Esta é a problemática que se coloca quando os países ascendem à independência, quando começamos a criar classes negras possidentes, que depois acabam por criar uma situação em que se agudiza ainda mais a situação racial. É esta representação que é assimilada nos cérebros de alguns de nós e que se transfere para a prática do Estado e do ambiente social.
O que poderíamos fazer aqui era uma análise científica, uma reflexão crítica sobre a obra, dentro da perspectiva dos autores, mas o tempo não foi suficiente para sua preparação. Entretanto, vamos introduzir o tema do racismo, porque é disso que se trata. Um dos objectivos desta obra, de acordo com os próprios autores, é criar, é trazer à sociedade esta problemática, discuti-la, porque ainda é um assunto actual, como se diz, exige solução.
Domingos da Cruz, no intróito, fala do racismo como estando relacionado com o poder. Na nossa historiografia, sabemos que os contactos entre nós e os povos colonizadores foi a princípio um contacto de amizade, de relações normais, que ao longo do tempo se foi desenvolvendo por causa dos mecanismos de poder numa lógica racista.
Há outros autores que falam muito da racialização. Alguns tentam distinguir o racismo da racialização e estas questões de poder conduziram à formulação de uma ideologia racista por necessidade de submeter outros povos.
Nós precisamos sempre do poder da mente para realizarmos as coisas. É mais fácil dominar quando o dominado, mentalmente, aceita esta posição, do que passar a vida numa repressão física constante em que ela, sendo física, acaba por criar um maior estigma de revolta. Portanto, toda a dominação tem uma simbologia muito forte e sobretudo, é assente numa ideologia.
Se formos ler os escritos, inclusive religiosos, a inquisição usou de maneira sistemática o racismo. Há um autor angolano, o Adriano Parreira, que tem um livro muito interessante. Ele fez um levantamento sistemático da forma como a raça negra foi tratada pela Inquisição, como criou um monstro ideológico dessa matéria que permitiu dar armas, combustível, para que se sustentassem teorias racistas que levaram à sustentação do próprio colonialismo.
É necessário entender que o confronto de raça existe desde há muito tempo, desde o tempo colonial, porque houve influências atlânticas, índicas, que produziram este tipo de representação, mas há coisas curiosas na história. Um eminente e historiador tunisino, Ibn Kaldoun (sec xiv) que andou por toda a África e chegou até Moscovo nas suas muitas referências, aparentemente contrárias ao habitual, afirma que em certos reinos africanos (Mali) existiram escravos brancos loiros com olhos verdes. Portanto, vimos que esta relação entre povos é bastante antiga, e não é só na zona do Atlântico, é também na zona do Índico.
O que é interessante, é que houve uma construção do negro, por causa do domínio e da necessidade de evangelização, ao longo da história, desde o argumento biológico, do negro como sendo completamente diferente. A teoria vai ao ponto de afastar o negro daquilo que é humano, quando passa para o plano psicológico, e até ao plano espiritual. Há autores que discutem se os negros têm alma, ou se têm uma alma diferente dos brancos. Houve todo um conjunto de tipologias para classificar aquilo que hoje a ciência diz ser só uma raça, a raça humana, mas que os caucasianos, mongóis, os negros seriam diferenciados.
Ainda estamos à espera de conseguir entender como é que a historiografia humana se concretiza no plano terrestre. Do ponto de vista geográfico os actuais continentes, aparentemente estavam reunidos e a partir de certa altura se desagregaram. Também se fala que a África é o berço da humanidade, até que ponto esses primeiros humanos se espalharam pelo resto do mundo e se transfiguram fisicamente face às novas realidades geográficas. Também há uma teoria do racismo que está relacionada com a própria geografia. Segundo ela, os povos nórdicos são mais inteligentes, conforme se vai baixando a geografia, os humanos vão ficando mais escuros, e também com menos inteligência e isso justificaria o domínio. Esta justificação antiga, é uma justificação que acabou por ser introduzida no ADN das espécies e que se repete sob várias formas, tanto é que o livro fala em neorracismo, porque as coisas ficam muitas vezes nas géneses e reproduzem-se, e isto faz com que a luta contra o racismo não seja uma luta fácil; não é só uma luta de diálogo, é uma luta que, sendo sobre poder, envolve a economia, a sociabilidade, tudo são veículos.
Se as coisas não se alterarem nas várias esferas, se a economia não for conduzida de forma a que a questão racial, o fenótipo não seja uma marca, vamos ter dificuldade em combater o racismo. Teremos também dificuldade se a convivência social não for harmoniosa, se não houver sequer a possibilidade de convivência.
