Manuel dos Santos: “Pensar o passado é acima de tudo pensar o futuro”

Manuel dos Santos: “Pensar o passado é acima de tudo pensar o futuro”

Oiça a entrevista:

      Oiça a entrevista

Como se pode compreender, o papel da consciência histórica no presente, sendo certo que, a consciência histórica é essa interpretação e compreensão que, uma pessoa individualmente ou um povo tem sobre o que sucedeu? E como usar essa consciência, este passado para o presente? Ele tem ou não influência no presente?

(…)

Domingos da Cruz – Falar-se-á hoje sobre consciência histórica, uma questão que à mim parece importantíssima, para qualquer contexto, para qualquer povo e para Angola é urgente e necessário, discutirmos essa categoria, essa problemática. Consciência histórica.

Sobre este assunto gostaria de dialogar hoje com Manuel dos Santos, historiador e sociólogo, gostaria de agradecer pelo facto de se ter disponibilizado para manifestar o seu ponto de vista sobre a questão, e olhar para consciência histórica no contexto de Angola.

Bem-vindo kota Manuel!

Manuel dos Santos – Obrigado (…), eu acho que é uma oportunidade para reflectirmos em conjunto. É claro, eu não tenho chaves mestras para abrir as portas em relação a tudo isso, mas, eu acho que, essas reflexões de facto precisam de ser feitas. E, mais do que dar respostas, o que nós pretendemos aqui é construir um conjunto de interrogações que possam interpelar as pessoas a poder pensar um aspecto tão fundamental, e que provavelmente tem sido um dos nossos deficit em relação ao conjunto de prioridade ao longo de todos esses processos históricos que vão desde o proto nacionalismo ao nacionalismo moderno, e até o Estado independente.

Porque eu acho, tudo isso foi colocado em determinados momentos como um elemento interessante, mas, sem nunca se entrar em aprofundamentos. E eu acho que a consciência histórica determina obviamente, a necessidade de sabermos, quem somos, de onde viemos e onde queremos ir. Eu podia evocar, é interessante uma expressão de doutor Savimbi, que dizia: “Nós somos um povo, temos um destino e queremos um futuro”. Eu acho que sem consciência histórica, dificilmente se pode construir isso. E pensar o passado é acima de tudo pensar o futuro. Porque o passado pode estar presente, naquilo que é o nosso dia-a-dia.

DC– Pois é, mas, de forma sintética e mais simples como é que, se pode compreender o que é isso de consciência histórica?

MS – Eu acho que de forma sintética consciência histórica é aquilo que foi construído de facto num espaço territorial, com um conjunto de movimentos geográficos, movimentos populacionais, sejam exteriores, exógenos e endógenos. É importante perceber que de facto, a questão da consciência histórica está aliada de tudo que existe a volta, e que tem elementos que confluem e são comuns a um conjunto de sujeitos.  Neste caso todos nós.

Pode parecer que a história e as figuras da própria história, se remetem exclusivamente aquelas que são as grandes figuras, mas, eu hoje olho para ideia de consciência histórica como algo que foi construída em comum, independentemente da dimensão e dos papéis de todos os sujeitos envolvidos, na construção da consciência histórica possam ter tido.

DC– Como se pode compreender, o papel da consciência histórica no presente, sendo certo que, a consciência histórica é essa interpretação e compreensão que, uma pessoa individualmente ou um povo tem sobre o que sucedeu? E como usar essa consciência, este passado para o presente? Ele tem ou não influência para o presente?

MS – Obviamente que a consciência histórica, para se tornar de facto um elemento de influência no presente ela tem de ser um elemento de conhecimento. Ou seja, se as pessoas não têm consciência da sua própria história dificilmente podem usá-la, como elemento transformador do presente. E essa construção da consciência histórica, ela, tem também uma dimensão que é a dimensão da desconstrução duma ideia, que nesse caso construída é a ideia colonial, para aquela que é  a ideia desse conjunto de sujeito, sem em momento algum, no meu ponto de vista retirarmos, o elemento de mito que qualquer história e qualquer construção histórica sobre um espaço  territorial, um país ou uma população  um grupo exige.  Todos nós, conhecemos a história dos mitos fundadores, seja em que especto for, seja da nossa família como do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso distrito, da nossa província, do nosso país e até do nosso continente, há de facto elemento [e de] noção de mito fundacional.

E todos esses elementos têm de ser colocados na possibilidade de equilibradamente serem apresentados como elementos importantes, em que essa mesma história tenha factos realidades, e tenha provas matérias da sua existência, mas também esses elementos de mitos que existem para explicar algumas coisas que  não seria possível ser explicada em termos daquilo que é a consciência histórica que se constrói sem os mesmos.

No entanto, para um país como Angola, em concreto e para a realidade dos dias de hoje, nós temos de facto um deficit de consciência histórica porquê a independência como facto, não ajudou a construir uma leitura histórica sobre nós mesmo que não seja fundamentada  regra geral, em ideias construídas no passado, em que os contributos do presente não entram na forma como essa mesma história é apresentada aos angolanos.

