O louco como vítima de Descartes

O louco como vítima de Descartes

arte-louc
[Pt|rmc]
Domingos da Cruz | O presente artigo é consequência de um projecto maior, que tem como título original “O louco como vítima cartesiana e a inflexão do pensamento para o resgate da sua cidadania”.

De acordo com o quadro referencial de racionalidade cartesiana o louco pensa? Se admitir que o louco não pensa conforme o padrão do “cogito ergo sum”, penso, logo existo, então, talvez isto se traduza em consequências no exercício da cidadania do louco. Por exemplo, a sua invisibilidade social e política; a negação do direito ao reconhecimento, em virtude da sobrevalorização da razão por René Descartes.

Este texto confrontará o conceito psiquiátrico e psicoterapêutico de louco e a defesa cartesiana do processo de pensar como condição a priori para a existência. Aqui entende-se a categoria louco como sendo alguém que perde a noção da realidade, como consequência de perturbações mentais decorrentes de factores múltiplos.

A contribuição de Descartes na história do pensamento, propiciou uma mudança paradigmática radical: do medievo para a modernidade. De Deus como ponto de partida e referencial da criatividade para o homem como centro da realidade que se traduziu na filosofia do sujeito. O corolário da filosofia cartesiana não se reduz às categorias anteriores. Influenciou vários pensadores ocidentais.

Estas são as consequências da sobrevalorização da colocação gnoseológica como ponto de partida para a edificação da sua filosofia. Pretende-se identificar e compreender outra consequência: a negação da humanidade do louco, da sua existência e por consequência o exercício da sua cidadania, sobre a qual parece não haver literatura.

A nulidade do louco como pessoa e como entidade política e social pode ser confirmada pelo seguinte raciocínio cartesiano: “[…] se eu tivesse deixado de pensar, ainda que todos os outros objectos que alguma vez tinha imaginado eram na realidade existentes, não teria tido nenhuma razão para acreditar que existo”, ou seja, tudo o que pensa é ou existe. A existência da corporeidade (res extensa) ou do homem todo, pressupõe a res cogitans.

O louco duvida conforme as exigências do pensar cartesiano? O louco tem consciência de si? A única certeza a partir da qual pode-se construir argumentos é o cogito. O louco possui esta certeza? O louco é capaz de impôr regras a si mesmo para a condução correcta da sua actividade pensante? Ou ainda, ele é capaz de submeter-se as quatro regras do método?

Mesmo que haja um arcabouço epistemológico das ciências da mente que tenham demonstrado que apesar do estado de loucura o indivíduo pensa, ou tenha um grau mínimo de racionalidade, ainda assim, parece que esta razoabilidade não responde às exigências da dúvida metódica permanente; das regras do método como expressão correcta de quem conduz com lucidez e mestria a sua faculdade espiritual.

Tendo como pano de fundo a colocação de Descartes, segundo a qual o ser humano é aquele que pensa, sem o pensar o homem não é. Esta colocação levanta os seguintes problemas: o louco duvida conforme as exigências do pensar cartesiano? O louco tem consciência de si? A única certeza a partir da qual pode-se construir argumentos é o cogito. O louco possui esta certeza? O louco é capaz de impôr regras a si mesmo para a condução correcta da sua actividade pensante? Ou ainda, ele é capaz de submeter-se as quatro regras do método? Se as respostas à estas perguntas forem negativas, permitirá compreender porque é que a sociedade trata de maneira negativa ou indiferente o louco. Respostas negativas anulam o louco no quadro de Descartes o que significaria que não pensa, porém, não existe, logo não pode ser sujeito de qualquer acção humana.

O que o presente artigo pretende compreender, e que parece relevante, é a relação entre o louco e a sua cidadania. A cidadania na qual pretende-se integrar o louco é aquela postulada e teorizada pela escola liberal em estreita relação com o jusnaturalismo.

Esta empreitada suspeita que a concepção antropológica e gnoseológica de Descartes levou ao desprezo do corpo e a divinização da razão e como consequência o tratamento indiferente do louco, a negação da sua existência ou ainda o seu exílio social e político. Esta intuição pode sustentar-se nas seguintes proposições enunciadas em ambientes comuns: “se eu penso, não posso estar louco”; “ser louco não é vida”; “prefiro a morte à loucura”; “o louco não vale nada”. Estes juízos expressam a desvalorização do louco, mas também expressam de forma indirecta o elogio da razão. Este ambiente cultural infundido e vivido até nesta época deve ter algum pensador influente e responsável. Supõe-se que seja Descartes, embora talvez ele não tinha previsto esta e outras consequências do seu pensamento.

Russel comenta que a concepção cartesiana do processo de pensar é bastante ampla. Por isso, este projecto supõe que esta estrutura do pensamento não acolhe o louco. Aqui o louco está à margem, não existe, como parece sugerir o próprio Descartes: “Porque é o cogito tão evidente? Conclui que é por ser claro e distinto. […]. É verdadeiro tudo que concebemos muito clara e distintamente”. Será que o louco consegue usar a sua razão neste quadro onde tudo é claro, distinto, passível de ser objecto de dúvida, compreendido, negado, afirmado, concebido, imaginado e sentido?

maxresdefault
[Pt|rmc]
Se houver raciocínios capazes de demonstrar que a razão do louco não encontra acolhimento no esquema cartesiano do processo de pensar, então, talvez esta filosofia do sujeito seja mesmo um factor chave na situação em que a sociedade remete contemporaneamente o louco: na invisibilidade, no isolamento, em definitiva na negação do seu ser.

Diante deste quadro hipotético no qual Descartes, por consequência do seu pensamento remeteu o louco, parece que o princípio jusnaturalista de Kant, segundo o qual, o homem é um fim em si mesmo, independentemente dos acidentes que carrega ao longo da história pessoal, contribui para o resgate da cidadania do louco com todas consequências derivantes desta categoria geral: identidade pessoal, reconhecimento, direito a integração, tratamento humanizado.

Parece que o cartesianismo colocou o louco nesta condição de não ser porque a razão que ela postula é matemática, é pela eficácia e pelo útil. Pelo que as categorias de eficácia e utilidade conforme são concebidas não se podem esperar qualquer contribuição do louco. Mas uma abordagem desde outro enfoque (perspectiva) permite compreender a importância de quem perdeu noção da realidade por perturbação mental. O louco é importante, porque se não, eu não saberia que não sou louco.

RELACIONADOS:
Uma voz feminina na pandemia: “Cidadã de segunda classe”

Xénia de Carvalho │A pandemia me devastou, mas não me quebrou não. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete). "Eight to the bar", há quem lhe chame. Usam-se oito notas. De Leia mais

OS MENDIGOS DE PRAGMATISMO

Joaquim M. A. Manuel*| Até parece antropológico a forma reiterada de como se tem ovacionado uma simples opinião. Isto remoto desde o tempo não tão distante assim, sobretudo, com o Leia mais

Um novo céu e uma nova terra: a necessidade de uma nova ordem em Angola

Fazer melhor as coisas ou corrigir o que está mal, não podem ser manobras de conveniência e de sobrevivência política partidária, mas de uma transformação profunda substantiva e qualitativa das Leia mais