Grupos de pressão e a necessidade de uma economia de resistência

Grupos de pressão e a necessidade de uma economia de resistência

DC

Por Sedrick de Carvalho||Agradecido e sobressaltado. Foi assim que me senti ao receber o nobre convite/pedido para emitir uma crítica ao livro “Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura – Filosofia política da libertação para Angola”, da autoria de Domingos da Cruz, que, segundo o mesmo, será lançado nos próximos dias.

Passados alguns dias, não conseguia grafar, afinal de contas é muita responsabilidade escrever sobre um livro. Daí que pensei em debruçar-me sobre partes do livro, à igualdade dos que me antecederam neste processo de comentários ao “Ferramentas”.

Logo no primeiro capítulo, realçando Robert Helvey, DC (iniciais do nome do escritor) conceitua o termo “desafio político [como] luta não violenta, [em forma de] protesto, não-cooperação [ou ainda] intervenção, aplicada desafiadora e activamente para fins políticos”.

É importante ter-se em conta a nota incluída no livro de que luta não-violenta não pressupõe que o indivíduo comprometido com a luta tenha de agir na base do pacifismo cristão, dando o lado esquerdo da face depois de levar uma “boa” bofetada no lado direito.

Crítica: A possibilidade do indivíduo ripostar diante das agressões provenientes de organismos-agentes representantes da autoridade estatal,destaco a polícia e forças armadas, suscita a possibilidade de se instalar o caos no País, pois, como sabemos, as acusações de rebeldia e a instabilidade nacional surgirão da parte do agressor primário ― as forças instituídas ―, catalogando assim os meros alvos da brutalidade característica dos agentes da ordem do partido como insurgentes, “anti-paz” e contra a reconciliação nacional ou ainda a democracia. Discurso falacioso.

Admitindo a probabilidade de existir uma escaramuça, fruto da legítima defesa exercida contra actores bárbaros pertencentes a sectores estrategicamente criados, os indivíduos terão o direito à resistência como base de justificação para travara onda de maus-tratos em consequência do simples exercício do direito à manifestação, não cooperação ou ainda – notemos bem –ao direito a autodeterminação dos povos.

Para inúmeros religiosos, a questão da legítima defesa não se coloca,isto por se entender que “devemos perdoar os que nos fazem mal setenta vezes sete”, acreditando cegamente que só Deus pode proteger o homem das maldades do próprio homem. Desta forma, o regime déspota sob capa de democrático continua a espezinhar povos e conta com a cumplicidade descarada de eclesiásticos quando afirmam que os governantes foram colocados pelo Grandioso, ignorando, mas propositadamente, que as escrituras bíblicas é farta em exemplos de destituição de reis-chefes pelos povos de Deus.

Ainda no primeiro capítulo, o escritor aponta para a necessidade de se “catalogar organizações nacionais formais com as quais se pode contar para a luta [não violenta]”, partindo do princípio de que se deve ter em atenção o conceito grupos de pressões, do qual as igrejas, numa concepção tradicional, fazem parte.

Catalogar organizações que são verdadeiramente grupos de pressão no País é, para mim, uma missão bastante difícil numa sociedade onde as instituições são completamente manietadas.

Ora vejamos: Como se pode contar com instituições religiosas para efectivar o desafio político, ao estilo do que aconteceu nos Estados Unidos da América pelos direitos civis e políticos da população afro-americana,quando estas organizações fazem cultos com a imagem do Presidente da República como pano de fundo?

Quanto às Organizações da Sociedade Civil (OSC), tenho ainda muitas dúvidas sobre esse segmento enquanto grupo de pressão.

“Se os pró-democracia batem-se pela queda da ditadura, é sinal evidente de que a sociedade não é democrática” (p.23).

Um estudo realizado pelo pesquisador e docente universitário Nuno Álvaro Dala mostra que, num universo de 979 relatórios/conclusões ― públicos e internos ― analisados, “nenhuma OSC em seus documentos oficiais cita e assume a existência de uma ditadura no País, aliás, o simples termo ´ditadura´ em nenhuma linha dos 979 documentos examinados aparece.

