O encontro com a Justiça entre caixões e piolhos sob vigia – Do julgamento à execução de Sócrates

O encontro com a Justiça entre caixões e piolhos sob vigia – Do julgamento à execução de Sócrates

Xenia de Carvalho│Cruzei-me com a Justiça na 2ª ou 3ª classe da escola primária, em Lisboa, já depois do PREC (Processo Revolucionário em Curso). Não sei precisar o ano, era miúda e no pátio da escola brincávamos aos mortos, fechando a tampa dos caixões funerários sobre a gargalhada dos colegas de turma.

Sabe-se lá porquê, mas a agência funerária tinha um armazém no recreio da nossa escola, onde depositava os caixões (in)destinados, forrados a veludo arroxeado, com maçanetas douradas e sempre bem polidas.

O brilho e o roxo atraíam-nos na fuga ao sistema judicial implementado na sala de aulas por um professor que, obsessivamente, na posse de uma lupa gigante, fiscalizava duas vezes por mês as cabeças dos alunos em busca de intoleráveis piolhos. A quem fosse detectado o bicharoco já em fase de reprodução maligna, lá eram chamados os pais para que justificassem tal ocorrência. O professor, cognome “Bico de Papagaio”, instituía desde a 1ª classe normas e condutas de Justiça pelas quais nos devíamos reger se quiséssemos singrar na vida.

Foi dessa forma, entre caixões e piolhos sob vigia, que a Justiça se me apresentou certo dia sob a forma de uma régua em madeira e 150 escudos em contas matemáticas. Passo a explicar em letras menores: pede o “Bico de Papagaio” que façamos o somatório de 100 + 50. O entusiasmo da descoberta que 100 + 50 era igual a 150 foi tal que me dirigi com o livro de estudos sociais ou meio social – era algo social com capa esverdeada – à mesa do professor. Em grande euforia, mostro-lhe a conta feita na capa do manual – a caneta azul, note-se. A conta estava certa, mas a forma de lá chegar não estava prevista nas normas de conduta escolares seguidas pelo “Bico”. Resultado: sou sentenciada a 7 reguadas no traseiro, executadas com vigor pelo justiceiro pedagogo, que replicou: “As contas fazem-se no caderno! A justiça é isto!”.

Surgiu-me a dúvida: a Justiça vem em forma de coerção? Não está a Justiça aberta ao diálogo?  Bom… os anos passam, a Justiça incomoda-me, e deparo-me então com um homem que, por dialogar, questionando, se vê condenado pela Justiça. E isso chamou-me a atenção.

O homem que dialogava é levado a tribunal

Sócrates (470-399 a.C.), filósofo da Grécia antiga, nasceu perto de Atenas, filho de um escultor e de uma parteira. Dizem dele que era um homem feio, de nariz achatado, que andava descalço pela cidade, apodado à data como sendo imbecil de nascença e inculto. Em Atenas, esperava-se que a beleza física reflectisse a beleza interior, estando Sócrates irremediavelmente fora das normas estéticas atenienses e, como tal, condenado à imbecilidade. Acresce às características físicas mal-afamadas, a sua permanente insistência em dialogar como método de ensino ou de descoberta (depende do ângulo).

Atenas, ano 399 a.C., primavera: Sócrates, 70 anos de idade, é levado pela primeira vez na sua vida a um tribunal sob a acusação de descrença e corrupção da juventude. É da “Apologia de Sócrates”, vertida em escrita pelo seu discípulo Platão (428 a.C. – 347 a.C.), que vou aqui falar. Da sua defesa. O livro é das Edições 70, com tradução do grego e notas de Manuel de Oliveira Pulquério (1928-2011), Professor em Coimbra. Uma nota importante de Pulquério: à data, os tribunais em Atenas eram palco de ruído e intervenção da assistência, que manifestava “livremente os seus sentimentos e opiniões” em oposição aos tribunais modernos.

Da acusação no tribunal e do esclarecimento das sombras

Sócrates encara o tribunal abrindo a sua defesa clamando: “Não sei, Atenienses, que impressão vos causaram os meus acusadores. Pela minha parte, ao ouvi-los, estive quase a esquecer-me de quem sou, a tal ponto eles foram persuasivos. E, no entanto, se assim me posso exprimir, não disseram uma só palavra verdadeira”. O filósofo revela que irá defender-se com recurso às “mesmas palavras que costumo usar, quer na praça pública, quer noutros lugares”. Não se deixa iludir por uma justiça engalanada por palavras de cosmética elaborada, que mais ocultam do que revelam, optando pela simplicidade das mesmas.

O filósofo começa por enumerar os termos da acusação: “um certo Sócrates, homem sábio, que se ocupava dos fenómenos celestes, investigava o que se passava debaixo da terra e era capaz de fazer prevalecer sobre as boas as causas más”, ensinando aos outros “esta doutrina”. O que equivale a dizer que quem tal investiga não acredita nos deuses. E são muitos, os acusadores, e têm vindo estes a (de)formar os cidadãos da infância à adolescência, sem darem a Sócrates a possibilidade de se defender. Não “é possível conhecer os seus nomes, para os citar”. Dessa forma, Sócrates vê-se forçado a defender-se “lutando por assim dizer contra sombras e discutindo argumentos, sem ter ninguém que me responda”. Mais acrescenta, dizendo que não ensina “a troco de dinheiro”, dizendo que quem cobra para ensinar “sabe persuadir os jovens, que poderiam conviver de graça com qualquer dos seus concidadãos à sua escolha, a abandonar o convívio destes e a procurar o seu, com a obrigação de pagamento e, ainda por cima, de reconhecimento”.

