Medo e incerteza em Malanje: cidadãos residentes em zonas de risco

Medo e incerteza em Malanje: cidadãos residentes em zonas de risco

António Salatiel* ǁ O direito à habitação é um direito que faz parte dos direitos fundamentais, ou da primeira geração, consagrado tanto na Carta Internacional dos Direitos Humanos, como na Constituição da República de Angola (CRA), cujo art.º 85 descreve que “todo o cidadão tem direito à habitação e à qualidade de vida”. Este é um direito, tal como os outros, que se concretiza com a vontade do Estado, criando instituições competentes, que possam, por meio de políticas favoráveis às populações, oferecer uma Angola digna para os angolanos. O sistema legislativo angolano baseia-se, fundamentalmente, na dignidade da pessoa humana e isso deve implicar a realização, por parte de quem é governo, de acções que visam a criação de condições para uma elevada qualidade de vida aos angolanos. Na verdade, não é o que acontece em Angola e, em Malanje, em particular, existem muitas famílias que residem em zonas de risco, face à ausência de políticas de habitabilidade. É disto exemplo o bairro da Catepa, onde várias famílias se confrontam com a dura realidade de ter as suas residências na iminência de desabar e não dispõem de meios para evitar tal desfecho.

Joana Quilamiquiza, de 27 anos de idade, mãe de 3 filhos e residente da zona há seis anos, conta que as famílias conseguem dormir apenas em época de Cacimbo, porque na época chuvosa instala-se a incerteza, tormento e o medo de ser arrastado pelas enxurradas. Relata que a situação é do domínio das autoridades locais, que inclusive já mandaram equipas técnicas para proceder ao levantamento das famílias com residências na iminência de desabar, a fim de serem realojadas em zonas seguras, mas esta intenção nunca se efectivou, volvidos vários anos. “Apesar dos altos clamores dos moradores, o governo, que tem a obrigação de mudar o quadro, faz ouvidos de mercador, tem o coração endurecido”, lamenta Joana, recordando que as residências estão cercadas por ravinas, pondo em risco a vida das crianças, sendo que muitas já sofreram fracturas depois de caírem nas referidas ravinas, que tendem a progredir, por acção das chuvas. Por conta destes perigos à espreita, a interlocutora diz que não consegue sair de casa em busca de sustento com receio de que o pior aconteça aos seus filhos. 

Para Paula João, outra moradora da Catepa (zona 7), é medonho viver nestas condições, sobretudo quando, volta e meia, se assiste a crianças, na inocência da sua meninice, a desafiarem o perigo. “O coração palpita e o estado de espírito altera-se”, confessa. Diz que os moradores estão exaustos e a administração não dá sinais de vontade para superar esta situação deprimente. Face ao abando e despreocupação absoluta das autoridades governativas, a cidadã diz apenas esperar um milagre de Deus e que seja apoiada a população em caso de sinistro.

Em Malanje, estão catalogadas trinta e duas áreas de risco, segundo o relatório do Comando Provincial de Protecção Civil e Bombeiros, com históricos de desabamentos de residências e inundações frequentes. Dentre as áreas assinaladas como de risco, conta também a Vila Matilde, com particular enfoque para a Zona 6, onde os moradores consideram que o medo de ter as residências desmoronadas durante a noite suplanta a vontade de dormir, pelo que, cada amanhecer é celebrado como uma dádiva. O desespero reina no seio dos populares, que já solicitaram vezes sem conta o apoio da Administração Municipal de Malanje para serem transferidos para áreas seguras, sem nunca terem sido tidos em conta. Não obstante, insistem em respostas urgentes para dar solução ao crescendo de famílias a residir em zonas de risco.

Leonardo André Muhongo, 28 anos de idade, mora na Vila e mostra-se desgastado com a realidade que muitos como ele enfrentam. No seu caso, diz ter a casa numa zona de alto risco e na iminência de desabar, em função das fortes chuvas que caem na região. Considera ser duro viver nas condições em que se encontra, embora já tenham accionado todos os mecanismos para beneficiar de apoios, mas, até ao momento quem devia ajudar fecha-se num silêncio sepulcral. Ainda assim, Leandro não abandona o sonho da casa própria, para que a incerteza de acordar no dia seguinte, dê lugar ao alívio e bem-estar.

Domingos André Quibaba, chefe de departamento para Diminuição de Riscos e Desastres, frisou que os municípios de Malanje, Kiwaba Nzoji e Massango fazem parte das localidades com mais áreas de risco. Referiu que no município sede (Malanje), as famílias que habitam em áreas de risco encontram-se maioritariamente nos bairros Vila Matilde, Quizanga, Canâmbua, Carreira de Tiro, Campo de Aviação e Catepa, onde são registados, com frequência, desabamentos, inundações e descargas eléctricas. Domingos André Quibaba relatou que, no primeiro semestre de 2021, o sector que dirige notificou o desabamento de 736 residências, que resultaram em três mortes e vinte feridos. Explicou que, quando se assinala uma zona de risco, é notificada a administração municipal, para tomar as medidas oportunas, como, por exemplo, apoiar as famílias cadastradas.

