Os intelectuais do povo

Os intelectuais do povo

 

Elísio Macamo*│Há ainda os intelectuais do povo. Embora tenham muita afinidade com os intelectuais do óbvio e da verdade, não são a mesma coisa. Os primeiros rejeitam a complexidade do mundo; os segundos reduzem o mundo a uma verdade essencial. Os intelectuais do povo são advogados. Eles falam em nome do povo partindo do princípio de que a verdade e a razão residem no povo. Conhecimento, para estes intelectuais, é o acesso privilegiado que se tem ao que o povo pensa. Esta é uma propriedade reservada, naturalmente, a uns poucos, daí a sua autoridade e a forte convicção com que falam.

Este tipo de intelectual encontra-se muito nas organizações da sociedade civil cuja vocação é a advocacia. Elas existem para falarem em nome do povo. Pelo menos é o que pensam alguns dos seus funcionários. É uma convicção com muita afinidade com o tipo de regime político que dominou a nossa política à altura da independência e que, nos seus traços gerais, não só nunca nos abandonou como também criou um legado muito complicado na adopção dum sistema político plural. Este reparo é importante por duas razões.

A primeira é que a ideia duma razão que reside no povo é necessariamente hostil ao pluralismo. A democracia baseia-se na ideia do pluralismo, isto é na aceitação da legitimidade da diversidade de valores, ou por outra, na aceitação do direito que cada indivíduo ou grupo de indivíduos tem de decidir o que é bom para si próprio. A intelectualidade do povo tem dificuldades com este princípio fundamental da democracia e, por isso, do lado político, insiste sempre na unidade – unidade nacional! – e, do lado da sociedade mais larga, insiste na demonização de toda a manifestação de valores que sejam diferentes da norma que o discurso da indústria do desenvolvimento (o orgânico e o crítico, tudo mesma coisa) impõe.

A segunda razão é que a insistência num único cânone ético produz espaço privilegiado que vai ser ocupado por aqueles que acham que conseguem interpretar melhor a razão popular. Nos tempos da Frelimo gloriosa, a Frelimo ela própria, apoiada no Marxismo-Leninismo, é que sabia melhor do que o povo o que o povo realmente queria. Munida dessa convicção achava-se no direito não só de impôr isso à sociedade como também de declarar “não-moçambicanos” todos aqueles que com ela não alinhassem. Escusado será dizer que muitas vezes isso levou à violação da dignidade humana, algo que, infelizmente, muita gente ainda se recusa a reconhecer, um reconhecimento que daria autoridade moral para condenar muita coisa hoje.

Menos intelectual do que a Frelimo, a Renamo também inflectiu pela mesma via. Enquanto cometia as suas atrocidades durante o martírio a que submeteu o País durante 16 longos anos, não tinha exactamente nenhuma grande justificação para tal. Só após a assinatura dos Acordos de Roma, já munida da justificação messiânica de trazer a democracia ao povo, é que ela, sadicamente, teve um argumento retroactivo para sublimar as atrocidades: o povo ansiava pela democracia e para tal estava preparado a aceitar esse sacrifício. Foi, na verdade, o mesmo argumento que alguns “intelectuais” usaram para justificarem o recurso da Renamo à violência como reacção às irregularidades eleitorais: os fins justificam os meios. Como, num contexto destes, você pode falar seriamente de paz é uma incógnita para mim.

O impacto desta postura na chamada sociedade civil é de colocar as suas acções acima de qualquer julgamento moral, pois o que ela faz, por menos ético que seja, se justifica pelos bons fins que ela persegue. E o “bom” nesses fins não é algo que se recupere a partir das próprias acções. Recupera-se na boa intenção, a qual, por sua vez, encontra justificação no facto de corresponder aos anseios do povo. Um activista pode insultar políticos, mas os políticos não podem insultar activistas; um activista pode violar a dignidade humana do político ou de outra pessoa, mas estes não têm a mesma prerrogativa; um activista pode impedir o “desenvolvimento” do País (opondo-se, por exemplo, ao investimento estrangeiro por razões ecológicas ou políticas), mas um político não pode impedir o “desenvolvimento” rejeitando propostas económicas que ele considere erradas para o País.

Um dos maiores excessos desta postura é a maneira como a preocupação legítima com irregularidades políticas, ambientais, culturais e sociais na concessão de autorizações para exploração de recursos naturais está a levar alguns activistas a colocarem o “povo” contra o “desenvolvimento” só para os activistas manterem as suas organizações em vida. No ano passado, em conversa com pessoas que foram reassentadas em Tete, tive um cheirinho disto quando algumas pessoas falaram destas organizações não tanto como suas porta-vozes, mas sim como pessoas que se aproveitam do seu sofrimento para viverem bem em “Maputo”. Algumas pessoas recusaram-se a ser entrevistadas com o argumento de que sabiam que as organizações recebiam dinheiro para fazer esse trabalho, mas não partilhavam com as populações. Respeitei o seu desejo porque a pesquisa era académica e não tinha dinheiro para pagar aos entrevistados.

