Adolfo Maria: “Lutámos e continuamos a lutar pela liberdade. Defendemos os direitos humanos”

Adolfo Maria: “Lutámos e continuamos a lutar pela liberdade. Defendemos os direitos humanos”

 

Começo por uma questão que me faz pensar (e possivelmente a várias pessoas presentes): porque é que o Domingos da Cruz e eu estamos aqui juntos na apresentação do seu livro RACISMO – O MACHADO AFIADO EM ANGOLA, sendo visíveis algumas diferenças. Lembro que tenho quase o triplo da idade do autor; sou branco e ele é negro; nasci em 1935 em Luanda, cresci em pleno e feroz regime colonial e lutei pela independência de Angola; ele nasceu em 1984, alguns anos depois da proclamação da independência; portanto, Domingos da Cruz não conheceu o regime colonial nem a luta de libertação nacional.

Para lá destas diferenças, que semelhanças podem haver entre este idoso e este jovem dum país complexo que é Angola?

Há fundamentais semelhanças: ambos resistimos à opressão, ambos lutámos e continuamos a lutar pela liberdade, ambos defendemos os direitos humanos, a justiça social, o usufruto de uma plena cidadania, o progresso de Angola. E o nosso historial demonstra o que acabo de afirmar.

Tanto Domingos da Cruz como eu começámos muito jovens a lutar pela liberdade do povo angolano (em épocas e contextos diferentes).

No combate cultural, político e armado que fiz pela independência de Angola sofri a repressão da polícia política portuguesa a PIDE, em 1959, tinha eu 24 anos; no combate pela liberdade e democracia em Angola, sofri, de 1976 1979, uma longa clandestinidade, depois a prisão, pela polícia do regime, a DISA, e, por fim, a minha expulsão do país, ordenada por quem o dirigia (companheiros meus da luta pela independência).

Domingos da Cruz nasceu numa Angola submetida a uma feroz ditadura desde a Independência; cresceu a ver a miséria da esmagadora maioria dos angolanos, a par de uma escandalosa riqueza concentrada nas mãos de algumas centenas de indivíduos da esfera do poder ou à sua volta gravitando, uma riqueza obtida à custa do roubo das receitas do Estado. Chegado a jovem, Domingos da Cruz, dirigiu a sua inteligência para a análise dessa situação. E fez mais, mobilizou outros jovens para a reflexão e incitou-os a encontrarem formas de mobilizar cidadãos para que houvesse uma mudança de rumo. Por isso, ele e outros seus companheiros foram presos e objecto de um vergonhoso processo judicial.

Adolfo Maria/Foto:Rede Angola

Dito isto, julgo que ficou bem claro porque é que fraternalmente aqui estão sentados este kota e este jovem, cuja coragem admiro. Podemos dialogar, confrontar nossas ideias, discordar nuns pontos, convergir noutros, num sadio exercício de cidadania que, infelizmente, ainda não é hábito em Angola, submetida a tantos anos de pensamento hegemónico instituído pelo partido no poder desde a Independência.

A leitura do livro de Domingos da Cruz, RACISMO – O MACHADO AFIADO EM ANGOLA, conduziu-me a questões de ordem histórica e sociológica que impregnam o processo histórico angolano, onde uma elite negro-mestiça se afirma no século XIX e princípios do século XX e virá a ter um papel preponderante na emergência do moderno nacionalismo, na luta pela independência, na conquista do poder e na posterior governação do país. Creio que não poderemos avançar o suficiente sobre o estudo do racismo em Angola, sem estarmos bem informados sobre todo o referido processo.  Vou socorrer-me do que escrevi sobre este assunto e está publicado em livro.

Em meados do século XVIII, a colonização portuguesa procurava alargar a sua penetração no território que mais tarde seria a colónia Angola, com fronteiras traçadas pelas potências coloniais europeias na conferência de Berlim em 1865.

