MALANGE: EXCESSO DE PRISÃO PREVENTIVA

MALANGE: EXCESSO DE PRISÃO PREVENTIVA

“Não consigo perceber, o sistema judicial (…) que, primeiro detém a pessoa e depois investiga. Nos países sérios, primeiro investiga-se o indivíduo, antes da detenção. (…). Mas a polícia em Malanje até detém cidadãos inocentes por estarem simplesmente na rua ou no local onde terá ocorrido o crime” – Padre Dionísio Mukixi.

Agostinho Quimbanda ǀ Concebe-se como Prisão Preventiva a detenção do cidadão em flagrante delito ou acusado com forte suspeita de ter cometido um acto criminoso, esperando, por tempo determinado, pela acusação e de ser julgado por um Tribunal; via de contenção de nova confusão na ordem pública e da fuga do provável actor do crime.

Sobre a integridade do cidadão angolano, reza a Constituição da República, artigo 31º, nºs:

  1. A integridade moral, intelectual e física das pessoas é inviolável.
  2. O Estado respeita e protege a pessoa e a dignidade humana.

E, quanto à garantia dos direitos e liberdades fundamentais, o nº 2 do artigo 56º consagra que: todas as autoridades públicas têm o dever de respeitar e de garantir o livre exercício dos direitos e das liberdades fundamentais e o cumprimento dos deveres constitucionais e legais.

 As autoridades policiais, ao contrário dos atropelos e desrespeito às leis, têm o dever de respeitarem e garantirem ao cidadão o seu cumprimento.

Para esclarecer, vamos conferir os prazos máximos de Prisão Preventiva no teor literal do artigo 283º do Código do Processo Penal Angolano. Sobre Prisão Preventiva, esta lei ordinária estabelece:

A prisão preventiva cessa quando, desde o seu início, decorrerem:

  1. 4 meses sem acusação do arguido;
  2. 6 meses sem o arguido ser pronunciado;
  3. 12 meses, até à condenação em primeira instância;
  4. 18 meses, sem haver condenação com trânsito em julgado.

Os prazos estabelecidos no número anterior, segundo o legislador, são alargados, respectivamente, para 6, 8, 14 e 20 meses, quando se tratar de crime punível com pena de prisão superior, no seu limite máximo, a 5 anos e o processo se revestir de especial complexidade, em função do número de arguidos e ofendidos, do carácter violento ou organizado do crime e do particular circunstancialismo em que foi cometido.

Os prazos de prisão preventiva previstos no nº 1, só podem ser alargados por despacho do Juiz de garantias, a requerimento do Ministério Público, durante a instrução preparatória, ou oficiosamente pelo Juiz da causa nas fases seguintes, devendo tanto o requerimento quanto o despacho do Juiz ser devidamente fundamentado.

Sendo o Processo Penal suspenso para julgamento de questão prejudicial ou havendo recurso para o Tribunal Constitucional, o prazo é acrescido de 4 meses. 

Quanto à aplicabilidade da medida da prisão preventiva, o n⁰ 2 do artigo 279⁰ do mesmo Código do Processo Penal Angolano mostra que, “no despacho em que o magistrado judicial competente impuser a prisão preventiva deve, obrigatoriamente, indicar as razões por que considere inadequadas ou suficientes outras medidas de coação pessoal”. Na sequência, o n⁰ 4 clarifica que é ilegal a prisão preventiva destinada a obter indícios de que o arguido cometeu o crime que lhe é imputado.

Por outro lado, o artigo 280⁰ aponta a inaplicabilidade da medida da Prisão Preventiva, a saber:

  1. A Prisão Preventiva não pode ser imposta:
  2. À pessoa portadora de doença grave e que, declaradamente torne incompatível a privação da sua liberdade;
  3. À mulher grávida com mais de 6 meses de gestação ou até 3 meses depois do parto;
  4. A quem tiver mais de 70 anos de idade, sempre que o seu estado de saúde comprovadamente desaconselhe a privação da liberdade;
  5. À pessoa que estiver a tratar de cônjuge, ascendente, descendente ou afim nos mesmos graus que esteja doente, quando o tratamento prestado comprovadamente se considere indispensável (e a inaplicabilidade cessa com a cura do familiar doente);
  6. No dia em que tenha falecido o cônjuge ou qualquer ascendente, descendente ou colaterais até ao 3⁰ grau e afim nos mesmos graus e nos 3 dias imediatos;

E, o n⁰ 3 deste artigo, ressalva o nº1: o magistrado judicial competente pode, enquanto subsistir a situação de inaplicabilidade, substituir, por despacho fundamentado, a prisão preventiva por prisão preventiva domiciliária e sujeitar cumulativamente o arguido a outras medidas de coação com elas compatíveis.

Entrevistamos o responsável pela Comissão Justiça Paz e Migrações, Padre Dionísio Mukixi, a respeito da situação dos presidiários em Malanje, ficou evidente que as autoridades policiais e os procuradores na província não respeitam as leis. Para agravar, estes terão perdido a sensibilidade para salvaguardarem a dignidade da pessoa humana. Constatou-se que, além dos prazos das prisões preventivas caducados, o sacerdote católico apontava também o excesso de lotação nas unidades penitenciárias. Para agravar a situação, alguns nestas condições são transferidos para a cadeia da Damba, onde o preso perde as esperanças de vida. Esses factos que configuram violação de direitos humanos, continuam a ser registados. Os presos aumentam, as salas dos calabouços da Carreira de Tiro e, sobretudo da Damba são poucas e, morre-se lentamente por falta de higiene, alimentação, traumatizados por tratamentos abusivos. As detenções são arbitrárias, os maus-tratos desumanos continuam e tornam-se similares aos da época da escravidão colonial.

