Da história apenas resta uma versão: a capacidade de (des)pertença

Da história apenas resta uma versão: a capacidade de (des)pertença

Xénia de Carvalho*ǀ Uma atracção enganosa me encaminhou para seu corpo arredondado por meu olhar aguado no desejo de lhe chegar. Ahhhh… Mas não é que ela se desviou, descarrilou mesmo nisso d’ir vers’ar? Epa, como engano é bom! Maningue, diz lá meu camarada, queres é saber seu celular para lhe conectares? Ahhhhhhhh, não tem disso não, papá, ela me disse: inumano.

Essas são suas palavras, de sua boca saiu o som que me corrigiu o olhar. Não aguei, lhe dei meus ouvidos e ela me contou que…

Meu pai era seu pai.

Lhe conheces o som? Quando a história começa a desenrolar as muitas versões que há de um único acontecimento? Lhe toca e me segue. Clica na net, papá, segue os dois tocadores de kora, aqui nesse sítio mesmo – (95) Toumani Diabaté & Sidiki Diabaté – Jarabi – YouTube. Pai e filho nos encaminham para o Labirinto do Inumano, onde ela me disse que seu irmão se esqueceu que

O passado tem tempo; ele espera sempre com paciência no cruzamento do futuro; e é aí que ele abre ao homem que pensava ter escapado a sua verdadeira prisão de cinco celas: a imortalidade dos desaparecidos, a permanência do esquecido, o destino de ser culpado, a companhia da solidão, a maldição salutar do amor.

Ela me disse que Elimane, seu irmão, escreveu o Labirinto do Inumano, que “não só punha um fim no passado, até o levava mais para lá”, de regresso a casa. Eh, mano, sabes que só tem uma CASA mesmo?… Onde nos descascamos do que a sociedade nos cravou em forma de engravatamento abrilhantado para fazer torcer pescoços, que rodam, e como rodam pa!, quando passamos de Boss ou de Queen na passadeira social! ‘Tá de ver, brother, que só passa nessa passadeira a quem lhe é permitido… A Elimane não lhe deram essa possibilidade de passadeir’ar. Ele foi de regresso a casa, a casa de seu pai. Mais tarde lhe segui e por isso lhe afoguei “a verdade do seu livro (…) a história do último sacrifício de um homem” que “para atingir o absoluto (…) mata a memória”. Lhe matei o desejo de se perpetuar, nisso de escrever já sem sentido, com o intuito de se reencontrar.  Lhe segui o pedido deixado anteriormente a se falecer.

Passo a explicar.

Seu irmão, Elimane, me desvelou na carta que enviou “para o seu futuro”, sendo eu esse o mencionado, travestido de leitor, que cada escritor traz “em si um único livro essencial, uma obra fundamental para escrever, entre dois vazios”. Lhe afoguei suas palavras enviadas para seu futuro. Deixei que seu livro inumano ficasse no meu museu dos afectos (te lembras, companheiro? Foi essa a expressão que me prenda’s-te quando te partilhei minhas memórias em formato de objecto, fixadas, com tempo – d’afectos vivemos, no jogo que o passado nos faz, e esse aí tem maningue time! Elimane bem descreveu essa situação da temporalidade).

Hummm… ‘Tou de ver, te peguei o sentido: queres que te conte como foi que tudo se principiou nessa história em que partilhamos pai? Desce lá à linha que se abaixa de seguida e vê se lhe encontras o fio do tempo, quando Elimane e sua irmã se (des)encontraram e me deixaram destinado a lhe afogar a escrita não-essencial. Porque, papá, eu, leitor, sou personagem desse livro que trata d’A mais secreta memória dos homens. Se não intentou nesse sentido, esse autor já foi ultrapassado por esse leitor aqui – decisão do inconsciente, naturalmente, que eu não tomo decisão assim de virar personagem em livro alheio. Quando lhe lia dei de encarnar nisso do escritor que busca o escritor que labirintou, porque me aranhou, me pegou nisso de ficar enredado em sua teia. Como esse seu escritor que procurou o escritor que lhe fascinou, quebrando sua ontologia arrumadinha – sabes disso, brother? Desce na linha e te des’ontologia (te perde em ser).