Nós temos, o problema de não percebermos que, a diversidade do quadro do país é superior a ideia da construção urbana do próprio país, que é aquela que domina. Eu citaria aqui por exemplo o engenheiro Fernando Pacheco que dizia que “um dos nossos problemas é ser um país urbano com população rural”, em que também não se reconhece a ruralidade desta urbanidade. Ou seja, quando se é urbano, a primeira coisa que se faz para se sê-lo é negar a ruralidade que essa pessoa traz em si. E essas negações, essas desconstruções, que constroem o todo espaços e as pessoas transformam-se realmente num problema para que haja realmente esta consciência histórica. 69453499_404900483716851_8760238437652496384_n

Se eu não tenho noção da importância de ter vindo do Ngulungo Alto, mais propriamente do Kilombe e que foi desse espaço onde eu acabei por nascer (…), dificilmente posso ter uma noção histórica de mim mesmo, para poder pensar todos espaços histórico. Por que a ideia que vai predominar é que eu sou de Luanda e o resto não conta. Ou posso considerar que o facto de não se apresentar a própria história do nacionalismo urbano angolano construído no litoral, sem ter em conta as manifestações desse mesmo nacionalismo que ocorreram no planalto central ou mais para o leste do país, estaria a pensar na ideia histórica do nacionalismo angolano de forma descontextualizada, ou seja há todo um conjunto de dimensões para a construção de uma consciência histórica, que estão em deficit no que nós temos no quadro presente do país. E isso muda naturalmente a percepção em relação a própria consciência histórica, ou seja teremos sempre uma consciência histórica amputada, teremos uma consciência histórica, todos vamos lá dizer restrita e em alguns casos podemos mesmo dizer retrógrada. Avançamos com alguns elementos que invisibilizam outros elementos. Eu, lembro-me enquanto docente, na universidade ter partilhado que eu descobri uma coisa no Palais Wilson das Nações Unidas em Genebra que me surpreendeu: era uma carta assinada por David Manuel Ekundi, um intelectual do planalto central. Escreveu às nações unidas a denunciar o trabalho forçado no planalto central. Naquela época não era sequer nações unidas, era sociedade das nações. Para mim, foi uma surpresa, quando eu descobri isso, porque isso não está em parte nenhuma da história do nacionalismo angolano, é um protesto veemente, feito na década 20, a caminho da década de 30, é extraordinário, e isso não entra no contexto de análise do moderno nacionalismo angolano. São raras as pessoas que tenham ouvido falar disso. E isso ajuda a construir consciência histórica e mostra que a ideia de mudança para um estado independente, para luta contra a injustiça sempre teve presente o espírito angolano independentemente do espaço onde se encontrassem.

Para os governantes nós somos massa de tomate!

DC– Falando desta questão da luta contra injustiça lembra-me de outra dimensão da consciência histórica, que é a consciência histórica como um elemento que influencia no exercício da cidadania. Se um povo tem a percepção traumática e completamente decadente do seu passado, a sua capacidade de resistência no presente é completamente condicionada para bem ou para o mal, mas, nesse caso é sobre tudo para o mal. E a minha questão de hoje é: qual é a linha que estabelece na relação entre o exercício da cidadania, os cidadãos e claro o grupo hegemónico em Angola? Acha que a consciência histórica que os Angolanos tem uma grande influencia na relação que se estabelece entre aqueles que têm cargos de responsabilidade pública e os cidadãos?

MS – Eu acho que sim, Domingos aqui um elemento a ter em conta. Eu sou um dos defensores de que nós vivemos em estados de continuidade colonial, se tivermos em conta, historicamente falando que a nossa independência foi construída com base no edifício colonial, a forma como as instituições voltaram a se estabelecer em espaços coloniais, e vês a arrogância das próprias autoridades na relação com o cidadão. Na altura até nem se falava disso, o povo, como as autoridades se relacionava com povo, marcadamente é uma postura que  o próprio colono já tinha tido na relação com o povo.

Um exercício da autoridade vertical em que uns  existiam para obedecer e outros para mandavam, e é claro, quando as pessoas interiorizam historicamente a ideia de que elas são subalternas e existem para obedecer, no presente é difícil exercer cidadania com uma interiorização a esse nível e quando novamente, os grupos hegemónicos estabelecem a ideia de que quem manda …

DC– Fala em grupos hegemónicos?

MS – Sim, eu falo em grupo hegemónicos, eu posso dar exemplo: um dos debates que se coloca é porque um governador provincial regra geral, vem sempre de Luanda?

A ideia do governador ser nomeado pelo Presidente da República é um indivíduo estranho, em muitos casos já não é um indivíduo estranho, as vezes é um filho da terra, mas, a ideia da nomeação desse indivíduo é determinado …

DC– Desculpa interromper…, mas, a ideia de ter grupos hegemónicos não pressupõe que tenhamos uma sociedade democrática de grupos  ou queria referir-se…Não percebo?

MS – Quando eu falo a ideia de grupos hegemónicos são justamente de grupos que existem e controlam a questão por exemplo do poder político, poder cultural, poder económico. É verdade que estes grupos têm todos eles uma relação inequívoca.

DC– Não é o mesmo grupo que se manifesta de várias formas?

