Papel das ciências sociais e humanas em tempo de pandemia

Papel das ciências sociais e humanas em tempo de pandemia

Domingos da Cruz (Org.)Uma vez que o combate à pandemia da COVID-19 está demasiado focado nas ciências biomédicas e ou farmacológicas, gostaríamos de propor aos leitores uma reflexão inversa (que já alguns começaram a fazer). Analisar o papel das ciências sociais e humanas em tempo de pandemia. Para nos ajudar a fazer luz, convidamos catorze pesquisadores de quatro continentes e seis países. Todos responderam a duas questões: Qual é o papel das ciências sociais e humanas em tempo de pandemia, COVID-19? E a sua área em concreto?

Para nós é demasiado óbvia a relevância destas ciências em todas as épocas. Uma pandemia, tal como esta é um problema transdisciplinar, como indicam vários questionamentos. Se as pessoas falam em solidariedade, em coragem, em bravura, estamos perante questões éticas; quando as pessoas falam em resiliência, stress, angústia, medo do futuro, estamos perante questões psicológicas e antropológicas; quando as pessoas falam sobre a possibilidade de um ‘humanicídio universal’ e que tipo de sociedade queremos construir depois desta nuvem cinzenta passar, então, estamos perante um problema filosófico e teológico também; quando as pessoas falam sobre o acentuar das desigualdades, caos nos mercados, do desemprego, a quem priorizar para o acesso ao ventilador, e do confronto entre nações, então, estamos perante quatro problemas de áreas científicas variadas ─ sociológico, económico, bioético e geopolítico ─ e ainda assim, alguém duvida do papel das ciências sociais e humanas nestes tempos? Em adição é preciso lembrar o papel fundamental das ciências da comunicação, das ciências da educação, da ciência política e administração pública, entre outras cujos papéis são demasiado vistosos por estes dias sombrios. Eis então as palavras dos estudiosos:

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Daniel Matsinhe. Professor e Doutorando em Línguas e Literatura pela Universidade de Waterloo, Canadá.

«Na minha opinião, o papel das ciências sociais e humanas não sofre mutações nenhumas independentemente do clima social que o mundo atravessa. Seu papel fundamental foi e sempre será de administrar a humanidade o conhecimento de si mesma porque as condições indesejáveis nas quais ela se encontra mergulhada emanam da ignorância do homem. Infelizmente, a luta continua e a vasta maioria ainda não está em medida de compreender, muito menos apreciar, a importância deste ramo académico visto que as atenções do cidadão comum estão constantemente centradas na satisfação incessante das suas necessidades básicas de vida.

O místico e filósofo canadiano, Manly P Hall, salienta múltiplas vezes na sua publicação “Secret Teachings of all Ages” que a ignorância, a incapacidade de usar a mente humana de maneira construtiva, é a pandemia das pandemias que impedem o desenvolvimento humano. Durante esta pandemia da COVID-19, que é sem dúvidas uma situação indesejável para todos nós, pesa ‘às ciências sociais e humanas a responsabilidade de despertar a consciência humana. Assim, as longas quarentenas, observadas de um ponto de vista optimista, representam para este domínio académico uma oportunidade ímpar de estimular o pensamento crítico da população mundial.

Curiosamente a minha formação académica é exactamente neste ramo científico especializando-me especificamente na fluência linguística no seu todo. Sou de opinião que o conhecimento aprofundando de uma ou diversas línguas é essencial para uma transmissão correcta e precisa de informação, parcelarmente no período que atravessamos.

Actualmente a informação sobre a COVID-19 é difundida pelos canais públicos (oficiais), mas também é veiculada por fontes privadas. As massas populares, alvo da informação posta em circulação, estão automaticamente treinadas a ter por verdade a versão proveniente de fontes oficiais, rejeitando categoricamente o ponto de vista das fontes privadas. Este fenómeno infeliz acontece porque, na maior parte das vezes, as fontes privadas não tomam o cuidado necessário de instrumentalizar a língua a seu favor de modo que a informação que apresentam desperte a curiosidade dos receptores. A difusão de informação, seja ela escrita ou verbal, é uma arte que deve ser aperfeiçoada estudando a mecânica da língua».

Daniel Matsinhe. Professor e Doutorando em Línguas e Literatura pela Universidade de Waterloo, Canadá.

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Profa. Dra. Maria Creusa de Araújo Borges. Professora Associada III do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ, UFPB, Brasil).

«Penso, primeiramente, que a tarefa das Humanidades é problematizar o tempo presente, esclarecer sobre questões problemáticas com base num método rigoroso de análise. Primeira questão que se coloca, então, é que tempo é este? Quais são suas questões problemáticas? Desde a crise de 2007-2008 nos países centrais do capitalismo, assiste-se a um processo de reconfiguração dos pilares fundadores da Modernidade Ocidental. A imagem emblemática que constitui a Modernidade, o contrato social da Modernidade, de que os seres humanos cedem um espaço da sua liberdade em prol de uma sociedade organizada, sem selvageria, e que coloca o Estado como ente organizador das relações sociais, passa a ser desconstruída a partir da crise de 2008 e suas respostas, sobretudo, em termos de respostas do Estado. As decisões para a saída da crise foram resultado de articulações entre o Estado e o Mercado, especificamente do Mercado Financeiro. A ideia de um Estado mínimo não se sustentou, pois o Estado interveio bastante na economia no sentido da recuperação dos bancos e isso num país que levantou a bandeira do Neoliberalismo, como os Estados Unidos da América. Isso demonstra que o Estado Interventor, Estado de Bem-Estar Social ou Estado Providência cumpre uma tarefa fundamental no quadro de sociabilidade capitalista. Entretanto, a resposta para a saída da crise concentrou-se na ajuda ao sistema bancário, deixando os grupos vulneráveis à mercê de sua própria sorte no contexto de crise do capitalismo financeiro. O que está a ocorrer agora constitui o acirramento dessa crise em níveis nunca vistos antes com a pandemia da COVID-19. A pandemia deu visibilidade a desigualdades já existentes, mas que passam a ser notadas de maneira mais forte num quadro de assunção de estratégias de trabalho remoto.