Duas questões levanto aqui: ou não existe realmente ditadura em Angola, que pressupõe que as eleições realizadas no País têm sido livres e até justas, que o poder político e legislativo é efectivamente partilhado e não refém de maiorias absurdas, ou ainda que o poder Executivo presta conta do que faz com dinheiro dos povos (nossos dinheiros); e a outra questão, uma simples hipótese à luz da evolução das formas de opressão, podemos estar perante um novo modelo de violação dos direitos e liberdades, fazendo com que o termo “ditadura” não seja aplicável à realidade angolana. Como disse, é mera hipótese.

Entretanto, não assumir a existência de uma ditadura sofisticada no País ou pelo menos uma espécie de sistema partido-único ao estilo do que tivemos nos anos 70 à 90,é resultante também da necessidade de se manter aparências e postos de trabalhos.CAPA-DC1 (2)

Domingos da Cruz fala no livro que não se deve confundir “grupos de pressão com os grupos corporativos ou grupos de interesse”, e define que grupos de interesse “são organizações formais ou informais em que os indivíduos que as compõem defendem seus interesses, por mais simples que sejam”, (p.20).

Cruz exemplifica que alguns interesses destes grupos são tão básicos como “manter um salário,seguro de saúde e segurança no trabalho”, mas não descarta a imperiosa necessidade de algumas existirem, tais como um sindicato.

Muitas OSC agem na lógica de um sindicato. Usam a capa de “sociedade civil” para se servirem, enquanto vão inculcando na cabeça dos menos atentos que são “a voz dos que não têm voz” ou “os porta-vozes dos oprimidos”. Tudo truque. Pura retórica.

Há ainda outras organizações que se perdem no longo percurso que vêm trilhando e o objectivo inicial de ser grupo de pressão“há dado momento deixam o seu ideal substancial, diluem-se e ganham um carácter burocrático e puramente corporativo”.

Manter aparências é simplesmente o corolário da perca do “ideal substancial”descrito por DC no “Ferramentas”, e é neste ponto em que estas organizações facilmente se transformam em instrumentos de legitimação das acções do regime, principiando em arranjar discursos de conveniência, abordando sempre o superficial e evocando frases-feitas como “estamos num processo de consolidação da democracia”, ou ainda dizendo que “temos de reforçar o processo de reconciliação nacional”.

Nota: É importante destacar que, não obstante ser difícil catalogar organizações com que se pode contar, é praticamente de senso comum que existam individualidades que por si só valham mais que muitas instituições juntas.

Rapidamente salto para os “Quatro Nós” já muito aflorado pelos articulistas que antecederam nesse processo de crítica e comentário ao livro, mas que ainda assim faço questão de dedicar algumas linhas.

Defendo que,enquanto produto natural, não nascemos disponíveis à democracia, mas esta característica é resultante da racionalidade e necessidade de socialização no espaço geográfico onde estamos inseridos.

Conclui Domingos, na página 23, que falta democracia em todas esferas para o caso de Angola, facto que torna o desafio político mais exigente.

Os “Quatro Nós” resume-se no seguinte: em determinados grupos não é aceitável a auto-crítica, deixando essa tarefa para os que não fazem parte do “Nós”.

Todos somos ou podemos fazer parte de um dos “Nós”, e têm como característica o “autoritarismo e anti-democratas”.

Primeiramente, Domingos da Cruz traz o “Nós Igreja”. Nesta organização, diz o autor, olhando para a realidade, todos devem estar de acordo, mas os seus membros são livres de criticarem os outros “Nós”, isto desde que não sejam parceiros da Igreja.

“O crítico interno lhe é dado uma sorte repugnante”, atesta o escritor. Como exemplos, cito os padres Raúl Tati e Pio Wacussanga.

O outro “Nós” são os partidos da oposição, como não podia deixar de ser, pois é praticamente proibido estatutariamente fazer auto-crítica, podendo ser “expurgado” se algum membro o fizer, não importando a categoria – militantes de base ou seniores.

Hamm… Podem sempre disparar para fora, principalmente contra o “grupo hegemónico”, e até se incentiva e bonifica-se.

