A necessidade de um estatuto para a Língua Gestual Angolana

A necessidade de um estatuto para a Língua Gestual Angolana
Lingua 2
[F/rmc]

Por Nuno Dala || Diz o número 2 do artigo 19 da Constituição da República: “O Estado valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas de Angola, bem como das principais línguas de comunicação internacional.”

O português é a língua oficial da República de Angola, tal como se infere no nº1 do artigo acima referido, sendo também a língua de ensino.

Angola é um país possuidor de um vasto e diversificado mosaico linguístico, que inclui línguas como: Ibinda, Kikongo, Kimbundu, Umbundu, Oshikwanyama, Nyaneka-Humbi, Nganguela e Tchokwue. Estas línguas estão inseridas num projecto de estatuto, remetido à Assembleia Nacional de Angola em 2011.

Em diversos artigos fizemos extensas e detalhadas abordagens científicas sobre a identidade linguística dos surdos angolanos, a cultura surda e seus elementos, a surdalidade como identidade, o carácter das línguas gestuais como línguas de facto, e em particular da Língua Gestual Angolana (LGA), etc.

Neste artigo pretendemos demonstrar a necessidade de um estatuto para a LGA, enquanto língua dos surdos angolanos. Adentremo-nos então no conceito de estatuto.

O Dicionário da Língua Portuguesa Online define estatuto como “lei orgânica ou regulamento de um estado, uma associação; texto que regulamenta o funcionamento de uma associação.”

Estatuto, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, significa “decreto, lei, regra ou norma de funcionamento; regulamento; condição ou situação de uma pessoa ou entidade.” Das duas definições acima infere-se que o conceito de estatuto se essencializa no estado jurídico de uma pessoa ou entidade, instituição ou objecto. É efectivamente um instrumento jurídico, de regulação das relações entre pessoasligadas a uma instituição ou objecto.

Alfabeto gestual
Alfabeto da língua de sinais. [F/rmc].
De modo que temos estatutos para grupos como ordens de médicos, de advogados, de psicólogos, etc. Aqui as relações entre os membros da organização e com a própria organização são reguladas (estatuídas) para, entre outros fins, salvaguardar os interesses e objectivos da organização.

O domínio de conceito de estatuto, como vimos, inclui – implica também – o objecto. Um exemplo de objecto é a língua, definida como um objecto abstracto, pois língua a é o “sistema complexo de signos abstractos, regido por gramática, que serve como meio de comunicação entre seres inteligentes, como é o caso dos seres humanos.” (N.A.D. Com/Out. 2014).

Assim, temos a língua como objecto que, enquanto património cultural de um grupo ou sociedade, requer preservação, a qual deve ser juridicamente fundamentada. É daqui que temos o estatuto da língua, um instrumento que regula as relações da língua com os seus usuários correntes (comunidade) e outros e vice-versa.

Em Angola ainda está em andamento o processo de aprovação do projecto jurídico que será oEstatuto das Línguas Nacionais. Um facto notável para nós é a ausência da Língua Gestual Angolana (LGA, designação oficial) no pacote que mencionamos, que acabará aprovado e publicado em Diário da República.

Há uma série de razões subjacentes a esta estranha situação. Dizemos estranha porque, em primeiro lugar as línguas gestuais ou de sinais são efectivamente línguas.

Ora, algumas das principais razões da exclusão da LGA (que tem mais de 2.000.000 de usuários) são: [1] a ausência de engajamento do Instituto de Línguas Nacionais de Angola (ILNA); [2] a ausência no ILNA de especialistas em Linguística de Sinais; [3] dificuldade do ILNA em conceber a LGA como língua por desconhecê-la enquanto objecto científico e cultural; [4] desarticulação entre o ILNA e outros organismos governamentais, tais como o Instituto Nacional para a Educação Especial (INEE) e as associações de surdos e outras (há também usurpação de funções, pois a LGA é objecto da competência do Instituto de Línguas Nacionais de Angola, e não do Instituto Nacional para Educação Especial, que deve ser apenas instituição parceira daquele); [5] ausência de pressão cidadã sobre o governo, no sentido de que este mude sua posição para com a LGA (a Associação Nacional dos Surdos de Angola, ANSA, quase que apenas existe formalmente, nem sequer possui representações provinciais e vive uma penúria total).

