Uma voz feminina na pandemia: “Cidadã de segunda classe”

Uma voz feminina na pandemia: “Cidadã de segunda classe”

Xénia de Carvalho │A pandemia me devastou, mas não me quebrou não. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete). “Eight to the bar”, há quem lhe chame. Usam-se oito notas. De quê? Falo do boogie-woogie, blues, a música, em que se utilizam oito colcheias, as tais notas, que entram assim num bar, oito de uma só vez… Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Venho contar a história de uma mulher nigeriana com banda sonora de um homem norte-americano exilado, um que swinga. Clica aí no (53) Bill Coleman – Afromotive In Blue – YouTube e escuta lá, porque ler isso sem som nos descama a alma e descasca a cabeça. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

O trompetista que swinga assim, Bill Coleman (1904-1981) – clicaste aí? Está tudo na net, esse texto que lês e o Coleman, swinga, troca, clica e lê, estás em casa, te covid’o. Repito: o trompetista norte-americano que swinga desse jeito “Eight to the bar” mas com toques de funk, partilha com a escritora nigeriana, Florence Onyebuchi “Buchi” Emecheta (1944-2017), o percurso migrante de quem sonha e se vê aprisionado no querer ser em sítio-que-não-deixam-ser. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Coleman se exilou dos States para a terra da liberdade, Emecheta rumou da Nigéria à terra prometida. Do seu lado, o músico explicou que “Vários músicos negros se tornaram expatriados para escapar à segregação racial nos Estados Unidos” (The New York Times, 26 de agosto de 1981), indo ele para França em 1948, onde veio a morrer, enfraquecido e doente, mas tocando trompete mesmo que sentado. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Florence Emecheta diz nessa história que vou contar daqui a nada que a terra prometida era o Reino Unido, que “devia ser uma espécie de Paraíso”, se justificando assim do seu sonho em emigrar. Isso tudo porque o pai de Adah, a personagem da história da nigeriana, quando falava em Reino Unido o fazia em tom grave e misterioso, contido, “com uma expressão tão respeitosa no rosto que até parecia estar falando de Deus Santíssimo”. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete). E entramos na história, no enredo de seu nome “Cidadã de segunda classe”, escrito em 1974 (traduzido por Heloisa Jahn, Editora Dublinenese). Nos introduzimos na história acompanhados dos oito que entraram num bar… Depois explico a conectividade com a pandemia 😉

 

“Cidadã de segunda classe” – Emecheta se autobiografando

Adah, ou Emecheta-em-formato-personagem, nasceu mulher e “ninguém pensou em registrar seu nascimento”. Daí que pense que terá sido durante a Segunda Guerra Mundial que ocorreu seu nascimento. “Sentia-se com oito anos quando estava sendo guiada por seu sonho”. Seu nome se deve à sua avó paterna, que se deu por falecida quando o seu pai entrava nos cinco anos, prometendo regressar. Promessa de avó é promessa de Mulher. Se cumpre. Só que – nessas histórias em que o protagonista é mulher, há sempre os “só que…” – repito: só que o pai de Adah deixou uma “única ressalva [que] era não querer que o primeiro filho fosse uma menina”. Mas nisso do querer e determinar… “Eight to the bar”, nesse caso foi de fugida, para apagar as mágoas… Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Primeiro filho de Pa foi mulher. Não cumpriu sua ressalva. Pa lhe deu tantos nomes! Defendeu que ela era a sua “mãe voltando” … Mas primeiro filho mulher?? Não registou não. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete) – não esquece o ritmo, swinga com Coleman, lê na cadência dos “Eight to the bar”.

Dos vários nomes, a mãe, Ma, simplificou para Adah. Lhe deu vantagem: “quando passou a frequentar o Ginásio Metodista para Meninas de Lagos, onde entrou em contato com missionários europeus, seu nome foi um dos primeiros que eles aprenderam e que pronunciavam corretamente”. Lá lembra ela que as outras raparigas tinham nomes muito compridos, maiores do que o conhecimento dos missionários, que lá na Europa e nessa em que o English prevalece, nome que é nome pronuncia-se de uma só vez, não há cá nomes com mais do que três sílabas! Está de se ver, né? Adah ou “Oluwafunmilayo Olorunshogo!”. A língua dos missionários se enrolava e se perdia ainda no início do Oluwafu… Mary, Liz, Emily – tudo aí com o i bem acentuado – é a cadência dos estrangeiros. Naturalmente, Adah lhes soava bem. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