A penetração colonial progredia do litoral para o Interior, nomeadamente no corredor Luanda, Dondo, Malanje. Era feita através de guerras, implantação de feiras e presídios, com vistas ao povoamento por portugueses, e através do comércio a longa distância, que durante mais de dois séculos se baseou quase exclusivamente no odioso tráfico de escravos para o continente americano. No século XVIII e XIX formou-se uma classe de indivíduos negros intermediários do comércio dos portugueses entre o litoral e o interior profundo. Eram chamados pombeiros, que iam aprendendo a ler e escrever a língua portuguesa e começaram a montar os seus próprios negócios.

Foi com indivíduos desta camada da população negra que vários portugueses fizeram alianças nomeadamente uniões matrimoniais. Deste estreito contacto resultou uma forte miscigenação cultural e biológica. Muitos dos descendentes foram estudar em Luanda e vários obtiveram elevado grau de instrução. Formou-se assim uma elite negro-mestiça que viria a impor-se na sociedade colonial em finais do século XIX e nos anos 20 do século XX.

Esse sector da população era eminentemente urbano, composto de indivíduos dominando a língua portuguesa, vários com poder económico em Luanda, zonas rurais limítrofes e no Kwanza Norte. Uns eram funcionários da administração colonial, outros estavam nas lides literárias ou jornalísticas onde, no geral, reclamavam do governo português o cumprimento integral dos seus direitos de cidadãos e abordavam problemáticas de ordem política, económica e social das populações existentes no território que viria a ser o futuro país independente.

Durante várias décadas, desde meados do século XIX até aos primeiros anos do século XX, é esta camada da população que – no combate pela sua afirmação na sociedade colonial e perante o poder português exercido na Colónia – vai esgrimir elementos de identidade para si e como representante do conjunto das populações que são abarcadas pelo território da Colónia. Para os seus intelectuais, é facto adquirido que toda a Angola é uma Nação e é em nome dela e das suas gentes que falam. Nasciam as primeiras ideias do nacionalismo moderno, o que Mário de Andrade chama “protonacionalismo”.

Nos anos 30 e 40 do século passado, a ideia de que Angola era um todo e que havia uma identidade angolana a contrapor aos padrões identitários impostos pela potência colonial foi elemento fulcral dos movimentos associativos e culturais que surgiram.

Foto/Natalia da Luz

Portanto, é nesta época que nasce o nacionalismo moderno, aquele que vai agregar as gentes de toda a Angola no combate pela independência. Será conduzido essencialmente por iniciativas e actos de indivíduos oriundos da elite negro-mestiça acima referida e à qual se juntaram vários brancos. Membros dessa elite viriam a ser quadros e dirigentes do MPLA e da UPA (mais tarde FNLA).

Por outro lado, é de realçar que a corrente do moderno nacionalismo engrossou para desaguar na luta armada devido a factores como: uma pequena burguesia rural africana em revolta contra a pressão colonial para a tomada das suas propriedades (no Kwanza Norte, Uíje e Zaire); populações rurais exploradas pelas grandes companhias (em Malanje – Baixa de Kassanje); um escol de angolanos emigrados no Congo (então colónia belga, hoje RDC) em contacto com ideias e movimentos independentistas africanos, sobretudo congoleses; uma pequena burguesia do Centro-Sul, geralmente ligada às actividades do Caminho de Ferro de Benguela (regiões de Benguela, Huambo, Bié e Moxico) onde, mais tarde, a UNITA e o MPLA viriam a recrutar militantes, durante a luta armada de libertação nacional.

Foi preponderante o papel da elite urbana africana na génese e desenvolvimento do nacionalismo moderno, no combate ao colonialismo português e na conquista da independência de Angola. Essa elite e seus descendentes governam o país desde a Independência e moldaram-no em numerosos aspectos. É certo que essa elite se foi alargando ao incorporar elementos de outras elites do país, através de alianças várias, incluindo as matrimoniais; contudo, o seu cerne pouco difere do da sua origem.

