Kipenas, escombros e o vazio: para os governantes estas são “escolas” em Malanje

Kipenas, escombros e o vazio: para os governantes estas são “escolas” em Malanje

António Salatiel* ǁ Escolas da “cor do abandono”, em Malanje, são o resultado da falta de investimento no ensino. Entende-se por escola, a instituição que se dedica ao processo de ensino e aprendizagem. É uma das mais importantes na vida de um indivíduo, assim como para as famílias, já que, na actualidade, exige-se que uma criança faça parte da escola desde a sua infância.

A escola deve ser organizada de forma a possibilitar a total exploração do ambiente educativo e gerar motivações que possibilitem interacções de alto nível entre os alunos e professores. Aconselha-se que a escola ofereça um espaço completo, agradável e acolhedor ao aluno, porque, para além de facilitar o processo de aprendizagem, melhora a sua saúde física e psicológica. Tais pressupostos não se têm cumprido na província de Malanje. Existem, um pouco por toda a região, escombros que foram adaptados para serem escolas. Infraestruturas inóspitas, onde são ministradas as aulas, desprovidas de tectos (para não falar das casas de banho), em flagrante atropelo aos critérios para as condições mínimas que se exigem para uma escola.

No bairro Catombe de Baixo, aproximadamente a três quilómetros da pequena cidade malanjina, encontramos a escola primária com o mesmo nome e que tem apenas uma sala que é, na verdade, um escombro sem tecto e sem um corpo directivo. Esta escola conta com três turmas no período da manhã e igual número no período da tarde, sendo que apenas uma turma pode ocupar a sala-escombro em cada período. As demais têm de se “contentar” com as árvores que circundam a “escola”. Geralmente, as turmas iniciam o ano lectivo com 40 alunos cada, sendo que o número vai reduzindo ao longo dos meses até chegar aos 10, devido às péssimas condições.

A ocupação da única sala da escola da Catombe é feita de forma arbitrária: o primeiro professor a chegar, ocupa-a, como nos conta Madalena Evaristo, de 12 anos, aluna da 4ª classe. Residente no bairro Maxinde, a pequena Madalena percorre quase três quilómetros para chegar à escola e mostra-se insatisfeita com as condições que a “escola” oferece. Tendo em conta as condições precárias, ela desabafa: “Sentamos-[nos] nas pedras. A situação agrava-se quando chove ou quando há sol intenso”, aspectos que, diz, reduzem a capacidade de se concentrar na aula. Um dos morados da zona, há cinco anos e que quis manter-se anónimo, frisou que as peripécias vividas pelos alunos e professores são penosas, considerando que é inconcebível existirem escolas tão perto da cidade e naquelas condições lastimáveis: “é pecado o que se vive aqui. Já passaram por cá várias equipas do governo, dizendo que iriam mudar isto, mas nunca vimos nada”, lamentou o morador.

Kipena da Katombe. Em Malanje isso é uma escola, localizada no bairro Katombe.

Além das péssimas condições da escola, o bairro Catombe vê-se a braços com outros problemas sociais e estruturais, com o é o caso da falta de água potável, luz elétrica, serviços de saúde e outros. Problemas estes que resultam da permanente ausência do Estado na circunscrição e que tem forçado, inclusive, moradores a abandonar o bairro.

A precariedade vive-se e repete-se um pouco por todos os bairros da cidade, como, por exemplo, na Canâmbua, onde se situa a escola Esquadrão Bomboko. Esta escola situa-se a cerca de cem metros do edifício que acolhe o governo provincial de Malanje. Esta é uma estrutura no centro da cidade cujas obras estão paralisadas há dois anos por razões, até então, desconhecidas. Por conta das intervenções que estavam a realizar-se, algumas salas de aula ficaram sem as coberturas de zinco que foram aproveitadas pela direcção da escola para construir salas de chapa, respondendo assim à demanda enquanto se aguarda pela conclusão das obras.

Em função da intervenção que vinha sendo feita na mesma, algumas salas de aula ficaram sem as coberturas de zinco, entretanto aproveitadas pela direcção da escola para construir salas de chapa, de maneira a atender a demanda, enquanto se aguarda pela conclusão das obras.

As escolas próximas da cidade de Malanje – com destaque para as do ensino primário – são, na sua maioria, Kipenas (escombros, em Kimbundo) contrariando os discursos dos detentores de cargos públicos que sugerem a aposta do governa na garantia e manutenção de uma educação de qualidade e que obedeça aos padrões exigidos universalmente.

À semelhança do que acontece nos bairros Catombe e Canâmbua, a Quizanga é outra área da cidade de Malanje onde existem várias escolas em condições deploráveis. Nesse bairro histórico, a nossa equipa de reportagem encontrou três escolas-escombros, nomeadamente, a Cabuabuáta, Baúca e a escola 157 da Quizanga. Na escola da Baúca – termo que significa esbranquiçado, empoeirado – o cenário é de uma casa abandonada, tomada pelo lixo e pela vegetação.

A escola da Cabuabuáta, com apenas uma sala de aula e onde se congregam duas turmas de segunda e terceira classe com cerca de 100 alunos, foi construída próxima de sepulturas.

