Por Domingos da Cruz || Esta análise, bem deveria intitular-se, “O exemplo de Sócrates e a actual situação de crise na Grécia”.
Na obra, “Os grandes julgamentos [da história] ”, encontra-se também o julgamento do filósofo grego, Sócrates. De acordo com esta fonte e tantas outras sobre a história da filosofia antiga, o velho filósofo que morreu aos 70 anos, foi acusado de desvirtuar a juventude da época e daquele lugar, profanar os deuses e consequentemente, julgado e sentenciado a pena capital. Há um consenso na história do pensamento de que o julgamento foi político e manipulado pelas forças em disputa por influência em Atenas.
Entre várias dimensões dignas de respeito em relação a Sócrates, relacionadas com este julgamento, foi o facto de ter esticado a corda da liberdade interior ao limite, e claro, cortou e cortou também a sua vida física e mundanizante. Tal exercício de liberdade intra-subjectivo sem limites, conferiu-lhe lugar no panteão dos grandes, ao lado de Jesus Cristo, mas com uma diferença, não precisou nascer de uma virgem que continuou virgem após o parto!
Sobre esta atitude de elevação ética e espiritual de Sócrates, a obra acima expressa refere que “Sócrates põe-se de parte; não está ali a representar o papel do réu amedrontado ou mesmo apenas necessitado de legítimo auxílio; não protesta, não pede justiça pela maquinação urdidada contra ele; […] não bajula os juízes (antes pelo contrário!). [Faz daquele momento, a mais alta expressão] da consciência moral livre” (1978, p.128).
É comum os réus construírem toda engenharia retórica com vista a absolvição. Naquela época, na Grécia antes de Cristo não haviam advogados, mas sim logógrafos ― que escreviam um discurso prévio para o réu ler em sua defesa.
O filósofo de Atenas, viu naquela assembleia judicial, uma oportunidade para reafirmar a sua convicção, ajudar os presentes a parirem e interiorizarem ideias sobre a justiça. Em relação a esta questão dirigiu-se com veemência aos juízes.
Mais três factos surpreendentes marcaram aquele julgamento. Aos presentes e por arrasto toda a história da filosofia. Sócrates tinha possibilidades de ser absolvido, mas optou pela dialéctica em vez de apresentar argumentação jurídica para livrar-se da acusação. Um dia antes da condenação, o seu amigo Critão, terá subornado os carcereiros para viabilizarem a fuga do filósofo, mas rejeitou tal possibilidade, mesmo diante da porta aberta. O velho filósofo foi mais longe, quando solicitou ao responsável por dar-lhe a cicuta ― o veneno dado aos condenados à morte na época ― que não precisava preocupar-se, uma vez que “farei questão de beber tranquilamente”, disse ele, porque entendia que não era digno que um homem da sua dimensão temesse o veneno para a morte.
Talvez seja igualmente importante referir que o velho foi militar. Um guerreiro exemplar e ajudou a vencer batalhas contra exércitos poderosos. Talvez isto contribuiu para forjar a personalidade socrática que a história da filosofia deu-nos a conhecer. Participou na batalha campal contra o exército espartano em Junho de 449 antes de Cristo, na qual desempenhou um papel chave. Em Novembro de 424, “participa novamente na batalha de Délio, a mais importante do primeiro período da guerra do Poloponeso”.(1978, p.114). A ciência do tempo indica que participou igualmente noutras batalhas.
A história grega foi marcada por várias guerras, mas há uma que durou 27 anos, ora contra Esparta, ora contra outras forças hostis a Atenas e outras regiões pertencentes a Grécia na Ásia Menor. Tais guerras arrasaram o tecido moral, cultural, político e material da Grécia antiga. Mas em muitas batalhas, Atenas triunfou, apesar de possuir um número menor de combatentes e outro tipo de valias militares em relação aos seus oponentes.
Na época moderna, depois da Grécia ter construído o Estado de Bem-estar Social, tal como os seus parceiros europeus, agora vê-se diante de uma crise financeira e económica com consequência sociais catastróficas.
Frente a este quadro, há uma fumaça de esperança. O Syriza recebeu o aval dos cidadãos por meio da “verdade eleitoral” que se estende para um “contrato constitucional” com vista à governar o país.
Ao Syriza foi dado legitimidade democrática para governar porque defende a vontade geral ― Uma narrativa contra a austeridade brutal, violenta ― Que derruba a maior contribuição da Europa para a sociedade moderna: o Estado de Bem-estar Social.
O Syriza não só construiu uma narrativa política conforme a vontade da cidadania, mas procura implementá-la. Tal tentativa de responder às suas promessas eleitorais, encontra obstáculos enraizados na lógica ultraliberal que provocou a erosão da política, e que encontra a sua mão de chumbo na Alemanha de Angela Markel e seu Ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, defensores da austeridade à qualquer preço.
É exactamente aqui em que a história da Grécia, combinada com o exemplo de Sócrates, parece-me inspirador para os rostos visíveis contra as políticas de miséria impostas por Berlim e seus subservientes do banco central europeu e do euro-grupo.