O intelectual do povo arroga-se o direito de falar em nome do povo, já disse. O que há de problemático nisso é que o “povo”, na verdade, não existe. O “povo” é uma ficção funcional à reprodução da razão da dita sociedade civil. Não quero generalizar, por isso peço para que leiam isto tendo em mente o lado problemático da sociedade civil, não toda a sociedade civil. Não foi escolhida por ninguém para falar em seu nome, mas arroga-se o direito de ter razão em virtude de falar em nome de alguém. Algumas vezes este direito justifica-se com recurso a alguma teoria (normalmente, neo-marxista) que acha saber melhor o que é do interesse do povo e, por via das boas intenções do intelectual do povo, traduz esse conhecimento em vontade do povo. É isso que confere o ar fanático com o qual alguns destes intelectuais do povo falam dos problemas do País, criticam o que está mal e vilipendiam aqueles que eles julgam serem defensores dos opressores do povo. A autoridade do intelectual do povo não é o método científico. É a prerrogativa de falar em nome do povo.

foto/rmc

O efeito desta intelectualidade do povo na cultura política do País é de criar obstáculos à discussão séria dos problemas. A tendência é sempre de moralizar o debate. Por exemplo, desde ontem que se discute a decisão do governo de introduzir camiões recondicionados como meio de transporte público. É interessante notar que nessa discussão um dos recursos argumentativos privilegiados é o que o povo quer. Uns dizem que o povo não quer ser tratado assim, outros dizem que o povo prefere isso do que nada. Os méritos e deméritos não do veículo, mas do processo de reflexão que levou a essa decisão não fazem grande parte da discussão. Mas o problema intelectual está aí mesmo. É o eterno problema de como os nossos decisores políticos tomam decisões, isto é com base em que tipo de informação. É esse o problema que o intelectual normal aborda. Como se tomam decisões no País? Como se tomou esta decisão? Que pensamento orientou a decisão? Faz sentido?

Mas, lá está, a intelectualidade do povo afecta também o governo e a esfera pública. O comunicado da autoridade municipal que anuncia a decisão faz um recurso à misericórdia (só não erra quem não trabalha) ao invés de expor o pensamento que orientou a decisão para que ele seja discutido. Não o faz porque, no fundo, o governo agiu no “interesse do povo” da mesma maneira que a paz definitiva não pode ser criticamente interpelada porque foi no “interesse do povo”. E, sim, quando um grupo de compatriotas que vivem da caridade externa para falarem em nome dum povo que não os elegeu para nenhum cargo, investe tempo, energia e dinheiro para exigir que um seu compatriota seja extraditado para os EUA fá-lo porque é também no “interesse do povo”. O povo não quer que Chang seja julgado em Moçambique porque o povo não acredita na justiça nacional. O povo está farto dos políticos, sobretudo da Frelimo. É sempre o “povo”, o “nós” majestático do activismo profissional.

O intelectual normal tem muitas reticências em relação a este charlatanismo intelectual. A postura intelectual do intelectual do povo radica numa falácia: o apelo à multidão. Não é o número de pessoas que concordam com alguma coisa que faz com que essa coisa seja certa. É sempre a qualidade do raciocínio por detrás da construção intelectual dessa coisa que conta. Por isso, um intelectual normal raramente faz recurso ao que o povo quer para validar o seu raciocínio. Aliás, o intelectual normal abomina esse recurso. Não fala em nome do povo e quando tem que envolver o povo articula isso com algum princípio. Por exemplo, a paz definitiva não é problemática porque o povo se sente ignorado e marginalizado; é problemática porque não envolveu o povo, o que viola um princípio básico da ordem democrática. Demonstra falta de respeito pelo povo, o que constitui uma violação da dignidade humana, o valor básico de qualquer ordem política civilizada. O que conta não é o que o povo “sente” – que eu não tenho como saber sem ter feito pesquisa – mas sim o princípio da participação política tão essencial à democracia.

A intelectualidade do povo é profundamente hostil à democracia ao mesmo tempo que depende dela para existir. Ela simplesmente inviabiliza o debate político por insistir numa única verdade, a verdade do povo.

*Elísio Macamo. É Professor de estudos africanos na Universidade de Basileia.

 

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