SOBRE O LIVRO O ESCÁRNIO

SOBRE O LIVRO O ESCÁRNIO

Adolfo Maria*ǁ O livro “O Escárnio” é uma história construída num país dirigido por um regime ferozmente repressivo onde não têm lugar aqueles que pensam de modo diferente do poder instalado. Um país que, na sua estrutura policial de combate aos dissidentes, tem um “Departamento do Crime Teórico”!..

Não é por acaso que esta novela tem a forma de uma alegoria de algo que existe no continente africano.

O regime deste país imaginário é narrado com ironia e amargura por Mbomba Mudiatela, nome que esconde o de quem escreveu o livro: Domingos da Cruz.

A descrição dos métodos de controlo da população, do acossamento paranóico aos dissidentes (que começa na perseguição ao seu pensamento) e da terrível situação nas superlotadas cadeias, certamente que radica numa traumatizante experiência vivida por Domingos da Cruz e mais dezasseis seus companheiros que, há alguns anos, se reuniam para estudar Angola e procurar soluções. Foram presos durante largo tempo, sob a acusação de atentado contra o presidente da República.

Tal pressuposto conduz-nos a pensar que a amargura sentida pelo que lhe aconteceu, há anos, leve o autor, nesta sua obra, à enorme crueza na descrição dos métodos torcionários utilizados pelo regime do país aqui ficcionado, numa revisitação aos mais bárbaros meios de tortura praticados em tenebrosos períodos da história da humanidade.

Talvez por considerar que o seu país, Angola, continua numa situação de não mudança efectiva (mudança que o novo presidente anunciara), o autor veicula o seu desencanto nesta alegoria de um país onde parece não haver redenção porque as poucas vozes dissidentes não encontram eco suficiente na população (controlada e conivente com o poder) e a elite é cúmplice e instrumento dos maiores desmandos do repressivo poder político.

A grande cultura e o plurifacetado activismo de Domingos da Cruz (neste caso Mbomba Mudiatela) estão espelhados neste livro, “O Escárnio”. Por um lado, através de textos de natureza sociológica e filosófica do professor Verax sobre a loucura, os lambe-botas e os lambe-cus. Por outro, através da actividade pedagógica do professor e da alocução de Niara em Nairobi, integrada na actividade para divulgar em toda a parte a real situação desse país onde imperam muito estranhos conceitos e práticas de «democracia» e que se intitula República Democrática do Matobu. Um país imaginário… mas com várias semelhanças a alguns outros desta nossa África.

*Escritor e comentador na RTP.

Lisboa, 08-08-2021

A foto que ilustra o artigo,  pertence a Professora Vanessa de Oliveira. Extraída no seu perfil do Facebook.  

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