

Xénia de Carvalho**ǀ Corro entre caminhos, me cruzo entre os mortos, lhes quero dizer que fiquem, mas não tem sítio não, mamã, não tem não! Neste mundo não tem mais sítio para ficar morto. TERRA é bem valioso, NÃO É MAIS LOCAL DE PERMANÊNCIA. Ou existência.
Quem vive já não escolhe não, mamã, vão escolher por ti.
I can feel it in my bones
Essa história começa assim, vou narrativ’izar o que ouvi contar. Me vou acompanhar com a sonoridade da escrava gringa que virou mulher liberta, cantada numa escola no Gabão, cover’ada – porque O’(in)esperado derrapa assim d’entrando carecendo d’explicação – e m’a ferra n’o enredo lá das terras venezuelanas.
Mamã, escravo é escravo em todo esse mundo (des)manchado. Quando lhe matam, não tem onde deixar o corpo, (d)existe.
Oh, I got eyes in the back of my head
Just in case I have to run
A gravidade dessa situação lhe chegou aos ouvidos, aos dessa virgem negra, mulher encorpada, e ela se recusou, desaceitou que morto não tivesse onde descansar. Quem morre em terra de conflito, de trocas, também tem direito a ser pedaço eterno de terra molhada.
I do what I can, when I can, while I can, for my people
O caminho é longo, mamã, vamos tropeçar nisso (d)existir em tempos de (des)glo’cal’ização, seres (des)circulantes com regras desbastando nosso pescoço e derramando s’soltando pelo corpo abaixo, (des)normas que não cumprimos por ausência d’entendimento.
À entrada estava pendurado um cartaz pintado a trincha: O TERCEIRO PAÍS, um cemitério sem lei, ao qual iam parar os mortos que Visitación Salazar enterrava a troco de gratificação, e às vezes nem isso.
Na Venezuela, nesse TERCEIRO PAÍS, Karina Sainz Borgo***, jornalista-escritora, nos enquadra na terra onde vivos e mortos se cruzam, guiados pela virgem negra, Visitación Salazar – epa, como esse nome nos carrega na memória dos ditadores caídos e tentados de repetição nesses nossos dias de (des)actualidade…
Borgo nos traz mais que Salazar, nos traz Angustias Romero, mãe de filhos perdidos,
que a vida pedira-os emprestados a caminho da morte.
E Consuelo, cujo ventre
crescia a um ritmo diferente do resto do seu corpo. O bebé ia aumentando de tamanho, enquanto ela diminuía. Mais do que uma gravidez, a sua barriga parecia uma bolha inchada.
Borgo deslocaliza essa narrativa para ‘criar alegorias’, dizer o outro, não escrevendo sobre seu país, Venezuela, mas atingindo isso d’se mover’, d’se deslocar’, d‘se perder e d’s’exiliar, como partilha em sua entrevista, em agosto deste ano****.
O terceiro país fica na fronteira onde se cruzam essas três mulheres:
Visitación, que enterra os mortos (d)existentes;
Angustias, que perdeu os dois filhos e os quer (d)existentes perto de si, aprendendo o ofício de sepultar com a virgem negra;
e Consuelo, que repete o ciclo da vida e traz a esse mundo Milagros.
Três (des)localizadas que vivem no lançado mundo glo’calizado, essa invenção da modernidade, que de muros vive cada vez mais, fronteir’ando nossa vivência, nos cerrando em terras controladas.
Can you hear freedom calling?
(Des)mur’ar é o que faz Visitación ao enterrar na fronteira quem não tem onde deixar cair seu eterno descanso, sob ameaças e violência constante;
(des)mur’ar também o faz Angustias ao trazer seus filhos mortos numa caixa de sapatos para os (d)existir;
(des)mur’ar também é acto de Consuelo com o nascimento de sua filha Milagros, que nos permite (re)conquistar e partir na direcção desse novo país. Qual?… Não sei, mamã, d’encontro a novos-velhos muros. Mas que está indo
Together we are going
To a brand new home
Far across the river
Para trás fica Visitación que
era incapaz de passar despercebida. Saía da carrinha exibindo as suas ancas fortes e as suas pernas vigorosas. Descarregava sozinha os corpos e preparava-os horas a fio. Quase não parava para descansar. Bebia umas misturas de pós revigorantes, dava umas passas nos seus cigarros e retomava as suas tarefas.
Para trás fica também Consuelo, que não era tão pequena que coubesse numa caixa de sapatos, transformada em mãe sem consentimento, que na fronteira, entre muros, nos deu Milagros.
Não devia de contar, mamã, mas Angustias lhe tira
o lenço colorido e esfreguei-lhe o rosto com ele até arrancar as mistelas de sangue e pó. Tal como ela me mostrara, juntei os braços e as pernas para fazer com que parecesse adormecida.
A mulher da caixa de sapatos dá de concluir a (d)existência da virgem negra
Reboquei a lápide com uma espátula pequena assobiando as canções que ela gostava, e com um pau seco de dividivi escrevi: VISITACIÓN SALAZAR (1959 – 2019).
Sempre enterramos nossos mortos. (D)existências que assumimos na fronteira, nesse terceiro país que fica em todo esse território incógnito e (des)povoado de humanidade.
Agora, mamã, porque parto com Angustias e Milagros, em direcção a esse outro país, te deixo a música cover’ada por uma miúda que, como Angustias, aprendeu com a mais-velha (essa aí terás de ir localizar – vai lá no mundo digital, isso d’net, e cata a info sobre Cynthia Erivo).
Aqui fica a sonoridade, mamã, (re)criada por essa miúda, cujo nome não nos deram a conhecer – nomear é existir, isso a net não permite se d’influência oca não se traduzir. Pisa em cima, mamã, e segue para lá, que a mais nova, Consuelo, nos acompanha em jeito de memorial, também ela (d)existente, deixando a virgem negra no terceiro país, sepultada onde criou terra para os mortos d’fronteira.
Escuta lá, na fronteira virtual: Amazing cover of Stand up – Cynthia Erivo by a School class in Gabon, Africa🔥 – YouTube
Inté.
* Foto Monocromática Da Estátua · Foto profissional gratuita (pexels.com)
** Antropóloga, PhD
Investigadora associada no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)/Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)
*** Referência do livro: Karina Sainz Borgo (2023). O Terceiro País. Alfaguara: Lisboa.
**** Entrevista a Karina Sainz Borgo – YouTube