 

A origem da acusação

Certo dia, Querefonte, um dos discípulos do filósofo acusado, consultou o Oráculo de Delfos perguntando se existia alguém mais sábio do que o seu mestre. O oráculo esclarece que “não havia ninguém mais sábio” do que Sócrates. Face a isso, o filósofo feio interroga-se sobre o significado da resposta do deus: “Sei muito bem que não sou sábio, nem muito nem pouco. Que quer ele dizer quando afirma que sou o mais sábio dos homens? Porque, enfim, ele não está a mentir; não lhe é lícito fazê-lo”. Para perceber o sentido do oráculo procurou quem é tido como sábio, isto é, “um dos nossos homens de Estado”. Tal homem era sábio, segundo ele próprio e aos olhos dos outros, mas na realidade não o era. Assim criou o filósofo a primeira inimizade, com base na crença de que “ele julga que sabe alguma coisa, embora não saiba, ao passo que eu nem sei nem julgo saber”, ou seja, “não julgo saber aquilo que ignoro”.

Num efeito dominó, Sócrates continua em busca de esclarecimento e depara-se com muitos sábios inimizados: iniciou com os homens de Estado – i.e. políticos -, passando depois aos poetas e terminando junto dos artífices. Apesar de ir criando inimizades junto dos ditos sábios, o filósofo prosseguiu a fim de entender o sentido do oráculo, concluindo que “aqueles que tinham mais fama pareceram-me quase inteiramente desprovidos dos conhecimentos essenciais quando os examinava à luz do oráculo do deus; outros, considerados menos importantes, estavam, entretanto, muito mais próximos de possuir a sabedoria”.

A investigação feita por Sócrates trouxe-lhe muitas inimizades e passaram a nomeá-lo como sábio: “É que os que assistem a estas discussões pensam sempre que eu sou sábio naquelas matérias em que demonstro a ignorância dos outros”. Essa sabedoria não é mais do que o reconhecimento de que o nosso saber é “inteiramente desprovido de valor”. Esse é o sentido do oráculo, defende. Sócrates revela que continua até ao momento a realizar tais investigações junto de quem lhe parece sábio, demonstrando a sua ignorância, não lhe deixando tempo para se “consagrar de forma útil aos negócios da cidade e aos meus próprios”. Tal escolha resulta na sua forma de vida, de “extrema pobreza”.

O diálogo corrompe a juventude?

O filósofo questiona quem vem ter com ele, como os jovens que “dispõem de mais tempo livre, aqueles que pertencem às famílias mais ricas”. Estes jovens procuram Sócrates por sua livre vontade e replicam o método, incorrendo na fúria da sociedade, que acusa o filósofo de os corromper. Quando lhes perguntam o que o filósofo ensina, os jovens dizem o que não sabem e recorrem, por vergonha, ao que se diz dos que estudam filosofia: “que investigam o que se passa nos ares e debaixo da terra, que não acreditam na existência dos deuses e que fazem prevalecer sobre a melhor a causa pior”. Os jovens “fingem saber, quando na realidade nada sabem”.

As acusações contra o filósofo recaem sobre esta capacidade única de corrupção ou de desvio dos jovens, formalizadas da seguinte forma: “Sócrates é culpado de corromper a juventude e de não crer nos deuses em que crê a cidade, mas em divindades novas”. Entabulando um diálogo com o seu acusador, Meleto, Sócrates conclui que todos os Atenienses “tornam os jovens mais virtuosos”, excepto ele. O filósofo conclui que: “Seria, certamente, uma grande felicidade para os jovens, se houvesse apenas uma pessoa capaz de os corromper, enquanto todos os outros lhes faziam apenas bem”.

Sócrates sublinha que Meleto preferiu arrastá-lo para tribunal, “aonde a lei manda trazer os que precisam de castigo e não os que precisam de esclarecimento”. O filósofo conclui que é acusado por ser “alvo do ódio de muita gente” e que “será isto que causará a minha pena”.

O homem que dialoga acrescenta que não se envergonha de “viver filosofando, examinando-me a mim próprio e aos outros”, mesmo que com isso enfrente uma pena de morte. Sócrates interpela os seus conterrâneos, perguntando-lhes se não se envergonham de só pensarem “em glória e honras, sem a mínima preocupação com que há em ti de racional, com a verdade, e com a maneira de tornar a tua alma o melhor possível?”.

Sócrates é condenado à morte por corrupção quando defende que é da “virtude que provêm as riquezas e todos os outros bens”, rematando: “Se pensais que é a matar as pessoas que impedis que vos censurem por viverdes mal, não estais a raciocinar muito bem”. E aceita a sua morte.

 

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