A sociedade civil é também uma categoria do “Nós”, do qual o autor do livro faz parte por arrasto do percurso e discurso. Aqui se destaca uma característica muito própria –o cinismo ―, pois fingem ser tolerantes mas não passa de falsidade.

Recentemente, debates acesos foram travados nas redes sociais sobre esse cinismo das OSC, onde ficou patente a intolerância de alguns membros deste segmento social.

Acusações de agente secreto do regime não tardam em aparecer sempre que alguém decide criticar-se, enquanto membro da OSC.

―Esse também nem parece ser dos nossos ― alegam.

― Se calhar já recebeu dinheiro ― imaginam, e realçam viagens, bens e outros aspectos para argumentar as suspeitas.

Nestes casos, a solução, idem de idem ― expurgação do ´criticólogo´.

O quarto e último “Nós” é…grupo hegemónico. Lá a crítica “é veneno e [pode] custa[r] a vida de quem atreve-se a criticar”. Em Angola esta conclusão é bastante simples de se confirmar, desde 27 de Maio de 1977 ao ignorado percurso de Marcolino Moco no MPLA, ou ainda de William Tonet, afastados e riscados da lista de militantes por criticarem.

Uauu… Domingos da Cruz é sem dúvidas genial ao enumerar estes “Nós”, mas há ainda outros “Nós” que podem juntar-se aos quatro, como cultura e etnia.

Todos estes grupos, conclui o autor do polémico livro “Quando a guerra é necessária e urgente”, seriam “capazes de matar os que se atrevem a fazer uso da liberdade de comunicar ou outras liberdades incómodas”, desde que tenham o “poder de repressão e capacidade de impor toda a sua vontade”.

Um dos instrumentos para a perpetuidade no poder―quando nasci, já encontrei o actual Presidente da República, e já lá estava há 10 anos ―é o dinheiro, que tem servido para manietar os povos. É fácil comprar votos quando o indivíduo pouco ou nada tem.

A mendicância é sustentada por ofertas de bicicletas, alguns saquinhos de arroz, camisolas do partido com o rosto do chefe, umas folhas de chapa de zinco depois da casa ser derrubada pela chuvinha que cai antes de Abril, uns lápis e cadernos às crianças, etc, que por vezes contempla apenas o vizinho mas garante também o voto de quem só assistiu a entrega.

Mendigos na terra da prosperidade chinesa, onde inclusive há uma fórmula para multiplicar pedintes para que esteja assegurado o sufrágio passado cinco anos.??????????????????????????????????????????????????????????????????????????????

Para fazer face a esta multiplicação de mendigos, o escriba propõe uma economia de resistência.

Como funciona? Opera essencialmente no plano informal. Consiste numa produção independente e, em algumas circunstâncias, também na esfera formal fora do controlo da tirania.

“A economia de resistência é tão importante quanto o plano estratégico ou o conjunto das 198 técnicas e princípios para luta pacífica, com vista a detonar o ditador e seu grupo assim como a cultura instalada”, lê-se no livro que está na forja.

Viver com dignidade é necessário para qualquer ser humano, e os combatentes pela democracia estão incluídos. Esta economia underground impedirá a rendição por causa da fome ou por um gerador fofandó para assistir Big Brother Angola, tratamento médico, etc.

“Os que partilham os ideais de liberdade têm dever moral de partilhar estratégias e práticas exitosas de captar ou multiplicar recursos[…]”, diz DC.

O ubuntu, que pressupõe humanidade com os outros, é chamado num dos subtítulos do capítulo onze para realçar a “´felicidade do maior número´ de companheiros de luta”, pois “não há felicidade individual quando o outro não atingiu tal felicidade”.

Fica aqui um cheirinho do quão recomendável está o livro:

“A economia de resistência pressupõe que os consumidores dos produtos dos resistentes sejam em primeira instância os membros da resistência democrática. […]Por outro lado, fortalece a nossa autoridade moral para governar no futuro. Uma vez que valorizamos a capacidade criativa das pessoas hoje, é sinal que ao assumirmos o poder (em tese) incentivaremos que mais criações e talentos nasçam em todas áreas, desde a ciência, arte, moda, desporto aos negócios”(p.161).

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