Foto/OI/ Outra vista parcial de ravinas na Vila Matilde.

Questionado sobre se tais apoios têm sido prestados, ou não, pelas administrações municipais, a fonte escusou-se a responder, argumentando ser um assunto que ultrapassa as suas competências. Sobre a possibilidade de reassentar as famílias numa área melhor, o responsável disse que essa acção deve ser cautelosa e carece de um estudo antecipado, a fim de evitar o erro de se tirar as pessoas de um risco e pô-las noutro, o que, na prática, representa a continuidade do problema. Entende que para se evitar construções em zonas de risco é necessário que cada órgão afim do governo cumpra cabalmente o seu papel, com destaque para a Acção Social, a Administração, sem descurar o próprio Serviço de Protecção Civil e Bombeiros. 

Por outro lado, Domingos Quibaba aconselha as famílias a evitar as construções nessas zonas sob pena de colocarem as suas vidas em risco, sugerindo, em vez disso, o arrendamento de uma residência em zona habitável. Relativamente à zona 7 da Catepa, onde as ravinas ameaçam destruir as residências, relatou que o seu departamento tem promovido algumas acções de reforço da segurança destas famílias, principalmente na época chuvosa, lembrando que as casas desta zona estão numa linha de passagem de águas pluviais. Segundo disse, um dos aspectos na origem deste problema prende-se com a compra precipitada de terrenos em áreas desconhecidas, razão pela qual aconselhou os cidadãos a adquirirem terrenos em época chuvosa, assim como a consultar a administração ou o Serviço de Protecção Civil e Bombeiros. Por outro lado, salientou a necessidade de se adoptarem medidas profilácticas para se travar mortes por descargas eléctricas, mais frequentes nos municípios de Malanje e Cangandala, como desligar o telemóvel e electrodomésticos sempre que estiver a trovejar, bem como evitar ficar debaixo de árvores, acrescentando que a província dispõe de um número reduzido de para-raios.

O topógrafo explica

O topógrafo Cláudio Chikula define as áreas de risco como parte de um determinado território que, por suas características, esteja propenso a acontecimentos inesperados e que no qual, consequentemente, não são recomendadas construções de casas ou instalações de qualquer outra natureza, pois estão muito propensas a desastres naturais, como desabamentos e inundações. O especialista disse, também, que a concentração populacional no território urbano nem sempre se preocupou com um adequado processo de ordenação do solo e sequer observou os critérios de política habitacional, motivando acontecimentos desastrosos, como défice de moradias e terra urbanizada, de infraestruturas (trânsito, saneamento básico, segurança, saúde, etc.).

Fez saber que a desigualdade social é um catalisador que faz com que as família, na falta de alternativas, construam e vivam em zonas de risco, sem algum acompanhamento de especialistas. Defende, assim, a promoção de planos de desocupação dos locais que representam perigo para a população e de outras acções que permitam recuperar a qualidade de vida das famílias sinistradas, antecedido de uma monitorização das áreas “vermelhas” e o reforço da fiscalização contra ocupação irregular desses lugares.

Sociólogo analisa

O sociólogo Jorge Vaz salienta que as famílias que habitam nessas condições têm as suas vidas ameaçadas, correndo o risco de, a qualquer momento, ver as suas casas desabadas. Lamenta o facto de não existirem alternativas para esta dura realidade, situação que configura uma violação dos direitos constitucionalmente consagrados: o direito à vida e à habitação que, em princípio, o Estado deve preservar. Logo, sustenta o especialista, quando o Estado assiste, impávido e sereno, à construção desordenada em zonas de risco, compactua com estas práticas e adia a criação de condições para que essas pessoas possam viver com maior dignidade.

A CRA consagra, entre outros, o direito à habitação, pois faz parte dos direitos fundamentais, “está lá na constituição, os juristas puseram, mas será que se cumpre?”, questiona. Refere que o Estado é “carente” em termos de projectos de inclusão habitacional, apontando que nos poucos existentes, a distribuição de residências está maculada de vícios de vária ordem, privilegiando sempre as mesmas famílias atreladas à elite governativa, enquanto as famílias de baixa renda são forçadas a viver em bairros desordenados e que nascem do dia para a noite.

Foto/OI/ Vista parcial de ravinas no bairro Catepa.

“O estado é tímido na resolução de problemas, ou seja, faz de conta que essas famílias não existem, além do mais, as casas com um pouco de dignidade nos poucos projectos habitacionais em Angola são feitas, não para as famílias sem potencial financeiro”. Acrescenta que só o valor exigido para adesão às mesmas é, em si, um factor inibidor para as famílias sem grande, ou mesmo nenhuma, posse. Declara que as construções anárquicas que surgem um pouco por toda a cidade e província, resultam do débil acompanhamento do Estado, sendo que, em casos de morte, a responsabilidade deve ser também imputada ao Estado. Sublinha, ainda, a existência de processos de catalogação de famílias em áreas consideradas de risco, mas que nada se fez para ultrapassar a precariedade em que vivem.