Segundo, nem todas as sociedades estão preparadas para modos de vida remotos, virtuais ou on-line. Logo se percebe que nem todos os trabalhadores são considerados “essenciais” se não tiverem a preparação e a formação adequadas. A chamada “sociedade em rede” exclui muita gente. Nem todas as pessoas estão conectadas virtualmente, existe muita exclusão virtual. “Sociedade do Conhecimento”, “Sociedade da Informação” são termos que não fazem sentido para muitas pessoas. Isso fica mais visível quando se presencia a aglomeração de pessoas em filas bancárias para o recebimento do auxílio emergencial, por não conseguirem aceder a conta por aplicativo. Verifica-se, de pronto, que a sociedade global, em rede é excludente. Mas, parece que não notávamos essa questão como agora em tempos de pandemia.

E a sua área em concreto? Passo, a partir de agora, para as implicações educativas do atual cenário de pandemia. A pandemia tornou visível uma situação problemática no campo da educação. Por ser uma área estritamente vinculada à configuração de uma sociedade da informação e do conhecimento, supunha-se que estaria mais preparada. Mas isso não ocorre. O que está a ocorrer é o acirramento das desigualdades de acesso e de permanência na educação formal escolar em todos os níveis de ensino. A educação a distância exige como pré-requisito a existência do instrumento tecnológico para a efetivação da mediação e interação entre professores-alunos e alunos-alunos. A existência do diálogo não prescinde do recurso tecnológico. Além disso, exige acesso à Internet de boa qualidade. Verifica-se, portanto, que o diálogo, princípio basilar da educação e do ensino-aprendizagem, fica prejudicado. Isso é, apenas, uma dimensão do problema que penso ser duplamente um problema: 1. A deficitária formação de professores em tecnologia e inovação. Os professores não foram preparados a ensinar virtualmente, a usar aplicativos nas suas aulas, a produzir recursos didácticos com aporte tecnológico. O quadro actual exige uma mudança radical nos planos de formação docente. 2. Do ângulo dos alunos, estes não têm espaço de estudo apropriado em casa, falta o acesso à ferramenta tecnológica e a falta do próprio hábito de estudo guiado por si mesmos constituem dificuldades para a efectivação da aprendizagem, um aspecto primordial do direito à educação como um direito fundamental, consistindo no seu núcleo duro. E não é de qualquer aprendizagem que se está a falar, mas de aprendizagem com qualidade.

Penso que assistimos a uma grave crise de educação formal. As estratégias governamentais precisam de ser repensadas, dos planos de formação docente à configuração de uma nova escola centrada na inovação e na solução de novos problemas. São, na verdade, lições a ser aprendidas com o actual cenário de pandemia. O retorno ao status quo anterior não será mais possível e o que estamos fazendo para repensar a nova educação, com uma nova concepção de sociedade e de ser humano? É esta uma grande lição que fica. Nesse quadro, as famílias serão cada vez mais chamadas a desempenhar um papel de instrutoras, além de serem educadoras. Terão que, literalmente, instruir, ensinar os seus filhos, tarefas que nem todas as famílias têm condições de realizar. O imperativo constitucional, inscrito no art. 205 da Constituição brasileira, parece agora inverter-se: a educação, direito de todos, de dever do Estado e da família, passa a ser, inevitavelmente, dever da família em primeiro plano. As famílias precisarão ser repensadas no sentido de se habilitarem a educar, mas, sobretudo, a instruir».

Profa. Dra. Maria Creusa de Araújo Borges. Professora Associada III do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ, UFPB, Brasil).

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Gilberto Teixeira. Professor e Economista. Linhas de pesquisa: Microcrédito e Economia Informal.

«Há probabilidades remotas ou mesmo inevitável a ausência das ciências sociais e humanas no combate a pandemia da COVID-19 por uma razão óbvia: afecta a sociedade e a economia.

Quanto a sociedade gostaria primeiro despertar a dimensão ética do confinamento, do portador do vírus e da família do portador. É importante que os tomadores de decisão percebam que as políticas geradas devem ser exaustivamente pensadas e bem elaboradas de formas que não elevem os preconceitos contra o outro, fundamentalmente contra o portador do vírus e a família deste. Quanto ao confinamento, dependendo da região, o poder económico e financeiro é uma arma poderosa nas mãos dos sem ética para discriminarem os pobres que têm dificuldade de cumprir com as medidas de prevenção estipuladas pelas autoridades sanitárias devido às necessidades fisiológicas desenhadas na escala de Masclow (alimentação), ou seja, as medidas de confinamento podem agudizar os espíritos arrogantes dos endinheirados contra os pobres, isso não apenas no âmbito micro (de pessoa para pessoa) mas também na esfera macro (de país para país), nisto vale o objecto de várias ciências socais e humanas para a construção do homem.

