José Rafael Nascimento*│Não terá sido tarefa fácil adoptar uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao fazê-lo, em 10 de Dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas deu prova da capacidade negocial e de entendimento dos povos que compõem a Humanidade, tão diferentes nas suas culturas e condições de vida.
Entre os direitos fundamentais consagrados por esta Declaração Universal, está o da liberdade de opinião e de expressão (Artº 19º), o qual inclui a prerrogativa de procurar, receber e difundir informações e ideias. Salvaguarda-se o carácter interactivo desta liberdade, a qual compreende, não apenas o acesso e a partilha de factos, mas também de representações formadas no espírito, qualquer que seja a sua natureza.
Declara-se que este direito é individual e pode afirmar-se através de qualquer meio de expressão, sem consideração de fronteiras. Sendo certo que estamos perante um “ideal comum a atingir”, o documento insta todos os Estados-Membros das Nações Unidas a promover o respeito universal e efectivo por este e outros direitos, impedindo que alguém seja inquietado pelas suas opiniões.
A crença na liberdade de expressão e de imprensa está longe, todavia, de ser consensual. No artigo “Belief in Freedom of Speech and Press” publicado no Journal of Social Issues (Spring1975), W. Cody Wilson dá conta de um estudo empírico realizado nos EUA, no qual se conclui que uma minoria de adultos aceita plenamente o princípio da liberdade de expressão e de imprensa, e que a crença na liberdade de expressão e de imprensa está relacionada com uma diversidade de variáveis demográficas.
Mais revela o dito estudo que os padrões de relacionamento entre a crença na liberdade de expressão e de imprensa e outras variáveis psicológicas e sociodemográficas são bastante estáveis ao longo do tempo e que as pessoas que se rotulam de liberais, que são grandes consumidoras de meios escritos e que são mais activas no processo político, têm maior probabilidade de apoiar a liberdade de expressão e de imprensa.
Voltando ao Artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ele deve ser lido e entendido, como todos os preceitos legais, à luz do espírito do legislador, o qual se encontra plasmado no Preâmbulo do documento. Ao clarificar os propósitos fundamentais e os princípios orientadores da Declaração, oferece-se uma chave de interpretação que dá sentido ao seu articulado.
Assim, este Preâmbulo começa por reconhecer a existência de dignidade e valor em cada ser humano, bem como de iguais e inalienáveis direitos inerentes, sem os quais não poderá existir liberdade, justiça e paz. Não só os reconhece, como exige o seu reconhecimento universal, atribuindo ao desconhecimento e ao desprezo pelos direitos humanos os actos de barbárie, terror e miséria sofridos pela Humanidade, vitimizando indivíduos e grupos humanos em concreto.
As considerações preliminares do documento não se ficam por aqui, reconhecendo também o direito dos homens e das mulheres ao progresso social e à melhoria das condições de vida, atribuindo à falta de protecção dos direitos humanos, ou seja, à falta de um sistema eficiente de justiça, a violência que está na origem de inúmeras revoltas contra a tirania e a opressão.
Num planeta cada vez mais globalizado, os legisladores de há sete décadas tiveram a visão de buscar uma concepção comum destes direitos e liberdades, tarefa que se terá revelado, com toda a certeza, verdadeiramente árdua e ciclópica. Mas esse esforço terá de ser reconhecido como útil e facilitador do actual entendimento (possível) entre os povos e nações de todo o Mundo, dentro e fora das fronteiras nacionais, incluindo os territórios colocados sob jurisdição.
A Constituição da República Portuguesa proíbe a limitação, impedimento ou discriminação do exercício dos direitos de expressão pluralista e de partilha de informação por qualquer tipo ou forma de censura, assegurando estas liberdades fundamentais e promovendo o aprofundamento da democracia participativa. Naturalmente que, não sendo os direitos ilimitados, garante-se a todas as pessoas, singulares ou colectivas, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos em consequência de infracções cometidas no exercício destes direitos.
Por seu lado, a liberdade de imprensa é assegurada nos seus modos de expressão e criação, preservando-se a independência dos jornalistas, o acesso às fontes e o sigilo profissional. A divulgação da titularidade e dos meios de financiamento dos órgãos de comunicação social é estabelecida, impedindo-se a sua concentração accionista e o controlo por parte do poder político ou económico. O confronto entre diversas correntes de opinião e o exercício da réplica política são incentivados.
Como se disse anteriormente, os cidadãos demonstram atitudes conflituantes em relação à liberdade de expressão. No seu artigo “Free Speech as a Cultural Value in the United States” publicado no Journal of Social and Political Psychology (2017, Vol. 5), Mauricio J. Alvarez e Markus Kemmelmeier afirmam que os americanos, independentemente das suas convicções políticas, apoiam o direito à liberdade de expressão em abstracto, mas apoiam também restrições à liberdade de expressão para tópicos controversos.
