Os gramofones da juventude: Da criminalização do protesto social à “armadilha” da liberdade de expressão

Os gramofones da juventude: Da criminalização do protesto social à “armadilha” da liberdade de expressão

Tirso Sitoe*│[2 Caras]

[…]

Deram liberdade de imprensa ao jornalista

O Carlos teve azar foi o primeiro da lista

Pois é o mano esqueceu-se da lei da floresta meu

Antes que abrisse a boca tiro na testa

Dizem que era boa pessoa mas sabia demais

Resultado, levou uma facada por trás

E o assassino com certeza foi ao enterro

Abraçou a viúva e disse: meu companheiro […] (1).

As experiências das várias lutas de organizações e movimentos sociais em Moçambique têm revelado a relação conflituosa que elas mantêm com as instituições do Estado, seus agentes e representantes no processo de construção de uma cidadania ativa. Essa relação conflituosa, na institucionalização da violência por parte do Estado, perante a exigência de garantia de direitos fundamentais, como por exemplo, a prestação de contas por parte do Estado na gestão da coisa pública, que revela ainda, que permanecem vários obstáculos na comunicação entre os atores de cima e de baixo.

foto/rmc

É dentro desse contexto, que a arte, especificamente a música tem sido vista pela juventude, como um pilar fundamental do protesto social. A arte e o protesto, combinam-se de forma harmónica para abrir um campo á diversidade de projetos utópicos que se desenvolvem em Moçambique atual. Dentro desta diversidade de projetos utópicos, pretendo aqui, lançar um olhar para pensar, qual é o lugar da liberdade de expressão no contexto de Estados militarizados e em seguida, fazer um convite para pensarmos como são negociados os lugares de fala, primeiro. Em segundo sugiro que pensemos como esses lugares de fala, propiciam um silenciamento gradual dos que ousam falar ou agir em público, contra um projeto político que institucionaliza o “medo” e reprime as liberdades de expressão e de pensamento. O meu argumento dentro dessas entrelinhas, procura revelar que o exercício de busca de afirmação da liberdade de expressão e opinião, não passa de um projeto utópico de um Estado e seus cidadãos, que reconhecem que até certa medida, os megafones que são usados para ecoar suas vozes, são em si, uma armadilha, para perpetuar uma violência política e vigiar os “inimigos”, sob a capa de Estados democráticos, que oferecem aos cidadãos a falsa ideia de que tem oportunidade de se expressarem livremente.

Vou aqui buscar, dois exemplos fundamentais para demostrar como funciona este jogo de poder relativamente a criminalização do protesto social e a liberdade de expressão e de opinião. O primeiro é o seguinte: Em 2016, o Movimento de Jovens Feministas (MOVFEMME) e a Marcha Mundial de Mulheres de Moçambique, saíram para as ruas, levando a que uma ativista e feminista de nacionalidade espanhola, Eva Anadón Moreno, fosse presa e expulsa do território moçambicano pelo fato de se ter juntado a esses grupos que mobilizaram estudantes para protestar contra a proibição de minissaias em escolas da rede pública. Esta proibição foi em resposta a uma suposta ideia segundo a qual, o assédio sexual às raparigas por parte dos professores, era motivado pelo uso de minissaias e por isso, estas deveriam passar a vestir uniformes com saias compridas. Logo, supõe-se que só há assédio sexual porque há minissaias e não há assédio sexual, quando as alunas vestem-se de saias compridas.

Estes conflitos geracionais encontram eco, por exemplo, a nível das escolas secundárias, nas formas de vestir das jovens. Recentemente, numa decisão política retrógrada, o Ministério da Educação (MINED) decretou a proibição de minissaias nas escolas públicas. As questões que se levantam são: Quem regula o controlo sobre o corpo das jovens que amanhã serão as cidadãs de Moçambique? Será o assédio sexual, a explicação dada pelas autoridades do MINED, da responsabilidade única das jovens mulheres? A quem cabe a libertação e a afirmação da identidade das jovens moçambicanas? O uso do corpo, das formas de vestir, pentear, dançar, são formas estéticas que, frequentemente são vistas como referências externas ao país. Mas será que as jovens moçambicanas não são parte, com as suas referências culturais, que lhes são transmitidas no país, de um dialogar com a diversidade de opções de referência do mundo? Não podem elas, também, construir uma outra forma de afirmar uma presença cosmopolita, a partir da sua vivência e experiência?

Este exemplo mostra na verdade, como socialmente e em determinados contextos, se tem construído a imagem da mulher a partir de referências ‘tradicionalmente’ controladas pelos mais velhos, normalmente homens. Por outro, as mulheres têm vindo crescentemente a desafiar esta construção social da sua imagem, sobretudo quando sentem que a sua liberdade e a sua forma de ser em sociedade, lhe pode ser limitada.

O segundo exemplo baseado em extratos musicais e de entrevistas a músicos pode ser lido, a partir da música de Azagaia, intitulada “ciclo da censura” onde o mesmo, questiona se em Moçambique existe liberdade de expressão ou não, como atesta o extrato abaixo:

[…]

Quem foi que disse que neste país há liberdade de expressão

Tentei falar mas calaram a voz do meu coração

Ah sim, ah não

Diga, se somos ou não somos seiva desta nação

Quem foi que disse que neste país há liberdade de expressão

Tentei falar mas calaram a voz do meu coração

Ah sim, ah não

Diga, se somos ou não somos seiva desta nação

Quem foi que disse que neste país há liberdade de expressão

Tentei falar mas calaram a voz do meu coração

Ah sim, ah não

Diga, se somos ou não somos seiva desta nação […] (2).

