabal com relação à perda de controlo do Estado Moçambicano, pois nos últimos ataques este tem mostrado por um lado, acções ou medidas com vista a estabelecer o controlo pleno, todavia não é menos verdade, também, que os insurgentes muito têm feito para que este objectivo não se torne realidade. Em segundo, presume-se que apesar da contrainsurgência, levada a cabo pelo Governo verifica-se um alerta com relação à soberania, pois os ataques demonstram isso dia após dia. Em último, constatou-se que o apoio oferecido aos insurgentes pelas lideranças locais (Islâmicas), por diversas razões mencionadas no texto, pode colocar em perigo eminente a unidade nacional.
Contudo, importa referir que o exercício não passa simplesmente em tomar partido com relação às explicações deste fenómeno, mas reside, antes, na constante reflexão e confrontação dos factos para uma abordagem clara e objectiva, que ajudará os órgãos governamentais assim como os diversos actores a resolver este problema.
Referências
BRITO, L. (2020) Geografia eleitoral e insurgência em Cabo Delgado. Maputo, IESE.
CHICHAVA, S. (2020) Os primeiros sinais do Al-Shabaab em Cabo Delgado. IDeIAS 129.
FORQUILHA, Salvador; PEREIRA, João. (2020) Face ao conflito no norte, o que Moçambique pode aprender da sua própria guerra civil (1976 – 1992)? Uma análise das dinâmicas da insurgência em cabo delgado. IDeIAS 130.
DW. (2020). Ataques de insurgentes deixam 30 mil crianças sem aulas em Cabo Delgado. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/combate-a-insurgentes-em-cabo-delgado-a-sociedade-pode-organizar-se/a-52917995 (Acessado a 23 de Maio de 2020).
Jornal O País. (2020). 50 Terroristas abatidos esta semana em Cabo Delgado. Disponível em: http://opais.sapo.mz/50-terroristas-abatidos-esta-semana-em-cabo-delgado (Acessado a 26 de Maio de 2020).
Pronunciamentos referidos pelo Professor Nuno Rogério em entrevista à VOA. Disponível em: https://noticias.sapo.mz/sociedade/artigos/o-cabo-do-medo-de-al-shabab-a-daesh-uma-incursao-em-mocambique (Acessado a 26 de Maio de 2020).