Essas estruturas que fingem ser escolas, não se adequam ao artigo 1º da Constituição da República de Angola (CRA) que consagra a protecção da dignidade humana: “Angola é uma República soberana e independente baseada na dignidade da pessoa humana, […]”, como se pode ler na Carta Magna. Contudo, o desfile de precariedade não fica por aqui. No bairro da Cahala, está a escola das Palmeiras. Construída com adobe, a estrutura encontra-se na iminência de desabar, por conta das fissuras que venceram com o tempo. Ainda assim, crianças entre os 5 e os 16 anos, continuam a assistir às aulas no local, imbuídos no espírito da construção de um futuro melhor.

Marcos João Maurício, de 11 anos, aluno da 4ª classe, diz não sentir prazer em estudar na escola das Palmeiras por esta não ser uma escola adequada, não possuir portas nem janelas e não ter condições básicas de higiene, obrigando-se, vezes sem conta, a limpar dejectos fecais antes das aulas. Outro problema que tira o sono aos alunos relaciona-se com a insegurança do recinto escolar. Segundo Maurício, têm existido sessões de apedrejamento, perpetradas por desconhecidos. Face a estes problemas de insuficiência, adiantou ter pensado desistir, mas lembra que não estudar é colocar em perigo o seu futuro: “Só insisto nesta escola porque quero ser alguém na vida. A minha mãe diz que quem não estuda, corre o risco de se tornar bagageiro”, contou-nos o menino.

“Escola da Katombe”, turma B, 3ª Classe.

Pedagogo sugere suspensão de aulas

Victor Alexandre, pedagogo e professor universitário, afirma que as infraestruturas destes locais não apresentam as condições básicas para poderem ser consideradas como escolas. Lamenta a existência de escolas nestas condições dentro do casco urbanos: “esses são espaços em que professores e alunos convergem para a transmissão de conhecimentos”, ressalta. Assim, no seu entender, seria preferível paralisar as aulas do que as ministrar nas actuais condições, condições essas que constituem um atentado ao processo de ensino e aprendizagem e que não compadecem com adaptações.

O professor Victor Alexandre considera que uma escola tem de possuir uma biblioteca, espaços lúdicos e verdes, sem se limitar apenas à presença de alunos e professores numa sala de aula. A inclusão e acessibilidade a outras metodologias devem ser tidas em conta para prestar um ensino de qualidade. Considera-se que, das escolas apresentadas, advirão quadros não reflexivos e reprodutores que se traduzirá numa pior geração de adultos do que a que temos hoje.

O pedagogo afirmou que o índice de satisfação dos professores e alunos que frequentam estas escolas é diminuto, havendo por isso uma grande probabilidade dos professores fingirem que ensinam e dos alunos simularem que aprendem. Este é um processo infrutífero e que conduz à frustração de expectativas dos futuros quadros. O especialista recorda projectos que são “bonitos” no papel, com a projecção de escolas ideais, com infraestruturas adequadas, mas que não são executadas. Victor Alexandre alerta, também, para o aborrecimento da sociedade face aos discursos e a exigência de acções concretas. Sendo que o sector da educação em Malanje não é dos melhores, é, pois, urgente que se operem melhorias para a democratização do acesso à escola.

A realidade contraria a aposta na melhora da educação, reiterada em várias discursos políticos. “É doloroso ver a forma como os meninos vão à escola. É penoso vê-los sem cadeiras, latas e outros objetos para se sentarem. Temos ainda turmas com números excessivos, penalizando o professor”, explica Victor Alexandre, situação que dificulta o processo de aprendizagem. O pedagogo mostra-se também apreensivo face ao grande número de alunos que só frequentam a escola em época de exame, mas que são excluídos das pautas. Outro calcanhar-de-aquiles é o vazamento de provas, práticas que se tem registado com alguma frequência em Malanje. Face a esta situação questiona: “como são formados esses alunos? Dá para confiar? Há uma série de elementos que não ajudam em nada o ensino e a aprendizagem. Depois somos nós mesmo a reproduzir discursos de que os técnicos não apresentam a qualidade esperada”.

“Escola da Baúca”, bairro da Kizanga.

Sociólogo questiona o actual panorama educacional na província

O sociólogo da educação, Bartolomeu Papusseco dos Santos, faz uma distinção entre escola enquanto instituição escolar e enquanto infra-estrutura escola. Definiu escola enquanto instituição social que funciona dentro de uma infraestrutura, existindo, por isso, escolas que funcionam em diversos lugares. Porém, quando se trata de escolas formais, é convenção que funcionem em infraestruturas apropriadas, possuindo elementos que facilitam o processo de ensino e aprendizagem. “Olhei para as fotos e, realmente, muitas infraestruturas que existem no município de Malanje não podem ser chamadas de escola. Leva-me a pensar que estamos a brincar à escola e escolarização, pois estas não contribuem em nada para uma aprendizagem significativa”, afirmou o sociólogo.