“É bom que o Estado ataque as causas e não as consequências, que crie condições para tirar essas pessoas destas zonas, em vez de esperar que aconteça o pior para se solidarizar. As famílias não podem pagar pela incompetência dos gestores de cargos públicos”, finaliza.

O jurista sentencia

Para o jurista Carlos Xavier, esta questão está enquadrada na perspectiva das funções do Estado, sendo que é sobre Ele (o Estado) que recai a responsabilidade de garantir a realização da colectividade social. Para tal, observa, são-lhe postos à disposição recursos técnicos e monetários, com vista a atender o direito à habitação que está consagrado no art.º 85 da Constituição da República de Angola. O também docente universitário sublinha que, a não efectivação deste direito representa uma grave omissão, que pode ser considerada como um ilícito e que pode levar o cidadão a disciplinar ou sancionar o Estado, nas eleições, votando contra quem governa, em função do incumprimento de um direito que radica da própria constituição.

A fonte considera que, em Angola, as pessoas são mais habitantes que cidadãos, entendendo que, cidadão é aquele que participa na coisa pública e conhece os seus direitos, através do contracto que esse celebra com a entidade que dirige e que poderá rescindir nas eleições, responsabilizando o Estado.

Direito à habitação

Foto/OI/ Idem.

O jurista Carlos Xavier observa que há uma clara omissão, uma violação ostensiva deste artigo, o que significa que o que Estado deveria fazer, não faz, deixando assim de executar as suas tarefas fundamentais. O direito à vida, segundo o jurista, faz parte da família dos direitos da primeira geração, consagrada pela Constituição e que deveria ser protegido pelo Estado. Caso alguém venha a perder a vida por conta de o Estado não cumprir o seu papel, a família pode intentar uma acção de responsabilização civil deste órgão, no sentindo de arcar com as consequências decorrentes da violação do direito à vida.

Carlos Xavier sustenta que cabe ao Estado retirar pessoas em lugares de risco e acomodá-las em áreas mais protegidas. Em caso de morte nessas áreas, as famílias lesadas podem recorrer para que o Estado pague pelos danos, porquanto muitas das vítimas são chefes de família, deixando os filhos à sua sorte. Reconhece que a responsabilização do Estado ainda não é comum em Angola, pela fragilidade dos tribunais, subalternizados pelo Poder Executivo. A fragilidade dos tribunais é tanta que estão desprovidos até de funcionários para ajudar na tramitação dos processos, tudo porque quem governa impede muitas vezes processos que os afecta.

A fonte antevê um futuro sombrio para a governação e um incumprimento gritante da legalidade, dada a falta de vontade política, precisando ser difícil augurar algo de bom, ou alguma melhoria da actuação do Estado, que ano após ano, vai-se preocupando mais com a manutenção do poder do que com questões fundamentais para o bem comum. O jurista disse haver ainda, uma fraca cultura jurídica na província, pois a tendência indica para a realização de justiça pelas mãos próprias, o que considerou reprovável. “É bom que as pessoas procurem instituições para a resolução dos problemas jurídicos”, aconselha, desmistificando a ideia de que a contratação de um advogado é apenas para ricos.

No caso em análise, entende ser urgente intimar a Administração Municipal, de modo a encontrar caminhos apropriados para que se essas famílias abandonem o perigo e evitar-se perdas de vidas humanas. No primeiro semestre de 2021, o Serviço de Protecção Civil e Bombeiros de Malanje reportou 736 destruição de residência, em consequência das chuvas que caíram na região, tendo causado três mortes, vinte feridos, deixando outras 3711 ao relento. No país, os debates em torno do direito à habitação condigna têm sido recorrentes, devido à procura por ela, sobretudo por parte dos jovens.

Num país com vários projectos habitacionais desabitados e a degradar-se, roça a comédia que milhares de jovens ainda estejam a lutar para comprar uma casa e abrigar a família. Lutar pela dignidade da pessoa humana, em Angola, é uma acção que não deve parar. Ela vai abrindo caminho para esperança de um país melhor, pressionando os diferentes sectores da sociedade a contribuir para a promoção da justiça social. Ter uma casa é essencial para qualquer ser humano. O que se deseja é que o Estado faça a sua parte para que os angolanos tenham o bem-estar. Presentemente, estima-se que mais da metade da população angolana vive em condições precárias e muitas outras em ruas das cidades, por falta de uma casa para morar.

Até ao fecho deste trabalho, tentámos contactar a administração municipal de Malanje, mas a mesma mostrou-se indisponível.

*Jornalista.

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