O Sacerdote Wilfred Zimba que regularmente realiza visitas de Pastoral, questionado sobre a caducidade e o excesso de prisão preventiva reportou-nos que: “há cidadãos presos que não devem ser vistos como inocentes, mas encontramos muitos outros em prisão fora dos prazos preventivos, há muitos anos sem julgamento e nunca foram ouvidos na Comarca de Carreira de Tiro. E, mesmo sem provas confirmadas, alguns “apodrecem”, quando são transferidos para a Cadeia da Damba.»

Foto/OI.

Na sequência, o Padre Zimba referiu a falta de espaços formativos em prol da reintegração social, o que se agravou durante a pandemia da COVID-19. Os conteúdos ministrados pelos voluntários da sociedade civil são censurados para que os presos não conheçam os seus direitos, direitos esses que são recorrentemente violados. Os jornalistas da imprensa privada não têm permissão de recolher dados das ocorrências naqueles espaços. Com as revistas prévias aos visitantes, nem sequer é permitida a entrada de uma esferográfica nas cadeias.    

Aos olhos do cidadão comum, a leitura que se faz destas situações e da instituição policial assim como do Ministério Público, a nível nacional, não é credível e até constitui uma ameaça e insegurança social. Esta observação assemelhasse-se a reflexão feita pelo jornalista Reginaldo Silva. Descreve uma imagem negativa, fruto do exercício menos adequado da função policial por parte da instituição e dos seus quadros e agentes. Sem receio, despiu a imagem da polícia caracterizando-a como má e pouco simpática para a maioria dos cidadãos. Neste sentido, ele olha a existência de uma crispação e distanciamento, sobre o relacionamento dos cidadãos com a polícia. Não deixou de reconhecer o papel social desta instituição, na sua originalidade. Sublinhou que em Angola estamos mal com a Polícia que temos. Entende que a actuação desta instituição ainda está muito longe de corresponder integralmente aos desafios de uma função multifacetada, ou seja, no âmbito da regulação, repressão e prevenção, mas também de educação, apoio e protecção das comunidades.

Nesta senda, vamos conferir a visão internacional, no que tange ao papel do Ministério do Interior: «[…] a missão da polícia nas sociedades modernas consiste em proteger os direitos humanos, defender as liberdades fundamentais e manter a ordem pública e o bem-estar geral numa sociedade democrática, através de políticas e práticas que sejam legais, humanas e deontologicamente correctas».

De acordo ao estatuto do Ministério do Interior, a missão da polícia exerce-se nos seguintes domínios:

  1. Manutenção da ordem e tranquilidade públicas;
  2. Protecção de pessoas e bens.

E mais: “compete-lhe o respeito pelo regular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos”

Os artigos 4⁰ e 5⁰ da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos a respeito da vida e dignidade humana são bastante claros:

A pessoa humana é inviolável. Todo o ser humano tem direito ao respeito da sua vida e à integridade física e moral da sua pessoa. Ninguém pode ser arbitrariamente privado deste direito.

Todo o indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou os tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes são interditos.

Paradoxalmente, observa-se que as autoridades policiais da província de Malanje, que deveriam estar ao serviço da manutenção da ordem pública, infelizmente cumprem e defendem os interesses de um grupo partidário. Os comandantes e outros responsáveis das esquadras policiais são escolhidos pelo partido e tornam-se reféns. Os que fazem parte deste aparelho político que destroem o sistema de justiça angolano são impunes. Em conclusão, os verdadeiros criminosos do partido no poder andam a solta.

Fontes

Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos Apud, VENTURA, António (Org.). in Legislação Fundamental de Direitos Humanos e Acção Policial em Angola: Rumo à Nova Ética Policial, Luanda, AJPD, 2008, s.p

Entrevista com o Padre Dionísio Mukixi, aos 13 de Julho 2021 pelo OI-Malanje. Disponível no site: www.observatóriodaimprensa.net

Cf. Carta sobre a Prisão Preventiva e os Direitos dos Arguidos, AJPD, Luanda, 2007, pp.8, 9.

 Cf. Art. 31º, REPÚBLICA DE ANGOLA. Constituição de 2010. Assembleia nacional: Luanda, Imprensa Nacional, 2010, p. 15.

 Cf. Art.56º, nº 2, p.23.

Código do Processo Penal Angolano, Lex Data, 2020, pp.130, 131.

Reitor do Seminário Maior São José – Malanje, comunicação datada de 01 de Novembro de 2022.

SILVA, Reginaldo Telmo Augusto, «Para uma compreensão social do trabalho policial nas comunidades angolanas». In VENTURA, António (Org.). Acção Policial e Direitos Humanos em Angola: Colectânea de Temas de Reflexão, Luanda, AJPD, 2010, pp.73-74.

Art.2º, Estatuto do MININT Apud VENTURA, António (Org.). Legislação Fundamental de Direitos Humanos e Acção Policial em Angola: Rumo à Nova Ética Policial, Luanda, AJPD 2008, pp. 8, 21.

PINTO, João, Justiça Internacional e Direitos Humanos na Constituição angolana de 2010: Coletânea de Convenções Universal e Regional, Luanda, UnIA, 2010, P.396.

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