Em suma, as características do país que é Angola resultaram do próprio processo histórico angolano que, além da evolução das sociedades africanas no território, inclui a ocupação colonial, a interacção das populações locais com o colonizador e suas consequências na composição da sociedade e comportamentos societais.

Estas minhas considerações servem para abordar a leitura do livro RACISMO – MACHADO AFIADO EM ANGOLA, de Domingos da Cruz.

O autor preocupa-se com a atitudes de arrogância frequentes em indivíduos mestiços e brancos face a indivíduos negros, ou mesmo estes serem preferidos por aqueles em empresas e até no Estado; isto a par de atitudes de submissão ou de aceitação destas situações por parte de indivíduos negros. Domingos da Cruz afirma que há racismo estrutural na sociedade angolana e a nível institucional. Os casos referenciados no livro sobre racismo são bem exemplificativos.

Entretanto, parece-me pertinente recordar traços do colonialismo português em Angola que marcaram profundamente a sociedade angolana. Até 1961, ano de início da luta armada pela Independência, o estado português classificava a população residente em Angola em várias categorias: brancos, mestiços, assimilados e indígenas. Os assimilados eram os indivíduos negros a quem se reconhecia que tinham modo de vida, de habitação, de alimentação, de vestir do colonizador. Os classificados nas três primeiras categorias (brancos, mestiços e assimilados) eram considerados cidadãos à luz da Constituição Portuguesa, mas, na realidade, com algumas restrições. Os brancos nascidos em Angola não podiam ascender a certos postos no exército nem gozarem de licença graciosa, o mesmo sucedendo a mestiços e assimilados. A esmagadora maioria da população negra era classificada como indígenas. Estes eram regidos por um estatuto especial que nenhum direito lhes concedia, na prática, apenas a obrigatoriedade de trabalhar em duras condições para a economia colonial.

Foto/Natalia da Luz/ Da direita para a esquerda: Rui Verde, Adolfo Maria e Domingos da Cruz

Esta classificação da população e os obstáculos de mobilidade social que o nativo encontrava numa sociedade colonial originavam forte concorrência entre estratos populacionais e entre famílias dentro de cada estrato, numa procura de estatuto na Colónia. As consequências daí advindas foram as variadas e profundas alienações individuais e de grupo, as derivas identitárias. A interiorização dos efeitos do perverso sistema classificativo colonial das populações ainda hoje se faz sentir, após mais de quarenta anos de independência.

Contudo, não sei se se pode concluir haver um racismo estrutural no seio de mestiços e brancos em relação a negros e ele estar assim entranhado nas instituições. Domingos da Cruz atribui a esses sectores da população de tez clara a sua dominação do campo político e económico em Angola. A realidade não parece confirmar esta ideia: os detentores de grandes fortunas e empresas são indivíduos negros, na sua enorme maioria; também os indivíduos negros constituem a imensa maioria no Parlamento, no Executivo, na Academia, nas direcções de órgãos administrativos e de diversas associações profissionais e outras.

É verdade que, na época colonial, o poder económico, o saber e a função administrativa estavam nas mãos do sector branco da população. Dele partilhavam em situação subalterna mestiços e franjas mínimas da população negra. Após a independência, o sector branco da população ficou reduzidíssimo em número de pessoas e sem qualquer poder. Logo, o vazio deixado permitiu uma acelerada ascensão social e política de indivíduos do sector negro e mestiço da população.

Neste quadro se afirmaram os elementos da elite negro-mestiça que atrás referi, com todas as contradições, ressentimentos e concorrência que sempre caracterizaram o processo de formação e crescimento dessa elite. É também neste quadro que vários brancos que restaram no país procuraram afirmar-se pondo-se ao serviço do poder político instalado, tanto mais que a escassez de quadros facilitava o seu recrutamento.