MS – Sim, é o mesmo grupo que se subdivide em diversos grupos, porque ele  nunca aparece com o mesmo rosto em todos os sítios, muitas das figuras desse grupo hegemónico sendo elas de facto quem controlam  determinadas áreas, não são eles que se fazem presentes nos espaços da relação com o cidadão, ou seja, há outras figuras que as representam, que são aquelas figuras com que as pessoas constroem o seu imaginário a volta daquela dimensão sociológica, não é, nesse caso a economia é com eles, a economia com aqueles e o poder político é com aqueles. Ou seja, tudo isso, conforme eu dizia, desde a decisão de que o governador é alguém que parte de Luanda, logo a ideia do civilizado construído pelo próprio colonialismo, é alguém que vem de Luanda, o governador, o administrador, o funcionário público, o delegado provincial

DC – Sim, mas dizer que foi construído pelo colonialismo estaria a desresponsabilizar , o que se passou [o que foi feito pelas autoridades angolanas na era pós-colonia]?

MS – Não, não é. O que quero dizer é que à essas mesmas construções foram apropriadas e continuadas por quem dirige hoje o espaço público.

DC – Neste sentido, a responsabilidade hoje recai em quem dirige…

MS – Não, não há uma desresponsabilização por ser um modelo construído na colonialidade. Os modelos coloniais e objectivo da independência foi justamente   a destruição dos modelos coloniais, para assentar um modelo que fosse representativo e que estabelecesse de facto relações de equidade com os angolanos.  A verdade é que isso não foi construído e o que se construiu foi o alicerçar duma relação cada vez mais hierárquica, numa relação cada vez mais castradora, que destruiu a ideia de construir plenamente a cidadania, (…), porque o modelo é hegemónico. Uma vez que a história que existia é uma história de subordinação e a continuidade do modelo hierárquico e hegemónico, a consciência histórica daquelas pessoas para os dias de hoje continua a ser de que eles são subalternos, e existem para servir. Já não é tanto a cor da pele que conta, mas, também não deixa de contar, mas sim, um poder que emana dum lugar definido, nesse caso, a presidência da república de Luanda para o lugar onde os cidadãos se distribuem, ou então, o centro administrativo da baixa de Luanda para a periferia toda de Luanda e nos casos de hoje, as novas edificações, onde ser redistribuíram também essas mesmas figuras desse poder de controlo.  69389741_364555047786752_4839658617596542976_n

DC – Mas, não é possível identificar uma memória pela positiva?

MS – Eu acho que sim…

DC – Pela consciência histórica no sentido de, vá lá, provavelmente existem seguimentos vocacionais, que preferem inspirar-se em Mandume, Kimpa Vita, Mutu Ya Kevela, em vez de se apropriarem desse aspecto negativo de uma consciência histórica? Que de alguma maneira nos move para baixo, como nação, como país, vá lá… se eu tenho consciência de que o passado foi glorioso, foi de luta, foi de resistência,  e me identificar com essas grandes personalidades que lutaram, eu posso hoje no presente também como ela e fazer algo que vai de acordo com esse passado glorioso, e não mover-se sempre para uma lógica traumática, do complexado nivelado para baixo.

MS – Eu compreendo que sim, sem dúvidas, que nós temos todos exemplos, mas, a questão não é o exemplo, a questão é a prática, a prática daquilo que é o elemento de interiorização da consciência histórica. É a prática, com que os angolanos foram brindados, não foi sobre a gloriosidade da luta de Mandume contra os portugueses, os alemãs e mais tarde os ingleses na zona do Kwanhama, não foi a resistência de Mutu-Ya- Kevela que chegou as portas de Benguela, não foi a resistência de Kimpa Vita, que percebeu que a ideia de cristandade era algo que existia naquilo que eram os valores messiânicos, filosóficos e culturais do próprio reino do Kongo. Não é, não são essas as ideias que dominam a relação da consciência histórica em Angola, ou seja, se tudo isso que é glorioso não foi alavancado, não foi partilhado, não foi interiorizado, não foi estimulado… O que é que foi interiorizado?

O que foi interiorizado naturalmente foi uma atitude de subalternidade, uma atitude de prestar vassalagem. A ideia por exemplo de que o chefe não pode ser questionado, que o chefe ainda que errado é preferível calar, quer dizer, todos esses conceitos foram claramente recrudescendo aos dos longos anos. [Isso] lembra-me no serviço militar ouvir na recruta que a ordem dum chefe é como uma lâmina, quem não obedece é cortado.

DC – Pois, mas, no plano militar isso é perfeitamente compreensível. Não?

MS – O pior de tudo é que essa ordem é militarista e não militar, porque para mim é uma lógica militarista não é militar, [e]foi levada para o âmbito cívico e para o espaço da sociedade. E de facto ainda como se diz, se o chefe tivesse a dizer barbaridade, nós tínhamos é que bater palmas.

