Ensino das ciências sociais em África

Ensino das ciências sociais em África

 

Domingos da Cruz│Há algumas décadas, alguns intelectuais africanos e africanistas de outros pontos do mundo, terão percebido a necessidade de descolonizarmos o pensamento, o ensino e as metodologias a eles associadas. Isso foi extraordinário. Trouxe grandes benefícios à produção e ensino em África (em múltiplas áreas), tais como a história, a sociologia, teologia e a filosofia.

Do meu ponto de vista, apesar dos benefícios, a descolonização do ensino das ciências sociais em alguns países de África, terá entrado num erro grave. Por um lado, o extremo da rejeição absoluta de saberes e metodologias produzidas noutras geografias do conhecimento, terá levado pelo menos a duas consequências fáceis de perceber:

i) “Guetização” epistemológica. Produção de conhecimentos fechados em si, sem qualquer capacidade para dialogar com outros saberes e outras didácticas e metodologias de pesquisa fora da órbita africana.

ii) Epsitemicídio tardio. Esta morte do conhecimento por rejeição, em nome da descolonização dos saberes, é ao contrário do “epistemicidio primário”, que terá sido causado pela ideologia da supremacia racial branca. Assim como o invasor colonial matou nossos saberes locais, a tese da descolonização extrema do conhecimento, inviabilizou e “matou” saberes importantes para o desenvolvimento de África. Nós podemos descolonizar, mas ao mesmo tempo manter um espaço aberto para dialogar com saberes de outros povos. Aliás, o saber tal como o vemos hoje, é fruto de cruzamento de saberes de várias origens, povos e geografias.

O extremo da rejeição dos saberes de outras origens, desencadeou um movimento reaccionário de reforço da alienação epistemológica de pesquisadores dentro e fora de África. Africanos e não africanos que entendem que a produção do conhecimento, o ensino e suas metodologias passam necessariamente pelos modelos institucionais ocidentais.

Entendo que nem a primeira, nem a segunda, são caminhos razoáveis a seguir para o ensino das ciências sociais em África. Para mim, é necessário a construção da autonomia das nossas instituições, propor modelos, mas mantendo-se ao mesmo tempo abertos para o mundo.

Em muitos países africanos, tal como Angola e Moçambique, as ciências sociais foram usadas e incorporadas dentro de um projecto político e ideológico com propósito de responder aos interesses de quem detém o poder. O ensino foi transformado num instrumento de manipulação e lavagem cerebral.

Diante desta realidade que ainda prevalece em alguns países, parece-me que um dos desafios das ciências sociais é usar este saber como instrumento de transformação dos estudantes e dos pesquisadores para que sejam factores de mudança das nossas sociedades. Não só no sentido de pensar os problemas sociais e propor soluções, mas também, fazer das ciências sociais e correlativas, categorias privilegiadas para pensar o sociológico enquanto saber. O sociológico enquanto teoria que decorre dos factos sociais.

Para isso, as instituições apostadas na formação de líderes como é o caso da ALU (African Leadership University), devem necessariamente disponibilizar fundos de pesquisa para que os problemas aos quais propomos soluções, sejam soluções fundamentadas não só no contexto e na prática, mas também no pensar teórico “intemporal”.

A questão referente a produção do conhecimento num contexto que visa formar líderes é fundamental pelos seguintes questionamentos: todo estudante precisa um exemplo. Para além dos líderes externos que os apresentaremos como modelos a seguir, eles precisam ver nos professores como verdadeiros exemplos de liderança. Não só na forma como estabelecem relações, mas também nos resultados académicos e científicos dos docentes.

Será que um não líder pode formar líderes? Como um professor que não pesquisa, não escreve e não publica pode ser levado a sério numa aula de metodologia de investigação científica ou de escrita criativa?

Para que possamos fazer com que o ensino das ciências sociais sejam espaços de transformação das nossas sociedades, precisamos introduzir esta filosofia nos projectos políticos e filosóficos de educação. Ou seja, antes de construirmos uma universidade, são essenciais as seguintes perguntas: Que tipo de homem se quer formar? A sua formação será baseada em quê valores, metodologias e saberes prévios? Que problemas contextuais esta formação permitirá que este homem, com os valores proposto possa ajudar a ultrapassá-los?