A mulher que encarnou sua avó tinha esse sonho que falava… Não contei não? Aiii, vai de seguida. Lê no parágrafo abaixo. Abaixinho mesmo! Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

A história se inaugura no cruzamento do sonho de Adah com a chegada do primeiro lawyer de Ibuza, de seu nome Nweze. Esse moço nigeriano tinha ido lá, na terra em que o reino diz que está unido, e se tornou lawyer. Advogado mesmo. O primeiro advogado de Ibuza, terra natal dos pais de Adah. E isso não é motivo de celebração?? Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Escuta lá a importância do lawyer: independência, qualificações British, regresso e riqueza. Não captaste não? Emecheta-em-formato-personagem explica: Nos finais de 1940, nigerianos (homens) da classe média começaram a ir para a terra de Sua Majestade Unida, ainda a Nigéria era colónia. Era gente com instrução, vinha e ocupava cargos administrativos coloniais. “Esses homens estavam a par da situação política mundial e sabiam que o colonialismo (…) em breve se tornaria caro demais para os amos coloniais; que o desenlace seria a independência – num movimento semelhante ao da libertação dos escravos quando sua manutenção se tornara excessivamente cara”. Com a independência viria a “prosperidade (…) dinheiro à beça”.  Mas isso só para quem era devidamente certificado, se entenda English certification. Daí terem antecipado o progresso e foram lá na Inglaterra se certificarem. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Mulheres? Pois, isso só de sonho. Repegando na narrativa, que desviei para falar dos antecipadores da independência, certificados pelo Reino Unido – naturalmente -, Nweze, First Lawyer de Ibuza, regressava na altura em que Adah sonhava. Enquanto a miúda se perdia no nevoeiro da realidade, as mulheres lhe prepararam, ao First Lawyer, uma recepção que só vista! Cantaram, coseram roupa nova e o foram receber ao porto. Adah ficou proibida de acompanhar, não ia não. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Isto porque nos entretantos tinha feito um acto de guerrilha: aproveitando a conversa das mulheres, saiu desapercebida e se apresentou na escola sozinha. Uns tempos antes da chegada do ilustre Certificado. Adah cansou de ficar ouvindo histórias entre mulheres, de assistir sua mãe a “a desmanchar o penteado para em seguida retrançá-lo”, de não ter nada para fazer. E como todos sabemos, as escolhas têm consequências, em especial se se nasceu mulher e meio pobre ainda… A mãe lhe disse: “Agora que demos escola a você, você quer ir para o porto [esperar Nweze]. Não, não vai. Você escolheu escola. E vai ter que ir para a escola a partir de hoje e até seu cabelo ficar branco”. E foi nesse regresso do Certificado que Adah virou estudante para sempre. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

E como conta a avó regressada, uma Presença passou a viver do lado dela: o sonho de ir um dia para o Reino Unido. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Esse dia chegou. Já Adah casara e sustentava o marido, estudante fracassado (isso porque na Nigéria não tinha como se concentrar, em English Unido a coisa ia, em English Nigeriano não procedia), religioso pouco dado a consistências de crença, mas