Interiorizou-se essa ideia do chefe como uma figura sacralizada, a ideia da salvação messiânica está muito presente naquilo que é a consciência histórica, que haverá um líder que nos vai guiar para a terra da abundância e ai então seremos felizes. Está muito alicerçada a ideia de que haverá alguém que vai corrigir os males todos quando a consciência histórica, que devia permanecer justamente por causa desses movimentos que estiveram aqui presentes só foram possíveis, porque houve diálogo unidade e luta. O Mandume não conduziu uma luta sozinha, com uma espingarda a mão contra os portugueses, contra os alemãs ou ingleses, Kimpa Vita não criou o movimento dos antonianos em que ela era a antoniana, não é, ou seja, a ideia de que há um salvador de facto fez com que também a consciência histórica sobre os nossos próprios colectivos, é claro com figuras a frente deles, não fossem interiorizados como movimentos colectivos, ficaram muito na ideia do salvador messiânico que nos levará a fazer tudo. Mas nós, não precisamos nos preocupar porque já temos alguém que vai fazer isso.

“O nosso sistema de educação perpetua  as desigualdades…”

DC – Deixa-me ver se compreendo, após a independência, Agostinho Neto toma o poder e a seguir José Eduardo, agora João Lourenço e a lógica do salvador continua? Quer dizer, neste sentido há um grande problema de consciência histórica? Ou há uma má interpretação dos factos em relação ao passado? Como é que a população percebe que não é um homem que poderá salvar, sendo certo que houve momentos que depositaram confiança e sucederam fracassos?

MS – Repara, porque ainda não temos essas figuras, esses movimentos devidamente ensinados, comentados, interiorizados, discutidos, debatidos, nem que seja numa perspectiva de olhar criticamente para tudo isso? Porque isso tem de ser feito por alguém não é? Ou seja, as pessoas que receberam mais instrução, [têm] mais informação, com capacidade pedagógica e didáctica para apresentarem tudo isso.

DC – Mas a resistências aconteceu por meio de pessoas que não terão passado na escola como a conhecemos, escolas tipicamente ocidentais. Mandume não passou em escola nenhuma.

MS – Não, quando eu falo de escolas, estou a me referir às escolas onde as pessoas têm de interiorizar esse conhecimento sobre consciência histórica, como um elemento presente nas vidas delas. Não encontraram de facto, um espaço de repercussão desses mesmos acontecimentos.

DC – Podíamos falar da escola informal.

MS- Sim, mas, temos défices muito grandes em relação a tudo isso. Hoje até se discute, e se olha de forma muito negativa quando se faz exaltação desse período ou da história que qualquer povo precisa. E essas pessoas são tratadas como pan-africanistas radicais. Eu próprio já ouvi comentários desses.

DC-Podemos encarar isso como mera divergência de ponto de vista?

MS- Eu acho que mais do que divergência de ponto de vista é a introdução do ruído no diálogo que precisa de ser feito, que o impede de acontecer. Porque a partir do momento em que uma sociedade como a angolana que interiorizou os modelos, como diria Rui Duarte de Carvalho “ocidentais, ocidentalizados e ocidentalizantes”,  a negação de todos outros modelos endógenos, viram uma razão para as construções que começaram desde o século XVII, em que uns conjuntos de angolanos, com cultura ocidental chamam-se a si próprios de filhos do país. E chamou todo resto dos angolanos, que naquela altura não eram angolanos de o gentio, e essa construção, para mim é a construção mais perigosa e mais alimentada ao longo da consciência histórica em Angola. A ideia de um civilizado e a ideia de um gentio.

Para mim de entre todos elementos da nossa consciência histórica, o que foi interiorizado e que destitui de orgulho também, as pessoas em relação as todas outras origens que não sejam origens urbanas ou “ocidentais, ocidentalizadas e ocidentalizantes”.

Qual é o orgulho maior de cada angolano quando fala comparativamente a outros africanos? […] Somos diferentes, somos pessoas habituadas a lidar com pessoas ocidentais de forma diferente, noutros países as pessoas estão agarradas aquelas tradições, coisas que já não interessam … Há sempre esse discurso à volta disso.

Quando é questionado sobre a sua língua, diz que o português funciona como elemento unificador entre todos nós… É claro, é importante, o português é fundamental na nossa relação global, mas depois, temos um outro assunto que é interessante, é que as próprias línguas angolanas continuam a não ser línguas oficiais do estado angolano. Ao contrário de outros estados que já oficializaram as línguas dos próprios países para ter um elemento de orgulho nacional que fosse estimulado pela valência que é dada em termos constitucionais.  69354720_1372244576256190_3939327957893382144_n

DC- Temos os exemplo do Quénia, Tanzânia, África do Sul, Ruanda…

MS- Sim, todos esses países que fizeram isso. Isto não significa, nem nunca significará uma não ligação a modelos ocidentais, em termos de línguas que permitem a comunicação global, ou as relações globais.

DC- Mas, também não vejo nenhum inconveniente em negar…

MS- Não. Eu não vejo inconveniente, o que eu vejo é que, todas essas apropriações são justamente para a consciência histórica, como uma relação de nível de línguas superiores e línguas inferiores, quando as línguas no meu ponto de vista são línguas. Tanto é que há muita gente que gosta do discurso do dialecto, eu costumo dizer não há dialecto, há línguas.