Para além destes aspectos principiológicos, temos outros elementos de natureza prática, tais como:

i) Mudar a arquitectura das nossas universidades. Isto pressupõe a alteração das composições e formas das turmas.

ii) Alteração de currículos. Proponho currículos flexíveis e que possam ser discutidos em conjunto com os estudantes.

iii) Apetrechar as universidades com recursos locais, mas mantendo-se aberto ao bom que é produzido noutras partes do mundo.

Mas mesmo que façamos estas mudanças significativas nas nossas instituições, não me parece que elas possam ter sucesso se não for incorporado dois sentidos essenciais na forma de fazer educação por partes dos agentes das comunidades científicas e educativas:

Colaboração entre os cientistas e pesquisadores africanos. Nos nossos dias, parece haver um amplo consenso de que os povos e nações que falharam, uma das razões está no facto de não ter havido colaboração. De não ter havido troca de experiência e falta de unidade nos propósitos, mesmo que haja desacordo em relação a certos aspectos periféricos. Na minha pouca experiência enquanto professor e pesquisador, noto que os africanos dialogam mais com outros cientistas e pesquisadores fora de África do que dentro de África. Por isso, precisamos olhar a colaboração entre cientistas africanos como prioridade essencial.

Incorporar a missão profética da educação como essencial na forma de ser e de estar dos professores e alunos. Este profetismo não tem um carácter religioso. Basicamente, o profeta é aquele que rejeita as insuficiências da sociedade e propõe novos caminhos, tendo como referência central a dignidade da pessoa humana. Os professores e alunos das nossas instituições, deverão ter consciência de que as universidades não são lugares somente para repetir saberes, mas sim, para saber o que foi criado, rejeitar o que não resolve os nosso problemas e propor novos caminhos, novas metodologias, novos saberes, mas tendo sempre a dignidade da pessoa humana como princípio e fim de todo o nosso trabalho dentro das comunidades educativas.

Sobre liderança

Imensos estudiosos se pronunciaram sobre liderança. Muito do que sabemos funda-se na experiência de grandes líderes de dimensão que parece inquestionável em vários campos – na ciência, na arte, nos negócios, na política.

Proponho que devemos começar a pensar sobre duas dimensões essenciais de um líder – a desobediência e o recolhimento/solidão. Categorias sobre as quais nunca tive acesso a qualquer literatura:

i) A desobediência como virtude do líder. As instâncias de socialização — família, escola, media, igreja e outros grupos — não ensinam as pessoas a desobedecerem. Aliás, a desobediência é repudiada de forma permanente e sistemática. É vista numa lógica negativa. Quanto ao seu oposto, isto sim, é encarada como sinal de progresso moral. Diria que a negação e a leitura negativa da desobediência é um erro secular. Este erro perpassa a educação formal e informal.

Ao longo da história, na ciência, na literatura, nos negócios, no desporto, na arte e na política, aqueles que adoptaram a desobediência, assumiram-se como líderes porque romperam a ordem estabelecida. Este tópico demonstrará dois níveis da dimensão ética da desobediência como sendo essencial a um líder: no primeiro nível está a consciência crítica e no segundo, está a atitude concreta que leva a ruptura e o permite trazer o progresso e influenciar positivamente os que estão à sua volta, a comunidade local, nacional e internacional.

ii) Liderança solitária. Este tópico, parte de um conceito simples de liderança: influenciar os outros para o bem. Uma vez que o conceito e a prática da liderança é frequentemente vinculada à uma segunda categoria, os liderados ou colaboradores, levantamos a seguinte questão: pode uma pessoa que se dedica ao trabalho solitário, sem estarem a sua volta pessoas, ser um líder. O escritor, o pintor e o escultor podem ser líderes? Se podem ser líderes, são líderes solitários?

Mesmo aquelas áreas ─ como é a música, os negócios e a política ─  que levam o líder a estar rodeado de inúmeras pessoas com frequência, também exige da parte do líder o recolhimento, a introspecção.

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