Este panorama micro e macro revela a ponta do icebergue da real falta de solidariedade que pode vir a ser agudizada pela pandemia, desembocando numa neo-exploração e perde-se o foco: o combate à COVID-19. Que a história nos traga a memória da exploração!

Ao falar da importância de outras ciências vale apenas lembrar que os assistentes sociais, os comerciantes, produtores e tantos outros que tornam possível o cumprimento das medidas sanitárias têm demonstrado que a área da saúde não basta para o combate à pandemia, sem nos esquecermos que o estudo sobre o distanciamento social e confinamento feito  em Singapura não pertence às ciências médicas. As estatísticas que despertam as mentes sobre a gravidade do incumprimento das medidas, a informação passada em todos os meios de comunicação sobre a gravidade da doença constituem património das ciências sociais e humanas até a consciência do dever “imposta” pelo conhecimento não científico, o medo do analfabeto de ser contaminado pelas pessoas infectadas de mau carácter (sem tirar o mérito dos bons) pela via da denúncia são de valor importante em tempo da pandemia da COVID-19.

Podemos afirmar que a melhor contribuição destaca-se em dois pontos: a) todas as áreas da ciência devem perceber que de forma isolada não captam tudo de um determinado fenómeno. Pessoalmente não creio que existam fenómenos específicos de uma ciência, mas sim, leituras específicas do fenómeno por uma ciência, isso leva-nos ao segundo ponto b) a contribuição consistente está no trabalho multi-interdisciplinar. Porque o que realmente importa é o bem estar do ser humano, se for  o contrário preferiria não conhecer nenhuma ciência!

Isso leva-nos a uma conclusão comparativa com o futebol. Todos jogam mas o marcador é notável. Todas as ciências participam, mas os hospitais, as drogas doseadas declaram que a medicina é notável».

Gilberto Teixeira. Professor e Economista. Linhas de pesquisa: Microcrédito e Economia Informal.

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José Rafael Nascimento. Docente e consultor. Área Científica: Psicologia Social e Organizacional, Marketing e Gestão de Empresas.

«Abateu-se sobre a Humanidade uma pandemia de coronavírus designada por COVID-19. Não é a primeira e, muito provavelmente, não será a última. Como outras, pode ter sido causada por um acidente evolutivo natural ou por acção negligente do Homem, excluindo-se (por demasiado pérfida e estúpida) a hipótese de contaminação deliberada. Ainda que acidental ou imprevidente, a doença infecto-contagiosa espalhou-se rapidamente por este mundo globalizado onde, com todas as diferenças que o passado trouxe até ao presente, somos cada vez mais cidadãos planetários.

Existimos, pois, como um só mundo e uma só raça, sendo todos iguais e todos diferentes numa crise sanitária que é global, mas nada “democrática”. Para o melhor ou para o pior, fomos contaminados e contaminámos de maneiras diferentes, enfrentámos a doença com recursos e comportamentos diferentes, morremos ou sobrevivemos em condições e com sequelas diferentes. Tudo nesta pandemia é eminentemente social – porque o vírus não se propaga sem sociedade – e naturalmente humano, à excepção da desumanidade que comporta o sofrimento próprio ou alheio, associado à dor (física e psíquica) e à morte.

Resulta óbvio, daqui, o papel inquestionável das ciências sociais e humanas no enquadramento da pandemia, a montante, a jusante e também no epicentro da crise sanitária. Sem desvalorizar o acto médico (também ele social e humano) inerente ao internamento hospitalar da população doente, sobretudo em cuidados intensivos, e os demais actos de bravura de todos os profissionais que estiveram em contacto próximo com o vírus, pode afirmar-se que todas as ciências se mobilizaram e estiveram (e estarão sempre) presentes na ciclópica missão de salvar e proteger a Humanidade.

A Academia Britânica, vocacionada para o estudo dos povos, culturas e sociedades, no seu passado, presente e futuro, é disto exemplo. Dividida em seis secções disciplinares – direito, economia, psicologia, sociologia e afins, antropologia e geografia, e ciência política e afins), mantém a fluidez das ciências sociais e humanas, dentro de cada uma e entre elas, chegando também os seus investigadores a publicar nas mais especializadas revistas de ciências físicas e naturais. Na verdade, as abordagens podem e têm de ser diversas, por uma questão de especialização, parcimónia e não-ubiquidade, mas os fenómenos são únicos e sistémicos, carecendo de uma visão entrosada e holística.

As vantagens e benefícios desta multidisciplinaridade integrada são, no meu caso pessoal, um exemplo evidente. Com formação de base em economia e gestão, e pós-graduada em psicologia social e organizacional, as ferramentas epistemológicas que me permitiram acompanhar esta crise pandémica revelaram-se de extrema utilidade, ainda assim insuficientes para capturar todas as perspectivas com que a mesma deve ser analisada e enfrentada. Tratando-se de uma observação particular e “meramente” cidadã, nada mais se poderia exigir ou esperar mas, fosse eu protagonista com responsabilidades institucionais, só o trabalho em equipa polivalente permitiria alcançar o grau de integração que um eficaz combate à pandemia e gestão da crise humanitária indubitavelmente exigem».

José Rafael Nascimento. Docente e consultor. Área Científica: Psicologia Social e Organizacional, Marketing e Gestão de Empresas.

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Maria P. Meneses. Investigadora Coordenadora. Vice-Presidente do Conselho Científico do CES |Universidade de Coimbra.