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HOMEM, o primeiro a poder ir para o Reino Unido. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Epa, as voltas que essa Adah deu, como deu!, para convencer a família do marido (a mulher é bem, passa de não ter benefício fiscal para benefício adquirido na família adquirente)! Levou maningue tempo, pagando a estadia do marido, sustentando filhos e casa, mas seus sogros se deram por vencidos. A avó regressada podia emigrar, a família do marido lhe deixava. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Adah desembarcou no Reino Unido. “Pa, estou no Reino Unido, cantava seu coração para o pai morto”. Mas como faz frio!!! E nem uma recepção deram aquando da sua chegada… “o navio fora acolhido com alegria e animação em portos como Takoradi, Freetown e Las Palmas. Se Adah fosse Jesus, teria ignorado a Inglaterra”. A terra dos sonhos parecia esvaziada de seres humanos… Se o First Lawyer se aguentou em terra cinza, Adah com certeza o faria também! Decisão tomada. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Surpresas sempre vêm acompanhadas. Não sei bem explicar o porquê disso. Vem uma, segue-se outra e para que não nos habituemos à tranquilidade, cai-nos outra em cima. Para Adah não foi diferente não. Seu marido, Francis, a foi buscar. Xiii, como mudara! “O Francis que veio recebê-los era um novo Francis”. A beijou em público e tudo! O que não diriam lá em Ibuza… E depois deu em dizer piada, assim que viu a filha que não conhecia (lembra que ele foi para a terra Unida estudar porque lá na Nigéria a concentração o incapacitava), quando viu sua filha disse que podia “morrer em paz”. Adah não entendeu não! “Como assim, morrer em paz?”. Francis lhe explicou: na terra Unida tudo tem piada, até a morte. Os habitantes Unidos “fazem piada com tudo, até com coisas sérias como a morte. As pessoas acham graça nisso”. Adah inquietou, olhou em volta, rematou que o marido a estava enganando, inventando essas histórias – “Os brancos que via não pareciam pessoas capazes de fazer piada com coisas como a morte”. Dessa refutação veio a outra surpresa, a terceira. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Homem marido de Ibuza, da Nigéria, não entende isso de a mulher pôr em dúvida o que macho africano afirma. “Os machos africanos têm o direito de vir para a Inglaterra para ficar civilizados, só que esse privilégio ainda não foi concedido às fêmeas”. Adah ainda pensou em rematar, mas a separação ia longa e discussão não era forma de entrar nessa nova vida não. Emecheta-em-formato-personagem “rezou para que os dois tivessem forças para acolher a civilização em seu relacionamento”. E lá seguiram para casa, uma casa Unida, com certeza. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Eu lhe disse que essa história era assim com vertentes dentro de variáveis? É dessas mesmo, de uma contadora de histórias porreta! Nisso me veio à lembrança a pandemia – é que iniciei a recontagem com o “eight to the bar”, exilado, como Emecheta-em-formato-personagem, e descurei de explicar a conectividade com a pandemia. Vou só de rematar essa “cidadã de segunda classe” e já conecto. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

A casa Unida não deixava ter filhos em habitação conjunta e mulheres que tinham emprego de branco – Adah teve o desabuso de ir trabalhar numa biblioteca (disse que ela tinha ido na escola lá na Nigéria, trabalhado no consulado dos Unidos? Pois foi, e quando chegou no Reino tinha English certification e vai disso arranjou trabalho como os nativos). Os

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lá do gueto, acompanhados do coro de suas esposas, reprovavam essa Adah, mulher que se achava branca! Que desse os filhos para serem criados por mãe de adopção (costume dos brancos) e fosse trabalhar nas fábricas. Era esse o papel destinado para mulheres nigerianas. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Emecheta-em-formato-personagem recusou de seguir essa via, foi na luta e se conseguiu independentizar de um Francis estudante-permanentemente-reprovado-desempregado e religioso-inútil-fanático. Mas levou tempo, como levou tempo! Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Não sei quando Adah deu de perceber que estava na hora de se independentizar, mas creio que quando Francis lhe queimou o manuscrito, esse acto despoletou o processo de afastamento. Certo dia, a avó regressada escreveu um livro e o mostrou aos colegas da biblioteca, que lhe disseram que tinha talento. Aí, Adah deu de pensar que podia colectar a opinião de Francis, que lhe disse sem demoras: “Você sempre se esquece de que é mulher, e negra. O homem branco mal consegue nos tolerar, a nós, homens, isso para não falar em mulherzinhas desmioladas que nem você” … O marido da avó regressada riu, como riu! “Uma mulher escritora na própria casa dele, e isso num país de brancos?”.

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A trama se adensa. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Francis queimou o manuscrito, única cópia de Adah, sem ler. Copiou o que aprendeu, deu andamento à tradição. Agiu sem tolerar – na casa dele?? Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Agora sim, conecto com a pandemia. Cidadã de segunda essa Adah, vírus esse que nos trouxe de regresso à realidade, soprou o nevoeiro, afastou os sonhos e nos devolveu o retrato do que somos. De segunda. Eu posso, tu não. Eu tenho direitos, tu não. Separar, hierarquizar, distinguir, nos-Covid’a a exercer a distinção.  Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete).

Espero que no final dessa história, porque foi no meio da pandemia que me deparei com Emecheta-em-formato-personagem, repito: espero que no final mesmo, no derrapar da pandemia, não estejamos tão distintos e consigamos reagir e terminar como Adah – escrevendo, ou exercendo o que quer que tenhamos escolhidos, independentizados, desrotulando e seguindo no sonho. Com Coleman. Que terminou tocando sentado, mas tocando. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (despede-se o trompete).

 

Xénia de Carvalho

12 Janeiro de 2021

 

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