Garimpo infantil e o seu enquadramento teórico

Garimpo infantil e o seu enquadramento teórico

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Domingos da Cruz I A literatura académica a que tivemos acesso, não apresenta uma teoria sobre o garimpo infantil. a maior parte dos pesquisadores tende a estudar o trabalho infantil de forma agregada, colocando todas as actividades que perigam o desenvolvimento da criança e do adolescente, num pacote uniforme e classificá-las como sendo trabalho infantil. Isto significa, que dificilmente apresentam estudos sobre grupos e tipos de actividades sectorizadas (especializadas), como por exemplo, crianças que se dedicam somente a trabalhos domésticos em residência de parentes na condição de orfandade, e sem acesso à escola e ao lazer. Os estudos falam genericamente sobre trabalho infantil. Curiosamente, a maior parte dos estudiosos confundem as causas do trabalho infantil enquanto categoria geral e os efeitos cíclicos, que correspondem às consequências de más políticas públicas ou da inexistência delas, fundada na má-fé daqueles que têm poder de decisão. Inúmeros estudos falam da pobreza como causa do trabalho infantil. Esta leitura constitui um erro de análise inaceitável. O trabalho infantil está embutido no interior da pobreza. O trabalho infantil é uma das expressões da pobreza. Não é a pobreza que constitui causa do trabalho infantil. A pobreza é uma escolha das elites. A pobreza é uma opção que favorece uns. A causa da pobreza e por conseguinte da sua manifestação — o trabalho infantil e suas subcategorias, como é o caso do garimpo infantil — tem como causa central a política. De acordo com os ensinamentos de Jacques Généreux (1998: 22-23), no seu estudo O Horror Político (uma crítica à obra O Horror Económico), partilha do ponto de vista de que a pobreza é uma escolha do jogo político contra os povos: «De facto, a pobreza, o desemprego, a exclusão social não constam de modo algum das “leis da Economia”. Constam das leis dos homens, e a vocação da política é, justamente redefini-las em função das escolhas colectivas que saem do debate. A exclusão social começa a caracterizar a [nossa sociedade bem] antes da tirania do mercado selvagem. Nossa incapacidade para combater o avanço do desemprego já era flagrante, mesmo quando ainda dispúnhamos de todas as margens de manobras políticas […]». Généreux (1998:27) aprofunda e dá transparência na sua perspectiva de análise, dizendo que a «nossa crise não é da economia, mas, sobretudo, da vontade política, da coragem política, do debate político, da informação política, do compromisso político, da luta política — uma crise [do sistema político]. […] ao contrário, se o verdadeiro horror é político, é com certeza mais chocante, mas também menos desesperador do que um horror económico. Mais chocante, porque esse horror não é fruto de uma série de pressões impossíveis de controlar, mas sim, de decisões políticas deliberadas. Menos desesperador, porque tem em nossas mãos todos os instrumentos para lutar e, portanto, uma verdadeira razão de esperança [para as nossas crianças]». outro equivoco referido como sendo causa do trabalho infantil é a baixa escolaridade dos pais.