As opiniões que aqui expressei parecem não coincidir com algumas das asserções de Domingos da Cruz. Por outro lado, discordo de afirmações que o autor faz sobre o marxismo ou sobre o poder dos mestiços na direcção do MPLA, durante a luta de libertação e no pós independência. De facto, Agostinho Neto sempre agiu como quis e a seu bel-prazer na condução do MPLA desde os tempos da luta pela independência e na Angola independente. São naturais estas nossas diferenças de opinião. Sabemos como é difícil, em História, a interpretação dos factos pois nunca essa interpretação é perfeitamente pacífica quando se lê o passado à luz dos tempos actuais.

Por isso, a nossa estima mútua não diminui. Pelo contrário, reforça-se, porque ambos gostamos de pensar e exprimir livremente a nossa opinião.

Assim sendo, quero salientar a oportunidade desta obra sobre a questão do racismo, um problema complexo da sociedade angolana e não resolvido (quando o será?). Domingos da Cruz aborda com veemência a questão. Parece carregar nas tintas. Será? Ou é apenas o modo de denunciar situações que urge corrigir?

Foto/Natalia da Luz

Como pensador e activista, ele decidiu escrever e publicar o livro de que estamos a falar: RACISMO – O MACHADO AFIADO EM ANGOLA. Nesta obra, o autor partilha com o leitor conceitos universais sobre a problemática do racismo, quer produzidos por vários pensadores, quer inscritos em resoluções de organismos internacionais e não se detém só em Angola, aborda a questão do racismo no mundo. Apresenta casos verificados no país. Na parte final do livro insere dois trabalhos de outros investigadores, intitulados: “Uma análise da percepção de jovens luandenses sobre o racismo em Angola” e “Revisitando a origem do racismo sob novas bases epistemológicas”.

Domingos da Cruz é um patriota que se preocupa com os problemas de Angola e do futuro; reflecte, age, procura soluções. Neste seu livro, no capítulo “Considerações finais: por uma sociedade onde a raça conta”(página 94), o autor faz considerações sobre o racismo existente em Angola e propõe medidas para a correcção da situação em sectores que enumera deste modo: no campo da educação; no campo da imprensa tradicional e das TICs; nas instituições estatais; das vítimas; da política legislativa e criminal; sociedade civil e desporto. As suas propostas constituem um vasto e bem elaborado programa de acção que nos deve merecer muita atenção.

Por fim, direi que não pode ser negligenciada a questão que é motivo deste livro de Domingos da Cruz: o racismo. Tem de ser abordado sem tabus, com espírito científico e sem paixões e ressentimentos à flor da pele ou de longínqua origem. Por outro lado, a discussão sobre esse tema não deve constituir arma de arremesso político ou outro que procure a exclusão de cidadãos úteis ao país. O debate deve fazer-se sempre com o objectivo de promover a coesão social e a unidade nacional.

Foto/Natalia da Luz

A reforçar o que afirmo, transcrevo as próprias palavras de Domingos da Cruz na página 86 deste seu livro, que passo a citar: “A história e a sociologia demonstraram que os genocídios aconteceram essencialmente por causa da discriminação racial ou étnica. Assim como muitos conflitos nacionais e internacionais despoletaram por causa do nacionalismo na sua versão violenta (xenofobia) e o etnicismo enviesado igualmente pela violência. O racismo, a xenofobia, a intolerância e as novas discriminações contemporâneas são crimes graves. Levam a massacres e a outros actos hediondos supracitados, por isso, qualquer sociedade, e Angola não é excepção, deve lutar e combater o racismo com todos os recursos possíveis, exceptuando a violência (…)” – fim de citação.

Resta-me agradecer aos presentes a vossa atenção e ao Domingos da Cruz por me ter convidado para esta partilha. Para ele, os meus votos de continuação da sua luta por uma Angola melhor e o meu fraternal abraço.

Nota: Texto de apresentação do livro de Domingos da Cruz, “Racismo – O Machado Afiado em Angola” na Biblioteca Nacional, Lisboa, em 17-10-2019.

 

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