«Qualquer evento crítico que afecte as sociedades humanas, como é o caso da pandemia da COVID-19, é um evento social. A análise de qualquer epidemia – e o continente africano conhece neste momento várias epidemias (HIV-SIDA, Ébola, Lassa, Cólera, Tuberculose) mostra que as soluções que se procuraram aplicar revelam estas ‘doenças’ como fenómenos sociais e políticos. Qualquer epidemia evoca objectivos e ansiedades mais amplas e historicamente situadas, espelho de relações político-económicas, presenças estranhas, conflitos e formas de controlo social. O HIV-SIDA, por exemplo, foi interpretado em Moçambique, no início, também como resultando de intervenções de agências estrangeiras ou governamentais que buscam poder político, etc. Num outro caso, aquando da epidemia de cólera no início deste século, as comunidades reagiram, às vezes com violência face ao alerta da epidemia. Esse medo e desconfiança reflectiam histórias vividas e memórias de desigualdade, conflito e presenças estranhas que permeiam a violência estrutural que marca as nossas sociedades. Todavia, estes problemas normalmente não são tomados em conta nas possíveis respostas à epidemia.

Por outro lado, na academia, por vezes funciona um excesso de ‘departamentalização’, que leva a tomar a parte pelo todo. Por exemplo, afirmou-se que a economia parou. Mas que economia é que parou? As mulheres continuaram a trabalhar em casa, garantindo a continuidade das rotinas; os camponeses continuaram a realizar as suas actividades agrícolas. É um pequeno exemplo que mostra que é importante compreender as causas e impactos da COVID-19 de forma ampla, pois a pandemia e a crise global de saúde que suscitou coloca em questão o tipo de sociedade em que queremos viver. Quais sistemas de saúde? Que estruturas económicas desejamos? Que saberes nos podem ajudar a pensar um mundo socialmente mais justo?

Se analisarmos em detalhe as respostas políticas dos estados africanos à pandemia estas revelam as grandes lacunas existentes entre a produção de conhecimento, a formulação de políticas e as realidades objectivas das várias regiões que compõem o continente. É urgente uma colaboração entre as várias áreas de saber – e já há académicos e intelectuais muito competentes no continente – para produzir conhecimento social e politicamente relevante. Não há absolutamente nenhuma forma de contornar este desafio. Não há retorno ‘ao passado’.

No futuro, importa, por exemplo, procurar ver como reforçar os serviços de saúde pública, porque essa é uma das responsabilidades do Estado. Mas com vários ‘sistemas’ de produção de saúde e de cuidado presentes nos nossos países, precisamos de reforçar a ligação entre ambos. A experiência com a epidemia do Ebola em vários países da África ocidental, ou da cólera em países da África oriental sugere que o controle centralizado pelo Estado da saúde pública nem sempre é eficaz e continua a ser visto com desconfiança. (Re)pensar o Estado, e a sua colaboração com as comunidades é fundamental, em contextos onde, por exemplo, as quarentenas dirigidas pelo Estado têm uma história ligada ao colonialismo, e sua reprodução contemporânea evoca lembranças de práticas repressivas.

Há experiências de colaboração entre o Estado e as comunidades, de que resultam quarentenas lideradas pela comunidade em espaço urbano e rural, integrando várias autoridades e instituições, de chefes de aldeia a líderes jovens e mulheres; estas iniciativas normalmente atendem melhor às necessidades sociais e económicas das pessoas, porque a interacção é feita de forma mais flexível e pragmática. As experiências do Ébola sugerem o valor de apreciar os esforços da comunidade e as diversas relações sociais em que se baseiam. Aqui, é importante trabalhar com os médicos tradicionais, que são consultados por grande parte das pessoas do continente, sobretudo nos espaços rurais, mas não só. As experiências de crises anteriores (Ébola, cólera, etc.) sugerem que os médicos tradicionais têm um papel importante a desempenhar, sobretudo no alerta e no acompanhar da saúde e bem-estar das nossas comunidades, incluindo ser treinados para identificar os sintomas das epidemias, e conhecer as regras de segurança para si e para os que os consultam. É importante ultrapassar a desconfiança que ainda existe, em vários contextos, em relação à biomedicina e aos alertas das pandemias, fomentando a colaboração para o bem das comunidades, das pessoas. Estudar as possíveis formas de colaboração, a partir das experiências existentes, que não se devem desperdiçar, é um desafio importante, por exemplo. Talvez seja altura de repensar a articulação local/comunidade e o nacional. E aqui as ciências socais e das humanidades poderão desempenhar um papel fundamental».

Maria P. Meneses. Investigadora Coordenadora. Vice-Presidente do Conselho Científico do CES |Universidade de Coimbra.

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David Morton. Professor assistente de História Africana na Universidade de  British Columbia Vancouver, Canadá.

«Sou historiador. Não gosto de prever o que vai acontecer. É fácil dizer, como muitos dizem, que o vírus marca o fim da universidade, o fim da democracia, o fim do mundo como o conhecemos o conhecemos. Não sei. Eu sei que, nas crises do passado, as vidas, as sociedades, e os valores mudaram radicalmente, mas normalmente não como os prognósticos previram, e não permanentemente.