Em virtude da tese expressa acima, parece líquido que a baixa escolaridade dos pais no nosso contexto, reside na privação do acesso à escola, e noutros casos, privados de uma escola de qualidade que afugentou tanto os pais quando tinham a idade para frequentar os primeiros níveis de ensino, uma experiência que em muitos casos volta a suceder com os seus descendentes. É a ausência de políticas educativas que levam os cidadãos a não terem acesso à educação e por consequência terão uma visão condicionada sobre a vida e o mundo. Tanto os pais, quanto os filhos que se dedicam ao trabalho infantil são vítimas de um sistema excludente. o baixo nível de escolaridade não é causa do trabalho infantil, tal como a pobreza, é um ingrediente que expressa o ciclo vicioso de más políticas que não olha a escola como um dos maiores e melhores factores de inclusão e progresso individual e colectivo. Incluir o baixo nível de escolaridade, ou o analfabetismo dos pais como causa do trabalho infantil, traduzir-se-á em dupla vitimação: fazer de alguém que é vítima de um sistema, novamente vítima de uma análise tacanha porque o responsabiliza, o culpabiliza de algo sobre o qual não tem controlo e não tem como fugir dele. Há uma verdadeira causa marginal, a cultura, a tradição. Em muitos casos, a visão sobre a vida e o mundo, fundada na tradição, influencia de que maneira nos encaminhamentos que os pais dão aos filhos. Em muitas comunidades, é tolerável que menores pratiquem a agricultura porque entendem que isto o ajudará a ser uma pessoa melhor em relação ao valor do trabalho. Parece que esta visão de preparação futura da criança para a vida adulta, confundindo-a com uma miniatura adulta, justifica e fundamenta parcialmente a tolerância da sociedade em relação ao trabalho de crianças dedicadas ao garimpo à vista de toda a sociedade, e sem haver qualquer tomada de posição com vista a pôr termo. segundo Custódio (2006: 30) «a cultura do trabalho precoce como forma de ocupação e manutenção das crianças e adolescentes longe das ruas, das drogas e da ociosidade», decorre não só de uma visão cultural, mas também de uma ideologia de longos séculos que separa os afortunados dos excluídos. Basta lembrar que o direito penal colonial, herdado na íntegra pelo  Estado pós-colonial angolano, estabelece os crimes de vagabundagem e vadiagem. Com estes crimes, os adolescentes foram influenciados a trabalhar a todo custo, não importa se fosse na carvoaria, no corte e abate de árvores, no pasto ou na machamba, como formas e meios para escapar de qualquer acusação.  Este modus operandis e procedendis prolonga-se até aos nossos dias. Não no quadro da aplicação legal, porque estas normas foram reduzidas a mortandade, mas na forma de pensar e nas práticas sociais. O enraizamento da ideia de que “o filho de peixe é peixe”. Ou, “filha de ladrão, assim será”, estas premissas populares, reforçam a tese segundo a qual, os filhos não poderão fugir ao percurso social e profissional dos pais. Não terão qualquer possibilidade de desencadearem a mobilidade para cima, na escala social. Esta mundividência fatalista (predestinação) sobre o que as pessoas serão em função das suas origens sociais, viabiliza o imobilismo das autoridades. Este imobilismo traduz-se em não fazerem nada para retirar as crianças da condição de reprodução das mesmas actividades dos pais. Por outro lado, faz com que a sociedade naturalize e aceite esta condição sub-humana como sendo inevitável, por isso, aceitável. Esta causa marginal que se chama tradição e cultura, tem o seu peso, por isso mesmo, o trabalho infantil tem relação com factores que vão muito além das próprias necessidades da infância. Existe uma cultura arraigada na sociedade de que a criança e o adolescente devem seguir o modelo de vida dos seus próprios pais, mesmo que em condições de exploração. O trabalho é tolerado por uma parcela significativa da sociedade, pelos mitos que ele encerra: é ‘formativo’, é ‘melhor a criança trabalhar que fazer nada’, ele ‘prepara a criança para o futuro’. A pouca densidade da educação escolar obrigatória de qualidade ofertada pelos poderes públicos, além da inexistência de uma rede de políticas públicas sociais fundamentais ao desenvolvimento da infância, são algumas outras razões apontadas como incentivo à família para a incorporação de seus filhos nas estratégias de trabalho e/ou sobrevivência, afirma Silva (2001: 112). O papel parcial da cultura no trabalho em idade precoce parece evidente. A nossa sociedade entende que quando uma criança se dedica ao trabalho, seja ele qual for, retira-o da ociosidade, das más influências e companhias, livra-o da maconha, do álcool ou da droga, contribui para a renda familiar ou para as suas despesas pessoais. Custódio partilha da nossa análise-constatação, quando afirma que a tradição leva as famílias e a sociedade a pensarem com o seguinte esquema: «1) é melhor trabalhar do que roubar; 2) o trabalho da criança ajuda a família; 3) é melhor trabalhar do que ficar nas ruas; 4) […] 5) trabalhar desde cedo acumula experiência para trabalhos futuros; 6) é melhor trabalhar do que usar drogas; 6) trabalhar não faz mal a ninguém» (2006:100).

Na realidade, esta perspectiva cultural marcha numa lógica contrária ao consenso civilizacional universal, tanto à luz do Direito internacional dos Direitos Humanos, quanto o da Psicologia infantil e das novas correntes da Pedagogia Crítica. Por outro lado, algumas culturas e tradições africanas protegem também a criança, garantindo os seus direitos, como atesta a professora Gnanvo (2012:301), quando afirma que em algumas tradições da «sociedade africana, a criança é um [ente] precioso, uma bênção e um dom dos deuses. […] as práticas culturais tendem  a conceder-lhe direitos necessários ao seu desenvolvimento e à construção da sua personalidade». Pensar que o trabalho infantil promove o desenvolvimento da criança, prepara-a para uma vida adulta melhor é um equívoco. O trabalho em idade precoce, provoca é, nada mais do que a negação à criança, ao direito à ser criança e adolescente. Trabalhar enquanto criança, rouba à criança a sua infância e a destrói  no presente e no futuro.

No momento derradeiro deste tópico, gostaria de reafirmar a causa central da exclusão — da qual fazem parte enquanto vítimas — as crianças garimpeiras. Num estudo monumental, intitulado, Porque Falham as Nações, de coautoria entre Daron Acemoglu e James Robinson, professores do MIT e Harvard, atestam que a miséria funda-se nas instituições políticas e na forma como estas se ressignificam (2013: 12-13): «[…] um Estado ineficaz e corrupto e uma sociedade em que não podem fazer o uso do seu talento, ambição e engenho e até da sua instrução. Mas também reconhecem[os] que os problemas têm uma origem política. Todos os obstáculos económicos que enfrentamos derivam da maneira como o poder político é exercido […] e monopolizado por uma pequena elite. Compreendem[os] que essa é a primeira coisa que é preciso mudar». Os dois pesquisadores vão mais longe dizendo que «tem que ver com os efeitos das instituições no êxito e fracasso das nações — daí a economia da pobreza e da prosperidade; tem também que ver com a forma como as instituições são determinadas e mudam ao longo do tempo e como não mudam, mesmo quando geram a pobreza e a miséria de milhões de seres humanos — daí a política da pobreza e da prosperidade» (2013:60).

 

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