 

Do escritor

Dizem por esses lados que escritor jovem é escritor que precisa galgar na experiência. ‘Tava de concordância nisso, mas me deparei com Mohamed Mbougar Sarr, senegalês, nascido em 1990. Porra pa! Duas décadas depois de mim?? Fui no espreitamento de suas letras e lhe encontrei esse pedido que não formulou, mas deixou pendurado no meu sentimento: “terrível alternativa existencial (…) perante a qual hesita o coração de qualquer pessoa perseguida pela literatura: escrever, não escrever”. E seu escritor, T. C. Elimane nos deixou, conta Sarr, esse livro, o Labirinto do Inumano, escrito por um senegalês em França, corria o ano de 1938, e que muita tinta fez correr sobre a sua veracidade e qualidade literária em se misturando com a questão da colonialidade ou ancestralidade da mestria no domínio da língua europeia. Mohamed Sarr deu de nos contar em seu livro, A mais secreta memória dos homens (2021), esse outro, escrito por seu conterrâneo – (des)pertenç’ou-se dessa forma. 

Sarr escreve sobre Elimane, que escreveu um livro sobre um rei de crueldade praticada exiguamente – o monarca absoluto a quem o poder alimenta como espiral infinita -, que sua irmã, Siga D., aquela que me fez aguar lá no início, me desvelou e me fez ir na casa de seu pai, pai dos dois como dei de explicar anteriormente, de forma a lhe afogar o caderno que ele, Elimane, me deixou. Porque se tratou de uma “metamorfose ontológica”, que me impactou no ser, não lhe permiti que seu caderno rabiscado se viesse a promover em sua segunda obra em forma publicada. Sabes porquê, brother?

DIÁRIO, SÓ TE ESCREVO POR UMA ÚNICA RAZÃO: dizer o quanto o Labirinto do Inumano me empobreceu. As grandes obras empobrecem e devem empobrecer sempre. Elas tiram-nos o supérfluo. Da sua leitura, saímos sempre desprovidos: enriquecidos, mas enriquecidos por subtração.

Eu, leitor, travestido de escritor, encontro o livro dentro do livro… Ya, travei de repentemente. Tenho de compartilhar quem é o puto, Mohamed Sarr. Diz que foi o primeiro escritor da África Subsaariana a ganhar esse big prémio da literatura, o Goncourt, sedeado lá na França, em 2021. Mas ‘tás de ver, papá? Aqui só chegou mesmo no ano de 2023… Os correios têm um delay, só se entrega a tempo em algumas partes da Europa, nas restantes que se situam na periferia não tem como, é delay mesmo. Do Goncourt para os outros continentes… epa, delay’a maningue. Por isso te mando essas palavras alinhadas a compasso, enquanto esperas que chegue e partilhe Mbougar Sarr contigo.

Sarr botou no mundo sua dúvida disso de ser escritor: o que é isso na definição exacta que confere efectividade de sentido? Confessa que principiou lendo cedo e só escreveu a partir dos seus 20 anos. Te contei que ganha esse Goncourt 100 anos depois do escritor René Maran (1887-1960), que nasceu na Martinica, tendo ido prestar serviço no exército colonial francês? Sua experiência lhe fez escrever a história de Batouala, em que critica o sistema colonial francês. Maran foi o primeiro escritor negro a ganhar o Goncourt. Sarr nasceu em Dakar, no Senegal, e foi de estudar na França. Estava enredado em escrever sua tese sobre a negritude, conceito forjado nos anos de 1930 por Léopold Sédar Senghor (1906 – 2001), político e escritor senegalês, e por Aimé Césaire (1913-2008), poeta surrealista da Martinica. Mas, papá, lhe deu viragem e deixou a escrita dessa natureza, se perdendo na ficcionalidade das palavras. Diz que ficção permite ir além… ‘Tás conectado, brother? Seguimos para a ficção…