Não preciso de prever nada para observar que, antes do vírus, o ideal democrático foi sempre menos valorizado, que, no mundo que já sabemos, pessoas tiveram uma inclinação para o homem forte na política. No mundo que já conhecemos as disciplinas de história, literatura, filosofia, foram sempre menos valorizadas (incluindo por alunos) por não serem “pragmáticas,” cavando a alma da universidade em nome do mercado. É fenómeno sobre o qual os próprios académicos compartilhem a culpa: por falar só entre eles, numa linguagem esotérica, sempre repetindo teoria cansada e dogmática, sem habilidade para revelar e explicar as complexidades do mundo e da vida humana, e distante da promessa das humanidades. Num mundo que já sabemos, um mundo bem anti-intelectual, o académico teria a responsabilidade de persuadir sobre o valor de uma vida de reflexão.

A pandemia tem fortalecido algumas das piores tendências sociais. As forças contra a imigração nos vários países, já crescente ao longo dos anos, ficam mais convencidas e poderosas. O instinto de construir muros figurativos e físicos, sempre mais altos, entre povos será difícil de suprimir. Para os académicos das ciências sociais, deve ser um momento clarificante, se é que as coisas já não estão suficientemente claras».

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Jean-Michel Mabeko-Tali. Professor Catedrático de História, Howard University, Washington, DC.

«Quando se deu o 11 de Setembro de 2001, estava eu em Cape Town, África do Sul, e com o meu filho, assistimos quase que em directo, pela televisão, ao embate da segunda aeronave contra a segunda torre, em Nova Iorque. À pergunta do meu filho em saber o que se seguiria a esse “ataque contra América”, a única e espontânea resposta que se me ocorreu foi que o século XXI acabava de se iniciar verdadeiramente naquele dia, e não antes. Esta ideia tornou-se mais tarde obcecante, e influenciou os meus ensinamentos em seminários doutorais sobre África. Procuro fazer entender o lugar dos Africanos na geopolítica mundial desde os tempos do Egipto faraónico. Sobretudo, porque África consta dos projectos neo-imperiais de nova partilha do mundo pós-11 de Setembro de 2001. Isto obriga o cientista social africano a um inovador alargamento dos campos de compreensão, e portanto de maior multidisciplinaridade científica, desde o estudo da geopolítica mundial, até à economia política das matérias-primas estratégicas, etc. Ora, a pandemia da COVID-19 tem vindo a mostrar a fragilidade das políticas sociais e dos sistemas de saúde até do mundo “desenvolvido”. Temos assistido, com espanto, ao estilhaçamento das solidariedades comunitárias (caso da União Europeia). A geopolítica mundial da saúde entrou em turbilhão, do qual vemos emergir uma China serena e eficiente, uma Cuba impressionante. Madagáscar clama ter encontrado uma comprovada solução curativa, sob a total indiferença do Ocidente. Vozes do “Norte” vaticinaram uma hecatombe em África; o anunciado cataclismo ainda se faz esperar, e motiva debates sobre, por um lado, por que razões, e, por outro, as motivações dos discursos catastrofistas cada vez que se trata dos Africanos, levantando legítimas suspeitas destes, face a projectos de vacinação no continente patrocinados por magnatas ocidentais sem escrúpulos e suspeitos de serem movidos por funestos projectos neomalthusianistas. Pelo que, os cientistas sociais são, cada vez mais, chamados a repensar, à luz da corrente crise pandémica, os paradigmas socioeconómicos que dividiam o mundo em “os-que-podem” e “os-que-não-podem”.

Como historiador do político, noto mais uma vez que as teorias das dinâmicas das relações internacionais precisam de ser revisitadas, à luz das lutas hegemónicas que se despoletaram à volta da nova pandemia. Pelo que, eis-me de novo de regresso à escola, procurando desde já ter um melhor

entendimento das causas e dos efeitos da implosão de alguns dos pilares dos paradigmas “desenvolvimentistas” nos Países do “Norte”, destroçados por um invisível inimigo chamado “COVID-19”. E o tipo de humanidade que daí emergirá».

Jean-Michel Mabeko-Tali. Professor Catedrático de História, Howard University, Washington, DC.

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Inês Amaral. Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Área Científica: Ciências da Comunicação.

«As Ciências Sociais e Humanas são frequentemente ignoradas nos discursos políticos e científicos. No entanto, as várias disciplinas das Ciências Sociais e Humanas são imprescindíveis para a compreensão do mundo. Para enfrentar esta pandemia, precisamos mais do que nunca das Ciências Sociais e Humanas. Perante um vírus que não tem fronteiras, as desigualdades sociais acentuaram-se, as diferentes formas de violência agravaram-se, as formas de produção alteraram-se, os comportamentos sociais modificaram-se. As transformações sociais, a acentuação da vulnerabilidade de vários grupos sociais, as ameaças de totalitarismo, o impacto das alterações no acesso à saúde e educação, as mudanças no mundo do trabalho, a manipulação e a desinformação são realidades que já enfrentamos. Compreender e enfrentar a pandemia,  implica trazer as Ciências Sociais e Humanas para o combate.

Os tempos que vivemos são complexos e de incerteza. O medo é o principal inimigo das populações porque as torna vulneráveis ao populismo, à manipulação e à desinformação. Cabe às Ciências da Comunicação, disciplina das Ciências Sociais e Humanas, estudar para informar acções, programas e iniciativas legislativas que garantam a literacia mediática dos cidadãos, regulem os media e apoiem os meios de comunicação que tão afectados estão a ser com a pandemia. E se os media têm a obrigação de informar factualmente o público, as redes sociais têm sido o palco da desinformação através da manipulação de algoritmos. No actual ecossistema mediático, assumidamente híbrido, as tecnologias estão automatizadas e alteram as dietas informativas contribuindo para a disseminação de notícias falsas, a propagação de opinião como informação, e a necessidade de um imediatismo que causa danos à sociedade porquanto prevê e não informa. Uma sociedade só é democrática se os seus cidadãos e as suas cidadãs forem bem informados para que possam fazer as suas escolhas».