Os povos têm línguas, sejam línguas menos faladas ou mais faladas, mas são línguas e fazem parte daquilo que é chamado a idiossincrasia dos próprios povos, e no seu diálogo com o mundo essas línguas são usadas duma ou doutra forma. Como dizia em tempo o Luís Kadjimbo falando da dimensão cultural do desenvolvimento, se os cidadão não poderem participar nos processo de desenvolvimento do seu país, por via do instrumente com que melhor se podem comunicar que é a língua, estaremos a excluir, milhares ou milhões de pessoas de participarem nesse processo, ou seja, mais uma vez a ideia de consciência histórica, aqui colocada, mostra que há claramente um grupo de pessoas que nunca a interiorizaram porque eles não fazem parte do discurso da construção histórica, ou seja, as suas narrativas, a sua própria história, as suas lendas os seus contos, e tudo isso, não entra, porque aquela língua não é claramente a língua de quem vai fazer o desenho sobre a própria história do país.

DC-Uma vez que fala em processo, eu remeto a proposta que fala da relação entre os cidadãos e o poder. Porque a consciência histórica para além de nos permitir ter uma ideia clara ou não sobre de onde viemos, onde estamos e para onde queremos ir, de facto é uma mola compulsória para o futuro, mas, esse futuro se constrói com base na cooperação, e coopera-se deliberando, comunicando. A língua é essa ponte que nos permite construir projectos individuais, pequenos ou em grandes grupos, o mesmo se aplica para as nações. A minha questão prende-se com o facto de, ao longo de décadas o povo angolano ser permanentemente manipulado, ao nível da imprensa. Permita-me dar um exemplo simples: Quantas vezes as angolanas/os acreditaram que os militantes da UNITA tinham cauda e os da FNLA eram canibais, tudo isso foi construído transmitidos pelo grupo hegemónico, o povo acreditou nessas manipulações e isso condicionou a relação que eles têm com outros angolanos porque tem uma outra opção do ponto de vista ideológico, infelizmente, condiciona as relações até hoje, isso transformou-se num grande trauma, mas, a minha surpresa é que na medida em que o tempo vai passando, esse mesmo povo continua a ser manipulado pela mesma imprensa sob controlo do mesmo grupo. É falta de consciência histórica, esqueceram-se de que foram manipulados ao longo de décadas? Como é que se pode compreender esta repetição de queda permanente na armadilha?

MS- Eu acho que isso tem a ver com questões geracionais, e remetia-me a um aspecto que eu acho interessante. Há um elemento de hiato, na relação geracional sobre o conhecimento dessa manipulação histórica também. Se reparares, as pessoas que viveram de manipulação, que promoveu a independência com o MPLA a assegurar o poder para si, em 75, e que lhes foi contada a ideia de que a UNITA tinha cauda, e outras coisas. Não fizeram uma transição em termos desconstrução de tudo isso que ficou provado que não era verdade.

O grupo dominante reproduziu em Angola o sistema colonial

DC- Como se faz a desconstrução?

MS- Essa desconstrução, começa justamente com aquilo que eu chamo a necessidade do debate e de análise crítica de todos esses aspectos que pareceram uma realidade num determinado momento. Porque é claro, é inequívoco que hoje, as pessoas têm 60,70, e alguns 80, e foram eles que transmitiram para alguns como eu estou a caminho de 50 anos ou as pessoas que estão a caminho de 40, e que claramente nós desmistificamos isso tudo porque ficou provado por testemunhos históricos. Pessoas mortas que apareceram nas casas do povo da FNLA, foram tirados da faculdade de medicina, e as figuras que trataram isso estão bem identificadas, e estão naturalmente do lado do grupo hegemónico, o MPLA. Aqueles que diziam que os guerrilheiros da UNITA tinham cauda ficou provado quando a UNITA chegou junto do povo que não tinham cauda e que não era uma verdade. Parte dessas pessoas já perdeu a causa em relação a essa realidade e a máquina que fabrica estereótipos sobre os outros, e constrói novas ilusões, é uma máquina que se actualiza e busca modernizações dos elementos de manipulação que parecem novos para uma geração diferente, porque as velhas manipulações nunca foram debatidas como forma presente para desconstrução das novas. […] Eu acho que isso acaba por permitir justamente […]que elas se reproduzam até aos dias presentes.

DC- Somente a falta de consciência histórica explica essa maleabilidade, esse espaço fértil para manipular, para o cidadão estar sempre disponível a ser usado como marioneta?

MS- Obviamente que não. Mas, claramente a questão da consciência histórica é fundamental, porque consciência histórica em relação quilo que se pede e o que se tem, permite analisar que tipo de informação é que eu recebo hoje, e que tipo de informação recebi no passado. Se reparar um dos nossos maior deficit como país independente, é que você não consegue chegar numa instituição e reconstruir a memória histórica delas por vias do arquivo. Até os arquivos mais recentes, regra geral acaba em lugares que os relatórios, as directrizes, as ordens viram papéis para limpar vidros, ou para enrolar jinguba, vender mandioca na rua. Porque existe uma cultura de que o arquivo tem que desaparecer, desresponsabilizando todos os autores que esse arquivo construiu em termos de informações e de contribuição. São raras, e eu sobre isso posso desafiar. E outro exemplo se deu agora com o shutdown na Sonangol, permitiu a desconstrução de arquivos informáticos da empresa que não vão ser recuperados. Como é que vais contar a história da Sonangol neste período em que os períodos em que os arquivos desapareceram?