A LGA é uma língua viva, que tem mais de 2.000.000 de usuários, sua população surda, sem contar com um crescente número de cidadãos ouvintes que a usa como meio de comunicação. Possui um dicionário, o DLGA (Dicionário da Língua Gestual Angolana), que tem duas versões, em papel e digital (DVD). As imperfeiçoes do mesmo (ao qual fizemos extenso ensaio crítico de 3 partes, publicadas no Semanário Angolenseem 2012) não anulam o mérito de obra importante ao estudo, compreensão e uso da Língua Gestual Angolana. É língua de ensino em algumas (das poucas) instituições de e/ou com educação de surdos.

Lingua gestual
[F/rmc]
Em Angola ainda se verifica um quadro de discriminação, que se encaixa bem na descrição de SÁ (2006:132-133) segundoa qual: “As línguas de sinais têm sido desprestigiadas desde há muito. Geralmente, os círculos antagónicos às línguas de sinais têm [sugerido] que elas surgiram como decorrência paliativa da deficiência, de uma impossibilidade de acesso a algo melhor e até mais humano – a oralidade –, e que o uso de sinais é ‘coisa feia’, ‘coisa de macaco’. Não se enfatiza que os surdos criaram, desenvolveram e transmitiram, de geração em geração, uma língua natural, complexa, abstracta, numa modalidade de recepção e produção diferente da que utilizam os ouvintes, a modalidade viso-gestual. Acreditam alguns que as línguas de sinais foram inventadas por professores de surdos como recurso educacional ou comunicativo, desconhecendo que, pelo contrário, as línguas de sinais são fruto de um processo construído histórica e socialmente pelas comunidades surdas, até mesmo como produto histórico da sua resistência à dominação.”

Entretanto, nos últimos 50 anos, as línguas de sinais foram objecto de inúmeros estudos científicos, que demoliram o denso preconceito de que as mesmas eram alvo. William Stokoe foi o primeiro linguista que estudou e caracterizou cientificamente a estrutura e forma das línguas, tendo por base de estudo a ASL (American Sign Language). Na sua obra Sign Language Structure – An Outline of the Visual Communication System of the American Deaf Studies Linguistics (1960:V8), este estudioso apontou que, ‘assim como pela combinação de um número restrito de sons (fonemas) cria-se um leque vasto de unidades dotadas de significado (palavras), com a combinação de um número restrito de unidades de unidades mínimas na dimensão gestual (queremas), pode-se produzir um grande número de unidades dom significados (sinais).’

Stokoe propôs também que um sinal pode ser decomposto em três parâmetros básicos, que são: [1] o lugar (no espaço onde as mãos se locomovem), [2] a configuração das mãos (ao se realizar o sinal) e [3] o movimento das mãos. Estes são efectivamente os traços distintivos dos sinais.

SKLIAR (1998b:24) considera que “os trabalhos da linguística pós-estruturalista avaliaram o estatuto linguístico das línguas de sinais como línguas naturais e como sistemas a serem diferenciados das línguas das línguas orais: o uso do espaço com valor sintáctico e a simultaneidade de aspectos gramaticais são algumas das restrições levantadas pela modalidade viso-espacial, que determinam a sua diferença estrutural e funcional em relação às línguas auditivo-orais.”

Efectivamente, nas diversas línguas de sinais também se verificam as características clássicas das línguas orais:

Interprete 2
Thamsanqa Jantjie (à esq.), foi o falso intérprete de sinais, do discurso de Obma no funeral de N. Mandela. [F/rmc].
(1)Arbitrariedade: As línguas orais são maioritariamente arbitrárias, não se depreende a palavra simplesmente pelo sua representatividade, mas é necessário conhecer o seu significado. A iconicidade encontra-se presente nas línguas de sinais, mais do que nas orais, mas a sua arbitrariedade continua a ser dominante. Embora, nas línguas de sinais, alguns gestos sejam totalmente icónicos, é impossível, como nas línguas orais, depreender o significado da grande maioria dos sinais, apenas pela sua representação.