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Rui Verde. Professor na Universidade de Oxford. Área científica: Direito.

«Qual é o papel das ciências sociais e humanas em tempo de pandemia, COVID-19? Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, as ciências sociais e humanas têm um papel fundamental em tempo de pandemia COVID-19, uma vez que os aspectos científicos desta ainda são bastante desconhecidos. Por isso, a maior parte das decisões, embora cobertas de uma semântica de linguagem das ciências exactas, têm sido políticas. A política e não a ciência, tem estado no centro do combate à pandemia e das medidas tomadas. É importante perceber que os modelos seguidos, como por exemplo, do Imperial College, que levou ao encerramento de vários países, têm na sua construção premissas sociais e não qualquer teste médico ou exacto.

E a sua área em concreto? A área do Direito é muito relevante nesta época que é fundamentalmente um tempo de não-Direito. Embora, na maioria dos países, a declaração de Estado de Emergência/Alerta etc seja algo previsto nas Constituições, a verdade é que por força da generalidade e abstracção das normas, rapidamente, se entra no domínio do arbitrário e da interpretação subjectiva das autoridades concretas que implementam esses Estados excepcionais. E sendo assim facilmente se vê o Direito a fugir da vida social. Este fenómeno ainda é mais visível nas ditas fases de desconfinamento para as quais não existe, habitualmente, regulação jurídica. Há que velozmente fazer voltar a situação para a égide do Direito e abandonar o não-Direito».

Rui Verde. Professor na Universidade de Oxford. Área científica: Direito.

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Sara Cura. Professora. Área científica: Arqueologia.

«Desde sempre, e mais ainda nestes tempos, que os nossos medos vêm do escuro, a humanidade não teme o que vê, mas o que não vê. O medo é perigoso e muitas vezes degenera em maior perigo ainda. Em nome dele e sem questionar por causa dele, aceita-se o cerceamento de liberdades, direitos e garantias que neste evento pandémico, com uma globalização sem precedentes, leva à aceleração da erosão  da democracia que já estava em curso antes do paciente zero em Whuan. A projecção externa do medo no outro, logo recrudescimento do racismo e da xenofobia, cresce de mãos dadas com a proliferação das notícias falsas nas redes sociais. Bem se vê o fundamental papel de uma imprensa rigorosa e transparente e livre. Esta pandemia acontece num momento em que já víamos a queda do protagonismo de organizações como a ONU, que não por acaso assumiu liderança após o último evento traumático que assolou o mundo, a Segunda Guerra Mundial.  Esta tendência enfraquece o multilateralismo e favorece  emergência de nacionalismos  e autoritarismos que são absolutamente contrários à forma de ultrapassar uma crise sanitária, social e económica global.

Nestes tempos, a hermenêutica das ciências humanas tem de se transpor para o quotidiano para reforçar a capacidade de decisão e acção, sustentada na reflexão crítica. Disso depende a liberdade em última instância e, no limite, a sobrevivência. Não é por acaso que é em países em declínio democrático, como o EUA ou o Brasil, que assistimos a fenómenos infantilizados de negação, fomentados pela aviltante ideia de que a economia é prioritária à vida. É tempo de repensar a política, porventura tempo de ler ou reler os magníficos escritos de Hannah Arendt.

A pandemia escancara as portas da desigualdade e da pobreza, e é também responsabilidade das humanidades trazer à discussão alargada a ética das relações em sociedade, bem como de alteridade de forma a olhar o outro como pessoa e não como estranho do qual o sofrimento nos é alheio. Vale a pena revisitar Espinosa e a sua Ética. E porque não Focault e a sua Biopolítica.

Uma ameaça real à vida apura a nossa consciência da mortalidade, precisamente aquela que nos faz procurar um sentido, sentido com duplo significado, como acepção e como direcção, e para isto não há roteiro, nem manual. A vida de cada um e cada uma constrói-se em permanência, mas a reflexão crítica das humanidades é neste contexto determinante para ampliar o entendimento e a própria consciência de cada um sobre a sua própria vida, de modo a que esta não caia na banalidade, futilidade e superficialidade da nossa existência consumista, características da modernidade líquida segundo o sociólogo Zigmunt Bauman.

Reflectindo sobre o passado é notório que três factores fazem acelerar a história: Guerras, revoluções e epidemias. Na maior parte das vezes acelerando processos que já estavam em curso. Sabemos que o processo de domesticação dos animais trouxe uma convivência próxima que implicou o surgimento de novas doenças. Sabemos que a introdução de animais, nomeadamente de carga, na América do Sul foi responsável por incontáveis mortes numa população que não tinha defesas para novas doenças. Sabemos do perigo olhando para a nossa história, e mesmo assim, a nossa relação de dominação da natureza progride aniquilando habitats naturais e aumentando a nossa exposição a contágios por animais. Olhar os processos de mudança drástica no passado é fundamental para fortalecer a capacidade de adaptação e superação de um presente assustador, bem como para encontrar caminhos de futuro. A história mostra-nos que, apesar da catástrofe humana, depois de um período de recolhimento e morte há uma grande explosão de vida. É o caso do Renascimento após os sombrios anos da Peste Negra. Que mudanças vai acelerar esta pandemia? Progressão dos regimes autoritários e isolacionistas? Progressão ainda mais descontrolada da economia extrativista que ameaça o planeta e a humanidade? Ou a mudança de comportamento para uma maior cooperação, menos agressão ambiental, maior igualdade. A história não faz futurologia, mas ajuda a escolher caminhos, ajuda a decidir».