DC – Do ponto de vista de construção da história, não bastam arquivos.

MS – Pois, constrói-se pela narrativa oral, mas o grande drama, conforme eu dizia, essa diferença geracional que as pessoas têm e que não estabeleceram diálogo entre si permite e são raros. Basta a verificar quantas pessoas que não escrevendo livros gravam memorais orais? Quase Ninguém!

DC – Mas está a espera que aqueles que protagonizaram as manipulações escrevam?

MS- Obviamente que não. Eu não estou a me referir àqueles que protagonizaram a manipulação. São até aqueles que combateram a própria manipulação, muitos acabam por morrer e não produzem nem sequer um escrito, nem sequer deixam memórias orais gravadas, sobre todo esse conhecimento que se acumula dentro de um período. E hoje temos de facto meios alternativos, em que se pode pôr a circular todo esse conjunto de informação que é de fácil acesso às gerações mais novas, que como nós sabemos num país como Angola com dificuldade de arquivos, bibliotecas e outros aspectos só uma minoria privilegiada, é que tem acesso. E a força como a máquina manipuladora trabalha ela trabalha sobre as grandes massas, as massas que vão silenciar qualquer tentativa de intervenção deste debate no seu próprio seio. 69384926_704526623395991_8130621288898101248_n

DC – Está a falar mesmo sobre massa de tomate?!

MS- Risos! Quando eu falo da grande massa estou a me referir ao grande grupo, ao grande conjunto de pessoas, e uso aqui massas, no sentido de que o próprio grupo dominante olhou para o povo e continua olhar. Porque para o grande grupo dominante nós ainda não somos cidadãos e não somos povos, nós ainda somos as massas populares que podemos sempre ser trituradas e virar massa de tomate por exemplo. São esses, que depois por evocação de você sabe que é miúdo, quem é você para dizer coisa alguma em que junta-se a questão das relações entre gerações, as relações entre grupo de idade, relações familiares, quer dizer, há todo um conjunto que permite a manutenção desse discurso de manipulação que estão a todos os níveis, onde toda desconstrução devia ser feita. Algumas dessas pessoas até já se sentem órfãos do próprio conhecimento real sobre os acontecimentos, e preferem continuar a alimentar a narrativa [de inverdades] que eles interiorizaram.

DC- Falou aqui da necessidade de haver deliberação crítica sobre o nosso passado. E fez também referência a importância dos arquivos. Isso remete-me a concepção marxista revisionista da escola como aparelho ideológico do Estado. Neste sentido, eu perguntaria, qual é o papel da escola no contexto de angola na construção da ou apagamento da consciência histórica?

MS- É claro que a consciência histórica da escola é única, hegemónica do grupo que domina o próprio poder. Todos nós temos noção. A escola joga claramente um papel de alienação. E até porque o Jean Michel Mabeko Tali neste último livro dizia algo muito interessante: “a questão da construção da consciência histórica e de quem tem papel na história é determinado pelo grupo hegemónico que reproduz claramente em todos os espaços.”

DC- Mas essa ideia não é nova, não é?

MS- Não é nova, mas mostra claramente que a escola não fez uma rotura com essa questão da reprodução que é o nosso maior drama para construir a consciência histórica. Ou seja, a ideia de consciência histórica é a ideia de quem o grupo dominante permite que faça parte dela ou é excluído dela. A própria história do MPLA, e é interessante como o apagamento da consciência histórica do próprio partido dominante do poder em Angola exclui aqueles que possam ser incómodos não é, e como há sempre uma reconstrução histórica para retirar valor e protagonismos de figuras que construíram o próprio ideal do partido MPLA.

DC- Fazem isso por gosto, porque é agradável reescrever a história ou há um objectivo por trás disto?

MS- Há Claramente um objectivo.

DC- Qual é?

MS- O objectivo é ofuscar as figuras que têm, no meu ponto de vista, capital intelectual, capital moral para colocar como figuras principais, aqueles que são os principais e os construtores dessa mesma hegemonia. O fim é a perpetuação de figuras que têm todos elementos para dominar o próprio plano histórico. E a ideia de que o único plano histórico, a única perspectiva histórica é pensar sujeitos como esses, sendo construtores da própria história. Repare o último congresso do MPLA foi bastante esclarecedor. A introdução do Ilídio Machado como primeiro presidente do MPLA, mostra claramente que é uma tentativa de retirar o protagonismo que podia ser colocado às duas figuras que no meu ponto de vista deveriam estar ai, que são Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade. Foram dois indivíduos que tiveram sempre uma postura dentro da história do próprio MPLA. Foi uma postura centrada na ideia de humanismo, a ideia do respeito pelo outro. É claro que com as próprias limitações que esses sujeitos da história tiveram num olhar em relação a imensas coisas, mas, colocar os sujeitos da história que estão ligados as piores hecatombes do nosso país como estado independente. Essas duas figuras são no fundo colocadas como numa terra do nunca, ou terra de ninguém, enquanto depois há claramente aqueles que são os feitores da nossa identidade como país e como estado que são Agostinho Neto, José Eduardo e o próprio João Lourenço.