Da história

O pai de Elimane e de Siga D. (a que aguou meu olhar), foi de fazer a guerra, queria ser “branco” e se moribundou, se falecendo, deixando sua mãe lá na terra sentada no tronco de uma árvore enquanto lhe esperava. “Já há muito tempo que Mossane vivia nua sob a velha mangueira em frente do cemitério, sem pronunciar uma palavra”. Esperava em companhia do irmão que cegou, o que des’brancou e não foi de fazer a guerra, o que encontrou a des’visão junto do crocodilo que matou seu pai. “Aos vinte e dois anos fiquei cego. Aconteceu na pesca. Nesse dia, estava sozinho, e encontrava-me no braço do rio temido pela maior parte dos pescadores por uma razão muito simples: era o lugar onde antigamente vivia o crocodilo que matara o meu pai, Waly”. O rio lhe testou nesse dia, o puxou para as profundidades, tendo-se ele deixado adormecer, como seu tio aconselhara, e encontrado em sonhos “uma criatura monstruosa com corpo de homem e cabeça de crocodilo”. Se deparou com muitas personalidades, ouviu muito e também viu Mossane, a mãe de Elimane e Siga D., uma “imagem divina”. Quando deu de acordar, estava na barca, mas cegara – “Era este o preço da minha sobrevivência a uma prova em que, compreendi, deveria ter morrido”. O tio lhe avisara que o rio testa sempre quem lhe frequenta.

Diz que Elimane era filho dos dois irmãos (te disse que eram gémeos?…). Só que, epa!, a mãe não tinha em seus planos perder o filho para a brancura também. Elimane se foi um dia de sua aldeia e não mais voltou, pelo menos enquanto sua mãe vivia. Siga D. me contou sua história. Cabe à família transmitir a sua versão da história, essa (des)pertença. Eu sou de veículo’ar. Não resmungo não, te narro minha incursão. Lê lá:

Sua irmã me encontra, aqui travestido de leitor, n’A mais Secreta Memória dos Homens, me nomeando: Diégane Latyr Faye. Eu, Faye, fui empossado por Siga D. de ler o livro de Elimane. Ela me deu depois de eu ter raspado em sentido contrário a “morada da Aranha-mãe”, me dispensou “como uma criança, com uma facilidade humilhante, numa gargalhada”. Eu te disse que suas formas arredondadas me fizeram aguar o olhar?? D. me fez ver uma instropecção. Explico de seguida.

Uma outra alma convidava a minha para si, virava o seu olhar para as suas profundezas, e estava prestes a julgar-se impiedosamente. Era uma autópsia em que o médico legista era também o cadáver; e a única testemunha desta visão, desta sensação que poderíamos qualificar como bela ou horrível, como bela e horrível, era eu.

Nesse momento, Siga D. me desvelou seu irmão: “É um fantasma”. Me disse que “Elimane não se encontra. Ele é que vos aparece. Ele é que vos atravessa. Ele gela-vos os ossos e queima-vos a pele. É uma ilusão viva”.  E depois me deu o livro dele para eu ler e a encontrar noutro país, num outro tempo. Porquê, papá? Epa… “O nosso encontro é insólito, passou por atalhos, mas é para isto que ele se encaminha: este livro. Talvez seja um acaso. Talvez seja o destino. Mas os dois não se opõem necessariamente. O acaso é apenas um destino que desconhecemos, um destino escrito com tinta invisível”. Siga D. me enredou na teia, como uma aranha, me transportou na sua memória…

Lê o livro, meu irmão (estou quase aí). Vamos cruzar nesse futuro imediatista as cinco celas, te lembras? “a imortalidade dos desaparecidos, a permanência do esquecido, o destino de ser culpado, a companhia da solidão, a maldição salutar do amor”. Pisa no stop, freia a música. Precisamos de silêncio, estamos tentando entender a (des)pertença.

*Antropóloga, PhD. Investigadora associada no ​Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)/Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL).

*Fotografia de Amélia de Carvalho Bastos.

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