As intervenções cimentadas nesta música podem, ser tomadas como uma forma de auxiliar a desconstrução das relações de poder e tornar “visível” as normas “invisíveis” que estruturam essas relações de poder, dentro de um discurso e contexto autoritário. Ainda sob mesmo prisma, na entrevista realizada em Agosto de 2010 ao músico, como forma de consubstanciar o seu pensamento, referiu:

foto/rmc/ Azagaia é um dos mais importantes artistas de intervenção em e de Moçambique.

[…] A minha música fala de questões sociais e politicas. Como elas se associam. E por causa disso, já tive alguns problemas. Porque nós temos um problema que é a liberdade de expressão. Não é a polícia que vá bater sua porta, porque disseste isto ou aquilo. Mas é essencialmente por causa da segurança económica. A maior parte dos empregos em Moçambique estão ligados ao poder, ao governo. Mesmo os privados. Então, de alguma forma, as pessoas tem medo de dizer àquilo que pensam, porque podem perder a segurança económica que tem. As vezes é pouco. Mas, mais vale pouco do que não ter nada. É Mais ou menos assim como as pessoas pensam […] (3).

Na mesma perspetiva, a música de Azagaia encontra ressonância na de Shackal, intitulada “Pedimos Paz”. Ela descortina as experiências de justiça, as disputas e jogos de poder, face a um Estado que reforça a violência política e censura politicamente institucionalizada contra os que desenvolvem uma retorica em defesa das injustiças sociais na relação entre o Estado e sociedade, como pode ser visto no extrato do refrão abaixo:

[Refrão]

Pedimos paz e segurança nas ruas

Liberdade de expressão e abaixo a censura

Se falar é crime, nós esperamos a matança

Esse é o reflexo de dor de um povo sem esperança [2x] (4).

foto/rmc

Estes dois exemplos, fazem-nos pensar sobre que modelo de revolução se precisa instaurar na luta pela garantia da liberdade de expressão e opinião por um lado, mas por outro, servem de ponto de partida para questionar qual foi o propósito do Estado moçambicano em reconhecer constitucionalmente, no seu artigo 48, o direito de todos cidadãos à liberdade de expressão? Quando não podemos nos manifestar contra o assalto aos cofres do Estado, por parte dos altos dirigentes? Quando não podemos vincar um pensamento alternativo sobre os processos políticos e de governação? Quando os libertadores da pátria chamam aos jovens de “geração da viragem” quando questionam os manifestos políticos dos partidos no poder?  Quando os jovens usam a arte e a música, especialmente para dizer um basta, “pega ladrão, pega!” serem vítimas da centralização económica e desigualdade de oportunidades para o acesso a uma educação condigna, melhores oportunidades de emprego?

Responder este conjunto de questões faz pensar num conflito geracional em que os gramofones da juventude, são constantemente silenciados, algumas vezes, pela desinformação e por outras vezes, por um novo tipo de cidadania sob o auspício de uma “armadilha” que confere à liberdade de expressão e de opinião, um lugar de fala e de atentados aos direitos humanos.

* Antropólogo, Diretor Executivo da Bloco 4 Foundation (pesquisa em ativismo, cidadania e políticas sociais) e diretor associado do Centro de Investigação em Economia e Sociedade do Instituto Superior Monitor. Sua pesquisa se concentra em culturas juvenis, dinâmicas urbanas, música de critica e protesto social em Moçambique pós-colonial, ativismo digitai, processos políticos e de governação. Email: t.sitoe@bloco4foundation.org.

(1) Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9id6SkB_nXI [consultado 12/12/2019].

(2) Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TFagu9YdqOM [Consultado no dia 13/12/2019].

(3) Para mais informações sobre a entrevista concedida por Azagaia no contexto do processo de liberdade de expressão em Moçambique poderá visitar a seguinte pagina:

https://www.youtube.com/watch?v=mVsyhppgtYc [Consultado no dia 13/12/2019].

(4) Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=iQvjFGFYk_U [Consultado no dia 12/12/2019].

 

RELACIONADOS:
Uma voz feminina na pandemia: “Cidadã de segunda classe”

Xénia de Carvalho │A pandemia me devastou, mas não me quebrou não. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete). "Eight to the bar", há quem lhe chame. Usam-se oito notas. De Leia mais

OS MENDIGOS DE PRAGMATISMO

Joaquim M. A. Manuel*| Até parece antropológico a forma reiterada de como se tem ovacionado uma simples opinião. Isto remoto desde o tempo não tão distante assim, sobretudo, com o Leia mais

Um novo céu e uma nova terra: a necessidade de uma nova ordem em Angola

Fazer melhor as coisas ou corrigir o que está mal, não podem ser manobras de conveniência e de sobrevivência política partidária, mas de uma transformação profunda substantiva e qualitativa das Leia mais