Bartolomeu Papusseco dos Santos referenciou uma série de critérios que fazem de uma infra-estrutura um espaço adequado para proporcionar, de forma saudável, o ensino e aprendizagem, oferecendo um ambiento propício para os alunos do ensino primário e primeiro ciclo. Critérios que vão desde o tipo de salas, modelos de carteiras, o espaçamento, a ventilação. “Como se viu nas imagens, existem escolas que nem sequer têm janelas…não há uma ventilação apropriada que facilite o bem-estar dos alunos”, explica, acrescentando que um ambiente não saudável contribui para a degradação da aprendizagem. Para ele, a situação em causa pode ser considerada uma violação dos Direitos Humanos e dos 11 compromissos assumidos pelo governo para com as crianças. Na opinião do sociólogo, não é possível transmitir-se uma educação formal de qualidade dentro de escombros e sustenta, também, que juntar duas turmas numa sala de aula não devia ser parte da realidade do país, visto que inviabiliza a formação dos alunos.

O sociólogo acrescenta ainda que a falta de recursos não pode justificar a existência de escolas nestas condições: “transformar escombros em escolas não se justifica. As salas são construídas em adobe, sem tecto, e não há justificação, a nenhum nível. Não se concebe, no nosso contexto…é calamitoso”, referindo que os orçamentos destinados para o sector da educação dariam para construir escolas com condições mínimas. Sugeriu que o gabinete da educação leve o assunto a discussão, por serem questões que são desconhecidas de muitos. Alerta ainda para a fraca qualidade de quadros a serem formados nas condições relatadas. Apontou, ainda, para a necessidade de se analisar o sector da educação de forma desapaixonada, com responsabilidade, de modo a alcançar-se as metas preconizadas e que catapultariam o país para o desenvolvimento humano desejado. Paposseco admite existir um retrocesso no sector da educação, apesar da construção de várias infraestruturas escolares, recuo que se espelha num ambiente escolar inapropriado e infraestruturas desajustadas.

Para terminar, o sociólogo, deixou um veemente apelo à sociedade para que olhe para o sector da educação como uma peça chave para o desenvolvimento do país. Angola ainda se encontra na lista vermelha da escolarização, daí serem enviados, anualmente, para fora do país, jovens para se formarem e preparem internamente as condições para garantirmos uma formação de qualidade.

Psicólogo alerta para desenvolvimento de transtornos

“Escola da Bomboco”, localizada na fronteira entre o bairro Katepa e Kanambwa.

Lourenço Nicolau, psicólogo da educação, alinha no mesmo diapasão considerando lastimável que, em pleno século XXI, ainda haja crianças a assistir às aulas em condições que as fotos atestamos. Estamos, na sua óptica, na presença de estruturas que não configuram escolas adequadas para os dias de hoje.

O psicólogo reforçou a necessidade de as famílias prestarem mais atenção às escolas dos seus educandos, por estas contribuírem para o desenvolvimento de transtornos de aplicação, rejeição escolar e timidez. Segundo ele, a realidade que se vive em muitas escolas leva a acreditar que o Estado abandonou o projeto de escola. Não são visíveis políticas do Estado que estejam viradas para a concretização de escolas para a vida, nem para políticas educacionais inclusivas. Acrescentou que as escolas apetrechadas que existem são para as famílias privilegiadas e abastadas, não para as camadas baixas da sociedade angolana.

Em sintonia com os especialistas referidos acima, Lourenço Nicolau esclarece que, a qualidade e competência dos alunos em escombros é deficitária, serão incapazes de dar resposta aos desafios sociais. Assinala, também, que os referidos quadros podem sair dessas escolas com transtornos comportamentais de várias índoles.

Jurista condena a situação das escolas em discussão

Ainda sobre este assunto, ouvimos o jurista Israel da Silva que, ao olhar para as imagens, disse que a situação era um atento à dignidade humana. Perguntou: “para onde vai o bolo financeiro destinado à melhoria do sector da educação na província?”. Há crianças a estudar em salas de aula que parecem capoeiras. Sabemos que a capoeira é o lugar das galinhas, e as crianças que são colocadas em lugares desses sentem-se diminuídas ao estatuto de galinha, explica o jurista. Esta é uma situação que viola a dignidade humana e o direito à educação, um direito que abre portas para outros, como ao emprego e à formação profissional. Assim, é urgente que o sector da educação priorize o ensino de base nos orçamentos, evitando que este sector seja votado ao esquecimento. Além disso, encorajou os pais e encarregados de educação a reivindicaram os direitos dos filhos, ao mesmo tempo que exortou o Estado a inverter o actual paradigma e a sociedade a ajudar com ideias nesse sentido.

Durante vários dias procuramos contactar o Gabinete Provincial da Educação, mas sem sucesso.

*Jornalista.

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1 Comentário

  1. António Fernandes

    Hoje, em Malanje, Kizanga particularmente, – aliás, é onde moro- a educação infantil ainda constitui um problema social assustador, resultante das más políticas, por parte de quem governa. É constrangedor, em tempo de paz, continuar-se com escolas nas condições aludidas. Caso queiramos dar um outro rumo a este país, uma vida melhor aos angolanos, a mudança do paradigma para a educação infantil deve ser urgente.

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