DC- Mas, há estudiosos que dizem que reconstruir, ou forjar uma consciência histórica por parte dos grupos hegemónicos têm um fim que é manter o poder. Exemplo: a forma como sempre se diabolizou os outros, quando se retrata o período de luta armada, ou apresentam um grupo como sendo protagonista de tudo que é bom para o país e para do povo, quando é total e absolutamente contrário. Ou ainda, como acaba de dizer, estamos diante de um exercício de gestão e manutenção do poder? 69601135_423170325209220_730803391382421504_n

MS- Eu acho que é importante que nós coloquemos aqui um aspecto, a questão da consciência histórica é fundamental para o grupo dominante do poder em Angola que é o MPLA. O MPLA tem plena noção da importância da consciência histórica e tem trabalhado sistematicamente sobre a manutenção duma narrativa para essa consciência histórica que é aquela que garantirá a sua manutenção no poder. Não tenhamos ilusões em relação a isso, e eu costumo a dizer o que conta aqui é o poder. O MPLA é um partido de poder e que tudo fará para manter este poder, inclusive a manutenção dum discurso que constrói consciência histórica que obviamente ele se apresenta como o salvador, ainda que a prática demonstre o contrário. Mas como se costuma dizer, uma mentira de tanto repetir, depois passa como verdade, e os que têm a verdade somos todos nós, e capazes de desconstruir a mentira. Têm também limites com que trabalhar muito apertado, têm também por outro lado, um trabalho de décadas, talvez de séculos, para uma construção mais plena disso com base naquilo que é a realidade e a dimensão de todo espeço dessa mesma história.

Porque se reparar Domingos, uma coisa que foi construída desde o tempo da guerrilha, o centro de estudos angolano, criado em Argel do qual, nós todos conhecemos algumas figuras, algumas delas estão vivas e dizem claramente foi isso, serviu para a própria até, a própria guerra anticolonial como se fosse a génese da luta do próprio MPLA. O MPLA até disso se apropriou e a forma como muitos de nós estudaram a resistência ao colonialismo, era apresentar essa resistência como se fosse génese da luta do próprio MPLA, ou seja, as pessoas foram desde o início estimuladas para a olham desde o início para o presente e não para o passado, ou seja, o passado é uma passagem muito rápido que lhes levou ao presente. E nós perdemos, grande parte de nós perdeu a consciência daquela Angola produzida pelo centro de estudos angolano em Argel naquela altura de luta de libertação foi um instrumento que alicerçou a consciência histórica dos angolanos em relação a aquilo que o MPLA queria como poder de Estado.

…A nossa história foi manipulada para manter o poder…

DC- Com isso gostaria de colocar o papel da consciência histórica na escola, mas concretamente na matriz curricular. Quando olhamos para o sistema de educação que é completamente deficitário nos mais variados campos, mas, no campo da história se repararmos, surpreendo-me por exemplo que os angolanos estejam tão obcecados pela história universal. Olham para o que se passou em Roma antiga, na Mesopotâmia…Mas interessa-nos conhecer Mesopotâmia quando as pessoas não conhecem a história de Malanje, Kwanza-Norte, Huíla, para não falar do seu bairro?

MS- Eu acha que todos esses aspectos são fundamentais, mas, a nossa escola pública de facto, ela é no meu ponto de vista a continuidade das próprias desigualdades sociais que o país tem. Todos esses défices, todas essas alienações visam objectivamente que as pessoas não entrem em contacto com modelos de orgulho nacionais. Quando falo de modelos de orgulho nacionais estou a pensar em Ekuiki, Mandume, Nzinga Mbandi, representam eles de orgulho nacional, todos esses territórios antes independentes eram constituídos antes da colonização por território que hoje se chama Angola e de facto a ausência e o aprofundamento dos mesmos para aquilo que é o papel do ensino mostra-nos claramente quais as verdadeiras prioridades.

O ensino no meu ponto de vista é um elemento de reprodução de desigualdade e a continuidade no fundo do status quo, o que temos na educação, até ao nível universitário tem a ver justamente com isso. Depois tem a ver com a construção de currículos e programas, cuja participação dos quadros angolanos altamente formados e bem dotados para construírem currículos mais adequados dentro desses movimentos são excluídos sempre com a convocação desses estrangeiros contratados pelo Estado angolano para construir os mesmos, para não falarmos do factos de muitas instituições privadas do ensino superior serem espaços que pouco ou quase nada trabalha a nível da investigação histórica que é importante para o próprio país.

DC- Sobre a questão do estrangeiro, podem acusar-te de xenofobia. Estados Unidos e o Canadá fizeram-se na base do multiculturalismo.