(2) Comunidade: As línguas orais têm uma comunidade que as adquirem, como língua materna, cujo desenvolvimento se faz através de uma comunidade de origem, passando pela família, a escola e as associações. Todas as línguas orais têm variações linguísticas. Todas as línguas gestuais possuem estas mesmas características.

(3) Sistema linguístico: As línguas orais são sistemas regidos por regras. O mesmo acontece com as línguas de sinais, conforme referenciado por Stokoe (1960:V8).

(4) Produtividade: As línguas orais possuem a características da produtividade e da recursividade, sendo possível aos seus falantes nativos produzirem e compreenderem um número infinito de enunciados, mesmo que estes nunca tenham sido produzidos antes. Acontece o mesmo com as línguas de sinais, sendo encontradas a criatividade e produtividade nas produções, por exemplo, da LGA (Língua Gestual Angolana), pelos seus gestuantes nativos, isto é, os surdos angolanos, parecendo não haver limite criativo.

DLGA
Capa. [F/ Nuno Dala].
(5) Aspectos contrastivos: As línguas orais possuem aspectos contrastivos, isto é, as unidades fonológicas do sistema de determinada língua estabelecem-se por oposições contrastivas, ou seja, em pares de palavras, em que a substituição de uma unidade fonológica (um fonema) por outra altera o significado da palavra (por exemplo: parra e barra). Acontece o mesmo nas línguas de sinais, sendo que em vez de unidade fonológica, muda um pequeno aspecto do gesto (por exemplo, na LGP [Língua Gestual Portuguesa]: MÉTODO e LIBERDADE).

(6) Evolução e renovação: As línguas orais modificam-se, como no caso das palavras que caem em desuso, outras que são adquiridas, a fim de aumentar o vocabulário e ainda no caso da mudança de significado das palavras. O mesmo acontece nas línguas de sinais, a fim de responder às necessidades que a evolução sociocultural impõe (por exemplo, na LGA, os gestos de PESSOA, ou os gestos de IGREJA).

(7) Aquisição:A aquisição de qualquer língua oral é natural, desde que haja um ambiente propício desde nascença. Na língua gestual acontece de igual forma, não tendo o indivíduo surdo que exercer esforço para aprender uma língua de sinais, ou necessidade de qualquer preparação especial.

(8) Funções da linguagem: As línguas orais podem ser analisadas de acordo com as suas funções. O mesmo acontece com as línguas de sinais. As funções são: a função referencial, a emotiva, a conotativa, a fática, a metalinguística, e a poética.

(9) Processamento: Embora usando diferentes modalidades de produção e percepção, as línguas orais e de sinais são processadas na mesma área cerebral.

sinais novo
[F/rmc].
Kyle e Woll (2000:273) apontam algumas propriedades exclusivas das línguas de sinais, tais como: o uso de gestos simultâneos, o uso do espaço e a organização e ordem que daí resultam. Assim, como já vimos, as línguas de sinais possuem uma modalidade de produção motora (mãos, face e corpo) e uma modalidade de percepção visual.

Embora existam aspectos universais, pelos quais se regem todas as línguas de sinais, a comunicação gestual dos surdos não é universal. As línguas de sinais, assim como as orais, pertencem às comunidades onde são usadas, apresentando diferenças consideráveis entre determinadas línguas.

Portanto, qualquer descriminação sobre a LGA, além de estar há muito demolida pela ciência, viola a própria Constituição da República, artigo 19º, número 2.

Propomos que a LGA seja incluída no projecto de Estatuto das Línguas Nacionais. Caso já não seja possível o processo, propomos que seja criado um Estatuto da Língua Gestual Angolana, o qual deve ter como instituição reitora de criação o Instituto de Línguas Nacionais de Angola, órgão do Ministério da Cultura, e deve contar com a colaboração do Instituto Nacional para a Educação Especial, com a Associação Nacional dos Surdos de Angola (revitalizada) e de demais parceiros.

Há a necessidade imperiosa de o Instituto de Línguas Nacionais de Angola (ILNA) assumir seu papel, pois a Língua Gestual Angolana faz parte do mosaico linguístico angolano – é património de Angola, que deve ter um estatuto!

 

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