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David Matsinhe. Lecciona no Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Carleton, Canadá. Área científica: Sociologia, Ética e Direitos Humanos.

«O papel das ciências sociais continua sempre fundamental, ainda mais durante as crises globais. A perspectiva da ciência social – isto é, descobrir o geral no particular e o particular no geral – é de primordial importância na elaboração de sentidos sobre esta pandemia. Padecer de uma doença não pode ser um mero problema médico ou biológico, tal como a injecção química a um homem até à morte não pode ser reduzida a um problema químico. Daí que, enquanto os profissionais de saúde se batem na linha da frente da pandemia, os cientistas sociais têm a tarefa de realizar o diagnóstico da sociedade em crise, para compreender a emergência, a dinâmica e o impacto da doença em diversas camadas sociais. Há que bater-se com a sociedade como vida em conjunto, como redes de indivíduos interdependentes com dinâmicas de poder assimétricas em mudança.

Esta “feroz urgência do presente” leva os cientistas sociais a comprometerem-se firmemente com a tarefa e a promessa da sua profissão, a aguçarem a sua imaginação sociológica compreendendo a biografia e a história e as relações entre os dois processos na sociedade. C. Wright Mills argumentou, com razão, que “nenhum estudo social que não volte aos problemas da biografia, da história e das suas intersecções dentro de uma sociedade completou o seu percurso intelectual”. O cientista social deve orientar-se nesta perspectiva na análise das dinâmicas e contornos da COVID-19.

Com esta orientação, os cientistas sociais tem a responsabilidade de analisar os fundamentos que mantêm sociedades integras para expor as condições de possibilidade para a emergência e propagação do vírus bem como as condições estruturais responsáveis pelo impacto diferenciado da doença. Sem deixar pedras intactas, há que perfurar as superfícies políticas, sociais e culturais para expor o intrincado rizoma originário. A analogia do icebergue no alto mar é uma ilustração adequada – a parte visível na superfície da água é uma milésima da parte invisível debaixo da água. Assim é a dinâmica social da COVID-19.

Algumas das questões, entre muitas outras, que os cientistas sociais estão mais bem posicionadas a investigar incluem: De que modo a estratificação social por género, raça, classe e geografia, por exemplo, influencia a propagação e o impacto da COVID-19? Quais são as implicações dos estados de emergência no contexto da feminização da pobreza? Como explicar o facto de os negros e os hispânicos nos Estados Unidos e no Reino Unido, por exemplo, serem muitas vezes mais propensos a morrer da COVID-19 do que outros grupos? Como se explica que as fábricas de processamento de alimentos sejam incubadoras de COVID-19? De que maneiras o capitalismo e a economia neoliberal influenciam a dinâmica da COVID-19? Porque é que os estados africanos carecem de infraestruturas de saúde e de sistemas de protecção social para gerir o vírus? Quem mais beneficia e quem mais sofre com a COVID-19? Que factores sociais, culturais, políticos estão na origem e propagação da COVID-19? O cientista social não para por aí, pois tem ainda de perguntar, o que devemos fazer a respeito?»

David Matsinhe. Lecciona no Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Carleton, Canadá.  Área científica: Sociologia, Ética e Direitos Humanos.

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Tirso Sitoe. Professor e Coordenador de pesquisa da Bloco4 Foundation. Área científica: Antropologia do Político.

«Existe um debate dentro das ciências sociais e humanas assim como das ciências biomédicas, face ao novo cenário que a COVID-19 nos apresenta, ao expor as nossas fragilidades em lidar com o próprio vírus, enquanto infectados, mas também enquanto afectados em situações de aparente “normalidade”. Esse debate tem-se centrado no processo de “cura” que antagoniza o sul e norte global sobre a sua primazia e antes disso, que procedimentos (se entramos ou não em Estado de Emergência, se seguimos ou não em Lockdown), devemos tomar num contexto de incertezas e de riscos enquanto membros de uma sociedade para que nos sintamos seguros. Na verdade, este debate tem traduzido também, a ideia da necessidade de “arriscar” pela vida em variadas dimensões e ao mesmo tempo, coloca a estrutura dos Estados menos ou mais desenvolvidos na “balança”, se pensarmos possivelmente, a partir dos índices de desenvolvimento humano, todos postulados a partir do norte global, mas por outro lado, como o sul global, tem aqui a chave ou uma chance genuína, para um possível retorno, ou se colocar, num lugar de eu “ não anónimo”, fazendo-se usar de suas epistemologias locais e afirmar com grande insistência a sua concepção de mundo, considerada como fonte de visões ilusórias e incoerentes para a luta contra a COVID-19. Aqui se coloca possivelmente, o caminho para pensar no papel das ciências sociais e humanas face às ciências biomédicas ou farmacológicas, para sublinhar a tentativa de teorizar sobre o social, quando se quer pôr em destaque a primazia da “cura”, por conseguinte a “ridicularizarão”  num contexto de antagonismo entre o sul e norte global, mas acima de tudo o debate que emerge a nível micro».

Tirso Sitoe. Professor e Coordenador de pesquisa da Bloco4 Foundation. Área científica: Antropologia do Político.