Alexis Tsipras, Primeiro-ministro e Yanis Varoufakis, Ministro das Finanças, talvez inspirados pela história do seu país e motivados pelo sofrimento humano que assistem na Grécia actual, fizeram uma reviravolta na Europa. Quebraram com o discurso unilateral e ultraliberal da Troika, forçaram que o debate fosse deslocado do plano estritamente economicista liberal para um mix com política e tecnocracia da racionalidade económica, mas com predominância do político sobre o financeiro, por meio das seguintes acções: um discurso claro e firme sobre o que pretendem daqui para diante, ou seja, fim da austeridade e decidirem políticas de reforma ad intra (a partir de dentro) e não ad extra (a partir de fora); politizaram a relação com Alemanha, lembrando os danos a Grécia e por conseguinte as possibilidades de forçá-la a pagar a dívida desencadeada no período em que Alemanha ocupou a Grécia e fez estragos na ordem de 162 mil milhões de euros durante a II Guerra Mundial; movimentações geopolíticas e geoestratégicas de Atenas com vista a diversificação de parceiros para forçar o reposicionamento dos tradicionais parceiros europeus.
Ao contrário do que muitos pensam e alguns afirmam, a posição intransigente e insensível da Alemanha, não é cega e puramente técnica. Na realidade a exigência da Alemanha em relação ao controle dos orçamentos e a aplicação abrupta das políticas de austeridade e a continuidade da libertinagem dos bancos, reside no facto de Berlim ganhar com esta opção económica, que no fundo é essencialmente ideológica e “imperial hegemónica”, dada a sua condição económica favorável hoje. Há bancos e outras instituições financeiras que operam na Grécia que são alemães. A opção por políticas financeiras sem valor económico e que não permitem a distribuição da renda, por isso, favorecem e enriquecem a Alemanha continuamente.
Os países periféricos da zona euro podem aproveitar para redefinir o debate, e talvez reformar as instituições supranacionais europeias que decidem no lugar de governos eleitos democraticamente.
Tal como Sócrates foi determinado no uso da sua liberdade interior, hoje, os líderes da Grécia são impelidos a forçar a liberdade moral e estende-la no plano político até as últimas consequências porque estão no caminho certo. Esta opção do Syriza ganhou apoios de grande alcance e influência intelectual e/ou científica como de Noam Chomsky e do prémio Nobel da Economia, o norte-americano Paul Krugman que subscreve a opção económica da nova equipa governativa grega e diz que deveriam ir mais longe na restauração das políticas sociais combinadas com medidas económicas geradoras de crescimento económico e distribuição da riqueza. Para Krugman, Atenas não foi tão radical quanto é necessário na actual situação de miséria material. O Nobel da Economia de 2008 afirma que “se há algum defeito no plano do Syriza, é o de não ser suficientemente radical. […] O resto da Europa devia dar-lhe a oportunidade de pôr fim ao pesadelo no seu país”. Forçou a retórica com um keó, ao chamar os ministros do eurogrupo de loucos e falta-lhes sabedoria económica de forma espantosa, a não ser que queiram lançar propositadamente a Grécia no abismo.
Chomsky entende que o Podemos de Espanha e o Syriza, representam luz de alento, diante de tantos problemas de dimensão transnacionais. “Os sinais de optimismo na Europa são o Syriza e o Podemos. Esperamos assistir, no fim, a um levantamento popular contra as políticas económicas e sociais esmagadoras e destrutivas, que resultam da burocracia e dos bancos. Isso dá esperança”, afirmou Chomsky em entrevista a Euro News.
Esta possibilidade de revolução popular, não será da cidadania contra as forças originalmente internas, mas será anti-instituições de dimensão transnacional ou global. Neste sentido, o governo de Alexis Tsipras, reforçará duplamente a sua legitimidade. Pelo voto e pela rua. Isto reafirmará a necessidade de continuar a lutar por meio da facticidade e justificada discursivamente na esfera pública europeia e mundial.
Rememoremos o velho filósofo. Segundo Banfi, “ [com a condenação de Sócrates], ergue-se […] o símbolo vivo de uma humanidade íntegra e segura na liberdade da consciência moral e prova nele de uma vez para todo o sempre a sua certeza e realidade” (1978, p.141).
Assim como vimos Sócrates a defender valores que transcendem o tempo e o lugar, e por isso, questões de dimensão universal, deve-se combinar o exemplo de Sócrates a memória triunfal da Grécia antiga e outras vantagens comparativas actuais, só assim os governantes de Atenas e os cidadãos, terão os ingredientes para forçar uma reviravolta da situação interna e redesenhar a arquitectura política, económica e social da zona euro. Esta peleja é igualmente marcada por valores universais: a dignidade humana, a liberdade económica e política, o direito à autodeterminação, etc. Razões suficientes para que a nova equipa governativa não desistam e mantêm as suas linhas vermelhas como invioláveis, como recomendou recentemente Paul Krugman em conferência: “o governo grego não deve ceder na questão da redução de salários e pensões, tendo em conta que o país já fez um forte ajustamento, que obrigou os gregos a grandes sacrifícios.”