Tomas Sankara ǀ A revolução tal como me parece, deve visar sempre um fim. Este fim é o desideratum para qualquer participante do processo, exigência suprema. Uma revolução pode transformar-se em teatro, isto ocorre quando ela ganha o sentido circular. Neste sentido, os que supostamente pretendem fazer a revolução tornam-se piões fáceis de modelar e, o poder visado não enfrenta nenhum obstáculo porque, nestas situações qualquer acção é previsível.
A previsibilidade não é um exercício difícil nestas condições, por exemplo, o poder visado sabe que, os que supostamente pretendem mudar o quadro das coisas agem de mesma forma independentemente da situação. Isto parecera ridículo, talvez um exemplo ajude-nos: quando um partido que diz pretender mudar o rumo do país, em cada eleição perdida apresenta as mesmas desculpas e faz o mesmo programa, é disto que se trata. Outro exemplo, quando um grupo de indivíduos dizem pretender destruir o poder instalado, não faz outra coisa senão recorrer à essas mesmas instituições para apresentar queixas e justificações absurdas. É disto que se trata. Apenas por duas razões se pode agir assim: em caso de perturbação mental (perca de memória) ou ignorância profunda. Uma terceira hipótese razoável, em nome de interesses pessoais e do grupo.
Tenho poucas certezas, porém, sobre esse tipo de revolução, tenho a certeza que dela nada resultara. Quando digo “nada” quero dizer que nada resultara que beneficie o refém, o povo. A revolução se transforma num jogo perigoso. Chamemos isto revolução líquida, sem forma, sem fim. A relação do acto de agir e os autores é uma relação de reflexo, ou seja, este processo é a imagem do estado de espírito de seus autores e o inverso também é verdade.
Assim como o líquido, eles não têm forma. A forma simples para reconhecer seus autores é optar por questões básicas, por exemplo, se uma pessoa diz pretender instaurar a democracia num país, não precisa exercício difícil, verifique se é um sujeito democrata. Ou então, se um deputado dizer lutar pela igualdade, a pergunta deve ser formulada com tranquilidade: Se tu és pela igualdade, por que és tão rico?
Para contextualizar a razão de ser desta questao, “If you’re an egalitarian, how come you’re so rich? (titulo original em inglês), é título de um livro do fundador do “marxismo analítico”, Gerald-Allan Cohen. Parte reflexão filosófica é dedicada à sua autobiografia intelectual, recorda a sua vida, desde a infância numa família judia comunista, em Montreal até aos anos em que leccionou em Oxford. Foi em Oxford onde nasceu a questão cima colocada, colocou a pergunta aos seus colegas que pretendiam ser igualitaristas. A intenção da questão é a seguinte: exigir um rigor intelectual intransigente e um empenhamento firme, ou seja, exigir o mais básico dos princípios éticos filosóficos, a coerência entre as palavras e as acções.
Este é o termómetro para medir qualquer a intenção de qualquer agente que pretenda lutar pela justiça e pelo bem dos outros, do povo. Qualquer ambiguidade na resposta deve multiplicar a desconfiança sobre as reais intenções deste autor e seus meios, seu projecto. Isto quer dizer que para fazer revolução o autor deve isento de qualquer incoerência? Não, o autor deve ser comprometido com a verdade e ser razoavelmente coerente. Quanto ao método usado neste tipo de revolução não há muito que dizer sobre, é do formato do agente, é líquido. É um método fundado no esquecimento e acréscimos.
Por exemplo, parece, natural para os autores deste tipo de revolução esquecer a história e acrescentar no imaginário do povo ilusões. Nietzsche usava uma analogia médica para descrever a humanidade, ou seja, para ele, a humanidade inteira é ensaio de receitas de valores. A tendência geral é o esquecimento e acréscimos do espírito. Se a humanidade é um laboratório de experimentos, aplicando esta analogia ao nosso caso, Angola é um ensaio.
Em que sentido a revolução liquida é refém do esquecimento? Primeiro, seus agentes esquecem que usando os mesmos métodos de luta o resultado jamais será diferente e segundo, o ajuste tem que ver com o seguinte, ao passar sua mensagem, os autores desta revolução garantem resultados mágicos. No sentido que, eles sabem que a revolução sob este formato não triunfara, mas garantem unanimemente que haverá resultados. É um processo viciado e circular, entre o esquecimento e ajustes.
Qual o oposto deste comércio (revolução liquida)? A meu ver é a revolução radical. Uma revolução que visa a guerra como fim último. Para evitar qualquer equívoco vale dizer aqui que a guerra que visa este modelo de revolução é uma guerra que tem dupla função: destruir e construir, uma guerra cívica, mas é guerra. A luz dos adeptos desta visão, qualquer revolução que não vise a guerra é uma pseudo-revoluçao, perde sua justificativa teleológica.
Talvez seja importante retomar uma metáfora de Nietzsche neste sentido, a metáfora do martelo. Os autores desta revolução devem imperativamente agir com o martelo, tanto para destruir quanto para construir. Nietzsche usa a metáfora de martelo em dois sentidos: para auscultar, enquanto médico da sociedade e para destruir os ídolos, enquanto espírito livre e inactual. Aos autores da revolução radical exige-se estas duas características resumidas em uma: a coragem.
Ambas resultam do processo de educação, porém, a primeira resulta da educação prisioneira das sombras da colonização, por isso, seus autores, mais do que lutar pelo bem, lutam para substituir o colono e criar novos escravos. Paulo Freire tinha uma bela fórmula para descrever este modelo de educação. Quer dizer, os autores da primeira revolução observaram por longo tempo o monstro que dizem combater e transformaram-se eles mesmo os monstros, para usar outra fórmula de Nietzsche (parágrafo 146 de Para Além do Bem e Mal).
O segundo modelo de revolução visa como fim a própria revolução, por via da guerra, uma guerra que visa ao seu termo uma transformação profunda. É uma operação genealogista, procura visitar as profundezas da questão e considerar a primeira revolução como um ídolo a ser destruído.