AS FLORES DO MAL

AS FLORES DO MAL

 

Marcelo Lima* │O artigo 19° da Declaração dos Direitos Humanos assegura a todos os indivíduos o direito de liberdade de opinião e de expressão, além da livre possibilidade de manter sua opinião e divulgar suas ideias e pensamentos sem nenhuma interferência coercitiva que o impossibilite de tal feito.  Mas aqui na América do Sul nem tudo são flores. Minto, na verdade vivemos uma grande primavera das flores do mal.

Na Bolívia está em curso um golpe de Estado em que as forças armadas bolivianas actuam como o braço forte e mão amiga das milícias religiosas latino-americanas. São aproximadamente 420 quilómetros que me separam da fronteira boliviana, mas dá para sentir um cheirinho de racismo e ódio aos povos andinos e negros que chegam dos ventos bolivianos, junto com as fumaças e cinzas das bandeiras Whipala queimadas, símbolo das nações originárias. A ascensão da ultradireita boliviana, sintetizada pela aliança religiosa, conservadora e paramilitar nos fornece imagens ridículas, tal como a do líder da extrema direita, Fernando Camacho, ajoelhado diante da bíblia após a sua invasão ao Palácio Quemado.

O Chile queima com o fracasso neoliberal.  Privatizações do sistema de saúde, do ensino superior, das aposentadorias e até mesmo da água levaram à uma situação insustentável. O povo chileno ocupa as ruas com ira e rebeldia, o presidente Piñera responde impondo um estado de emergência, com toque de recolher e muita opressão militar, manifestadas em detenções em massa, desaparecimentos de opositores, estupros e milhares de jovens cegos, vítimas das forças armadas que atiravam em seus olhos metodicamente.

Aqui as flores do mal obviamente também estão florescendo. O Brasil testemunhou a aliança entre o ultraliberalismo (radicalização da agenda liberal e corte de direitos sociais, redução do papel do Estado) e o ultrarreacionarismo (negação da ciência, questionamento dos direitos civis, associada ao fundamentalismo cristão, racismo, misógina e trans/homofobia) que teve como conquista da hegemonia o ano de 2016, sob o (des)governo de Michel Temer e posteriormente com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil em 2018. Como consequência desta aliança, passamos por um processo de enfraquecimento institucional e um freio no movimento democrático do país, desconstruindo o avanço ao Estado de bem-estar social projetado pela Constituição de 1988.

Discursos que vêm se tornando hegemónico, como libertarianismo (neoliberalismo), fundamentalismo religioso e anticomunismo têm ganhado cada vez mais espaço no cenário político brasileiro. O neoliberalismo prega pelo Estado mínimo e hegemonia do livre mercado, enquanto o anticomunismo ressurge no cenário nacional selecionando o Partido dos Trabalhadores e a Venezuela como os inimigos de hoje. O fundamentalismo religioso (protestante e católico) actua por meio do estabelecimento de “verdades reveladas” e inquestionáveis, constantemente atacando pautas como o direito ao aborto e famílias inclusivas não tradicionais.

O foco especial dado neste artigo está no campo da educação. Local de onde actualmente faço parte como professor de Filosofia na rede pública de Mato Grosso do Sul.  A educação têm sido vista como uma estratégia de dominação política a partir dos olhares ultrarreacionários. Temos testemunhado a militarização das escolas e projetos como a Escola sem Partido actuam para alavancar o alcance da mensagem ultraconservadora, por meio da criação de um pânico moral e ideológico, construindo um autoritarismo que impossibilite um verdadeiro acto educacional.

Como consequência do ultraliberalismo e do ultrarreacionarismo, as escolas públicas estão passando por um processo de militarização. Tal processo já ocorreu em Goiás, Distrito Federal, Roraima, Pará, Amazonas, Bahia, Ceará, Tocantins, Sergipe e Piauí. Com o governo Bolsonaro, tal iniciativa ganha bastante força, tendo em vista que no dia seguinte de sua posse, Bolsonaro criou  a Subsecretária de Fomento às Escolas Cívico-Militares. Os argumentos em prol da militarização se baseiam em relatos de violência no interior das escolas. Tais relatos são abordados de forma espetacular, visando otimizar a força argumentativa.

As escolas militarizadas são implementadas em regiões periféricas, pobres e que lidam com problemas de criminalidade. O discurso acerca da defesa destas escolas giram em torno da “pacificação” da violência e indisciplina dos alunos. O que vemos aqui é uma violência coercitiva que solidifica uma hierarquia autoritária e repressora contra as comunidades discente e docente.

Foto/rmc

Com a onda conservadora e a militarização das escolas, a condição de trabalho dos professores tem se tornando cada vez pior. Damos aula com o peso de denúncias estúpidas pairando por nossas cabeças, como as de doutrinação ideológica marxista e ideologias de gênero em prol da homoerotização das crianças e adolescentes.  Um bom exemplo de como os professores foram desenhados como o perigo da nação está na proposta feita pela  ministra dos Direitos (Des)humanos, Damares Alves. Totalmente alinhada com o ultraliberalismo e ultraconservadorismo, Damares propôs um canal de denúncia contra professores que exerçam discursos que contrariem a moral, ética e religião da família brasileira. Qual família? A família racista, misógina, ignorante, transfóbica e fascista que apóia cegamente a política de Bolsonaro e vê o golpe de Estado na Bolívia com gosto.

O perigo da censura e do terror no Brasil está tão banal que o ministro da Economia, Paulo Guedes, juntamente o com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), conhecido na internet brasileira como o Dudu, o filho do presidente, comentam tranquilamente sobre a possibilidade da reedição de um Acto Institucional  n.º 5, dispositivo criado pela Ditadura Civil-Militar brasileira (1964 – 1968) que possibilitou o fechamento do congresso, cassação de mandatos políticos e suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão, normatizando de vez o estado de exceção e terror.

O Brasil está demonstrando como a Declaração dos Direitos Humanos vale como carta morta e vazia. Por todos os lados, levamos porradas na cabeça seguidas de um “CALA A BOCA”. A primavera sul-americana está radiante no Brasil.

*Professor. Mestrando em Estudos Culturais PPGCult – UFMS/CPAQ.

Campo Grande – MS, Brasil.

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