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Edgar Barroso. Pesquisador em Estudos Africanos. Área Científica: Relações Internacionais.

«Acredito que a pandemia da COVID-19 é mais uma oportunidade que os cientistas sociais têm para, relembrando o célebre texto de Max Weber – “A Ciência como uma Vocação” (1917) – renovarem o seu compromisso social para com o serviço publico em tempos de crise. Sobretudo sobre o significado e valor das ciências sociais necessariamente aplicados às realidades que estudam e às sociedades em que se encontram inseridos. Com efeito, vivemos tempos conturbados hoje em dia, com as crises das democracias liberais e o regresso ou emergência de nacionalismos, populismos e ditaduras eleitorais, lado a lado com a disfunção de uma ciência ao serviço de agendas políticas estranhas aos seus mais elementares valores de integridade, imparcialidade e autonomia intelectual. Certamente que haverá um mundo antes e um outro depois da pandemia da COVID-19, sendo as ciências sociais chamadas a prestar um serviço informado e especializado ao seu público, de uma forma mais democrática, acessível e descomprometida da autoridade política.

O mesmo se deve exigir para a minha área de especialização – relações internacionais. A pandemia da COVID-19 tem forçado os Estados um pouco pelo mundo todo a adoptar por tempo indeterminado um fenómeno político não necessariamente novo, mas com manifestação invariavelmente incomum a nível global – o Estado de Emergência. A suspensão da ordem legal ou (parcialmente) constitucional em vários países, mesmo que temporária, tem aberto diversas interpretações sobre as limitações que impõe ao Estado de Direito mesmo que numa situação de prossecução do bem público (contenção do coronavírus). Por outro lado, tem-se dito que os contornos catastróficos da pandemia são uma evidência flagrante do fracasso generalizado das instituições de governação globais – como a ONU e a OMS – no combate ou mitigação de crises globais. Nessa perspectiva, as relações internacionais – como disciplina académica e como mecanismo de interacção e de acção concertada entre os Estados e as nações do mundo – também se encontram em cheque, repartindo também responsabilidades especiais na reestruturação e na arquitectura do mundo pós-COVID-19».

Edgar Barroso. Pesquisador em Estudos Africanos. Área Científica: Relações Internacionais.

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Lutiniko landu Miguel Pedro. Doutor em Teologia. Professor na Universidade Católica de Angola.

«As contradições entre os especialistas em ciências médicas, quanto à origem e remédios para a cura da pandemia, provam que há necessidade de múltiplas intervenções, considerando as  consequências que esta levou à humanidade: a deficiência de cuidado sanitário, a queda económica, social e psicológica, estes desafios esperam soluções de todos especialistas, e de todas áreas do saber.

A teologia, sendo uma das ciências sociais e humanas, tem uma grande influência na sociedade com a sua estrutura social e divina: a Igreja sustenta com a palavra de Deus uma grande parte da  população mundial, a sua grande contribuição e oferta a esta pandemia, é o amor ao próximo e palavras que sustentam o doente, e também aquele que está com fome e falta de água (caso de alguns bairros de Luanda).

Olhando às medidas preventivas contra à propagação da pandemia, entre as quais o confinamento como foco principal, incluindo o uso obrigatório de máscaras, resultando no surgimento de problemas na sociedade, os mais carentes estão sendo vitimizados por detenções, e outros sendo mortos pela frustração de agentes da ordem, merecendo uma atenção particular dos psicólogos e dos assistentes sociais e ao lado a ética,  como cuidado pastoral.

O acompanhamento pastoral e a palavra do amor de Deus, concederá uma terapia divina que a igreja oferece. A assistência social das igrejas às famílias mais carentes na sensibilização do povo, são uma contribuição valiosa das instituições ligadas às ciências sociais e humanas. A maioria dos Estados e das nações reconhecem a contribuição da Igreja, como estrutura da sociedade civil(1)  que em certos Estados, é a  “verdadeira sede do poder”(2).  Hoje as igrejas, em Angola (Católica e Protestantes) estão a planear a recolha e distribuição de bens para assistirem as famílias carentes.

A COVID-19 está deixando marcas que a medicina pode não resolver mas as ciências sociais e humanas até económica podem lutar. Assim sendo, é necessário reflectir sobre o pós-COVID-19, do mundo que teremos ou queremos. A Europa vive tensões, vários protestos e manifestações(3), e como será a situação de Angola pós-COVID-19?»

Lutiniko Landu Miguel Pedro. Doutor em Teologia. Professor na Universidade Católica de Angola.

Notas

(1)        O caso do apartheid na África do Sul.  Foi desmantelado, também  com as acções das igrejas local e apoio do conselho mundial das igrejas. Cfr. Lutiniko 2008, tese de Doutoramento.

(2)        Fernandes José António. Introdução à Ciência Política.

(3)        Euronews. Global Weekend.

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1 Comentário

  1. Francis Kakulo

    As ciências médicas sempre estiveram articuladas às outras áreas do saber, as ciências sociais desempenham um papel preponderante na abordagem dos problemas de saúde do indivíduo, família ou comunidade… Os determinantes de sociais de saúde, constituem prova disso, as ciências médicas não podem isoladamente estudar e compreender a complexidade que tais factores representam no binómio saúde-doença. O contexto actual (pandemia da covid-19) não foge à regra. Aliás a conduta de cada país, estado, comunidade, família, individuo toma em relação a covid-19 está directamente relacionada aos determinantes sociais de saúde, cuja a análise e interpretação dependem em grande medida das ciências sociais.

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