MS- As pessoas têm direito a fazer essas colocações. O que eu quero dizer é que perante os quadros da área de metodologia de ensino, pedagogia, em áreas de história, antropologia africana, com historiadores que nós temos internamente trabalham com arquivos e fazem recolhas orais pelo país. Muito estranho parece que essas pessoas não sejam sistematicamente convocadas, para pensar esse quadro positivo da nossa história que tem que ser ensinado. As pessoas precisam perceber, tem de se ensinar uma história que não passe nunca a mensagem de que os portugueses chegaram a Angola e tornaram-se donos do território porque nós estávamos todos quietos e dissemos entrem a vontade e não houve qualquer tipo de resistência. Não!, houve uma sociedade estruturada com um pensamento filosófico, estrutura de produção, com cultura, com arte, com tudo que faz de facto uma sociedade. Nesse sentido esse é o nosso maior deficit, também tem a ver com as próprias políticas de continuidade junto do grupo hegemónico de manter o os angolanos sempre como uma tutela que passa a ideia de incapacidade em primeiro lugar dos próprios angolanos de conduzirem esses processos que são inerentes e importantes para a sua própria auto-afirmação, para o seu orgulho e para o seu próprio destino como nação.

Frame-01811_1_2 (1)
Foto: OI

E constroem numa geração mais nova a ideia de incapacidade de fazer por ela própria sem aconselhamento, sem tutoria, sem assessoria de quem vem de fora porque o conhecimento ocidental, ocidentalizado e ocidentalizante é o que é hierarquicamente superior, ou seja, tudo isso, ajuda que a questão da consciência histórica em si seja de facto uma questão que precisa estar numa ordem de prioridade. Nós precisamos trabalhar profundamente a ideia da construção histórica para puder mudar os elementos que vão construir uma cidadania plena que vão permitir um debate a volta daquilo que são as questões estruturantes.

DC- Numa tentativa de compreensão das opções, das escolhas do grupo hegemónico em relação a condução dos caminhos, pelo que Angola vai passando durante esses 40 e poucos anos de independência Christine Messiant terá dito que as elites angolanas sentem vergonha do legado ancestral ou africano, das nossas culturas, civilizações e tradições, eles têm uma espécie de amor mortal pelo que é ocidental, e acho que essa ideia terá sido reinterpretada pela Lara Powson, no seu livro em nome do povo. Isso é suficiente para justificar as escolhas que eles fizeram?

MS- Eu acho que para além da ideia de vergonha foi a interiorização perversa dessa vergonha, porque a interpretação perversa da vergonha faz com que a necessidade de maltratar, instrumentalizar, ostracizar, tudo que lhes lembra esse passado de si próprio, lhes coloca numa posição e necessidade de negação permanente de todos os sujeitos que lhe lembra a isso. Eu acho que a grande maioria dos cidadãos lembram isso às suas próprias elites, que eles vieram do interior, porque as cidades como nós a conhecemos são uma construção colonial, então eles têm uma necessidade de se negarem a parecer com essas pessoas que lhes lembra esse mesmo passado. E a única forma de relação que lhes sobrou foi uma relação colonial como se fossem as mesmas pessoas, ou seja, eles interiorizaram que são superiores a esse conjunto de indivíduos e só pode fazer parte deste grupo quem se em relação aquilo que são as suas origens o seu passado, o seu histórico e a sua própria consciência sobre esse mesmo passado e essa origem.

DC- Mas eu acho que é necessário compreendê-los porque eles são vítimas, isso não aconteceu por acaso.

MS- Sim, no meu ponto de vista, o erro está no facto de não haver um espaço para encontrar a cura. AS nossas elites só percebem a sua africanidade quando vivem no ocidente, e lhes lembram que são africanos, e alguns deles só se lembram que são africanos pela forma como são tratados com diferenciação nos lugares em que se encontravam com aqueles seus compatriotas que do ponto de vista deles, não faziam parte do espaço de convivência social da elite. Mas, uma vez numa sociedade diferente foram tratados da mesma forma. E eles finalmente perceberam que qualquer ilusão de diferença em relação aqueles outros que eles sentem que não são iguais a ele, depois esbatem-se que não serão aceites independentemente de terem todas as posses do mundo, serem milionários, viverem na melhor zonas daquelas sociedades, eles são sempre vistos como iguais aqueles que eles se negam a ver como semelhantes.

DC- Obrigada pela atenção.

Perfil. Manuel dos Santos é Sociólogo e Historiador.

Bernardo Afonso & Fumaça, Fotografia.

RELACIONADOS:
Cabo Delgado: Desafio à legitimidade do Estado ou novo monopólio da força?

António B. S. Júnior│A legitimidade dos Estados Africanos vem tomando centralidade nos questionamentos dos estudiosos que se interessam pela política africana desde o fim da opressão colonial. A este respeito, Leia mais

Entre os recursos naturais, a guerra e a COVID-19 em Cabo Delgado

António Bai Sitoe Júnior │Depois da descoberta dos recursos naturais na província de Cabo Delgado, vários fenómenos conjugaram para a transformação da paisagem política, social e económica da província, principalmente Leia mais

O Movimento Jovens pelas Autarquias e o novo paradigma de participação (2/2)

João Manuel dos Santos│No entanto, essas novas organizações assumem-se como o continuar de um movimento contestatário que começa a surgir nas ruas de Luanda no verão de 2011. Pois que, Leia mais