Os autores sugerem, ainda, que a cultura constitui um importante factor explicativo da crença na liberdade de expressão. Assim, os cidadãos com perfil conservador relatam maior apoio à liberdade de expressão se viverem numa cultura que atribui maior importância ao grupo do que ao indivíduo, enquanto os de perfil liberal são mais motivados pela promoção da livre expressão da pessoa individual.
A defesa da liberdade de expressão é frequentemente ilustrada por esta afirmação imputada a Voltaire, mas que na verdade lhe foi atribuída ficcionalmente por E. Beatrice Hall, em 1906: “Posso discordar do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. Mas a génese deste direito constitucional nos EUA não repousa sobre uma concepção absolutista da liberdade de expressão, dispondo a Primeira Emenda que “o Congresso não publicará nenhuma lei […] limitando a liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa”.
Foi sobretudo após a I GGM que ocorreu a reinterpretação mais liberal deste preceito constitucional, por influência decisiva dos juízes liberais do Supremo Tribunal, Oliver Wendell Holmes Jr. e Louis Brandeis. Holmes Jr. sentenciou um dia que “o princípio fundamental da Constituição não é liberdade de pensamento para aqueles que concordam connosco, mas liberdade para o pensamento daqueles que odiamos”, considerando que o melhor teste das ideias residia na “”competição do mercado”, onde a sua verdade poderia ser escrutinada e definitivamente julgada.
Para estas personalidades, um Estado só poderá restringir a liberdade de expressão quando esta representar “um perigo claro e iminente”. Brandeis chegou a afirmar que “a luz solar é o melhor desinfectante, a luz eléctrica o polícia mais eficiente”, defendendo que as falácias e falsidades dos discursos nocivos deveriam ser postas em debate porque os maus argumentos se combatem com mais argumentos, i.e., melhores argumentos.
O paradigma liberal defende, portanto, três ideias fundamentais: (1) que se deve aceitar a expressão de todas as ideias desagradáveis, embora não necessariamente todas as acções perigosas, (2) que deve existir um espaço não regulado pelo Estado, no qual os indivíduos sejam livres de expressar os seus pensamentos e (3) que a melhor arma para combater as más ideias é o poder persuasivo das boas ideias.
Como afirmou John Stuart Mill no ensaio Sobre a Liberdade, “se toda a humanidade menos um tivesse uma determinada opinião e apenas uma pessoa tivesse a opinião contrária, a humanidade não teria maior razão ou justificação para silenciar essa pessoa do que esta teria, se pudesse, para silenciar a humanidade”. De facto, devemos ter convicções (abertas) e não certezas (fechadas), ou, como as apelidou Tim Soutphommasane, “verdades vivas” e não “dogmas mortos”.
Finalmente, o argumento liberal encara o papel do Estado como “capacitador da auto-realização dos indivíduos através do processo democrático” e o conflito como “uma ajuda para a apreensão inteligente e viva da verdade”. Neste sentido, a liberdade de expressão contribui para o desenvolvimento dos indivíduos e da sua individualidade. No entanto, sabemos todos que o Mundo não é o Paraíso: nem todos são poderosos e superiormente dotados, a concorrência não é perfeita e as oportunidades não são iguais para todos. Como lembrou Soutphommasane, “a liberdade total dos lobos, é a morte dos cordeiros”.
Nenhuma liberdade é absoluta e hierarquizada. E a de expressão deve também ser equilibrada com outros direitos e interesses, salvaguardando-se a protecção da dignidade humana e assegurando-se que a liberdade de expressão de cada indivíduo não seja exercida de forma desproporcional e irrazoável à custa da liberdade dos outros, designadamente ofendendo, insultando, humilhando ou intimidando.
A liberdade de opinião e de expressão, consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição da República Portuguesa constitui, simultaneamente, um valor basilar de todos os seres humanos e um “ideal comum a atingir”. Neste sentido, este direito fundamental deve ser encarado com uma garantia e oportunidade externas que carecem de ser apropriadamente exercidos por deliberação interna, sem medos nem constrangimentos.
* É bacharel em Economia, licenciado em Organização e Gestão de Empresas e mestre em Psicologia Social e Organizacional, com pós-graduação em Marketing Político e Social. Tem desenvolvido atividade docente no ensino superior, assim como formação e consultoria empresarial, depois de uma carreira de gestor em organizações multinacionais e públicas. Tem dedicado a sua vida cívica à atividade associativa, interessando-se pelos processos de participação e decisão democráticos.