Em 1975, aqui em Luanda, tínhamos uma cidade praticamente dominada por brancos, depois tínhamos uma parte dominada por mestiços, a Vila Alice e tínhamos o musseque, onde dominavam os negros. Portanto, vejam como isso não favorecia a convivência e isso também acontecia nas escolas. A juventude era essencial, porque a convivência multirracial em que o entendimento entre “várias raças” era um pouco diferente apesar do estigma e da discriminação racial. O próprio sistema capitalista era um sistema de discriminação racial, em que todos os negros que tivessem capacidade de constituir capital e investir eram de alguma forma obstaculizados.
Se fossemos aos musseques naquela altura, em 1975, dificilmente encontraríamos um comerciante negro. Para um comerciante pequeno ter rendimento, na altura, era necessário trabalhar fora das dezoito horas da tarde (hora oficial de fecho). Os polícias naquela altura facilitavam os de raça branca e dificultavam os de raça negra. Chegamos a 1975 e a existência de um empregado de bar negro era uma coisa rara em Luanda, melhor em Cabinda porque estava influenciada pela independência do Congo.
A problemática do racismo é muito crítica porque a ideologia dominante transfere-se também para os dominados, e estes adquirem essa ideologia. Eles próprios, sobretudo os de raça negra, quando isso se entrelaça com as questões de classe, acabam por assimilar rasgos da ideologia dominante e transferem isso até de forma inconsciente.
Esta é a problemática que se coloca quando os países ascendem à independência, quando começamos a criar classes negras possidentes, que depois acabam por criar uma situação em que se agudiza ainda mais a situação racial. Não estou a dizer no sentido ideológico de que existem raças inferiores, mas antes que a dependência ideológica cria uma situação em que, vejamos, por exemplo, a grande massa negra de Angola a viver nos musseques da forma como vive, no lixo, na pobreza. Isto mostra a ideia de impotência dos próprios negros para conseguirem criar um ambiente decente, acentuando os argumentos do racismo. Muitas vezes vimos como é que os grupos negros dominantes, empregam os trabalhadores brancos portugueses em tarefas caseiras, têm gente de raça branca ou asiática a fazer massagens em festas. Isto são símbolos de quem acabou por assimilar a teoria racista, pois o nosso caso, no contexto colonial, foi claro: alguém chega à humanidade se conseguir atingir os standards, os valores dos brancos.
Não é atingir os standards humanos, mas do homem branco. É esta representação que é assimilada nos cérebros de alguns de nós e que se transfere para a prática do Estado e do ambiente social. Normalmente, quem está em “baixo” quer imitar o que está em “cima”, porque toda a gente tenta sair das situações mais difíceis em que está.
Eu penso que o livro vai abordar essa problemática. Domingos da Cruz é um professor, um pensador, um crítico da realidade, um homem formado. Portanto, domina os conceitos bem desde a teologia à filosofia. Formou-se em direitos humanos, é mestre nesta área. Temos que reconhecer esta capacidade e esta questão do racismo é uma matéria muito especial e muito específica dos direitos humanos.
Domingos, enquanto professor, tentou do ponto de vista pedagógico, introduzir dinâmicas em que as pessoas pudessem ter um pensamento crítico. Isto é um dos problemas que temos em Angola, a razão pela qual não discutimos o racismo, pela qual não o desmitificamos, é porque temos um ensino acrítico, inclusive, nas universidades. Um ensino que ensina a não pensar. Quando aprendemos a pensar, nós somos capazes de desmistificar aquilo que é anticientífico e, por consequência, descobrir caminhos para ultrapassar este tipo de situações.
Portanto, o Domingos da Cruz, que organizou este livro e que é coautor o professor Nelson, tem este perfil. Todos sabem que foi uma das pessoas que introduziu no grupo dos revús a leitura de um livro sobre democracia e acabou preso (o processo 15+duas). Portanto, mais uma vez, para além de outras temáticas que já vem abordando nos campos dos direitos humanos, e outros livros que já escreveu, também nos ajuda a discutir este problema que aparece hoje em Angola, às vezes de uma forma mais aberta e outras vezes de forma mais dissimulada.
Muito obrigado!
Nota: Transcrição integral da apresentação do livro, “Racismo – O machado afiado em Angola”.
Grande reflexão. Temos tratado essa matéria historicamente com indiferença ou silencios. Vamos ao debate sobre o impacto do racismo ..
O racismo em angola é um facto , e devemos ter a coragem de discutirmos o assunto de tu para tu .
Deixem-se de hipocrisia , pq o texto é muito real …
Muito triste artigos como este que fomentam o Racismo em Angola contra pessoas mestiças, 2% da populacao, uma minoria ínfima que voces querem transformar em Elite Opressora , fingindo estarem nos USA ou na Africa do Sul em 1980.
Haja vergonha.
Muito pertinente a temática, nota positiva aos autores pela audácia e perspicácia em enfrentar a máquina opressora para desmistificar o racismo
Se não formos introduzir esse debate agora, estaremos a perpetuar a pobreza e domínio do nosso povo