Quanto pesam as palavras? Da liberdade sonhada à liberdade driblada

Quanto pesam as palavras? Da liberdade sonhada à liberdade driblada

Xénia de Carvalho │”Eu tenho um sonho”, disse Martin Luther King (1929-1968), a 28 de agosto de 1963, nos degraus do Lincoln Memorial, na histórica Marcha de Washington, que reuniu mais de 200 mil pessoas na cidade norte-americana. Foi desta forma que o pastor protestante e ativista político norte-americano exerceu o seu direito à liberdade de expressão, apelando à igualdade entre todos. O seu discurso tornou-se o símbolo do movimento dos direitos civis norte-americanos, estendendo-se a todo o mundo.

O exercício da liberdade de expressão, consagrada mundialmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no seu artigo 19, é um dos pilares dos direitos civis ou liberdade individuais que cada um de nós pode e deve exercer de forma a estabelecer os limites do poder do Estado, entre outras dimensões da vida em sociedade. A liberdade de expressão engloba a liberdade de opinião e a liberdade de informação, sem restrições de fronteira e/ou meios.

Martin Luther King pesou as palavras, deixou um sonho que marcou o rumo do exercício da nossa liberdade individual, enquanto seres humanos que partilham a mesma condição – a humana – e a expressam de forma livre e publicamente. Contudo, o sonho é fintado e posto à prova, no acto de partilhar a informação e/ou as opiniões através do meio que, hoje em dia, assume maior relevo na difusão das nossas palavras – as redes sociais.

Após a revelação de que as redes sociais são alvo de manipulação e instrumento de influência para eleição de políticos como Trump e Bolsonaro, como foi revelado no caso da utilização do Facebook pela empresa britânica Cambridge Analytica em 2016 (veja-se o documentário “Driblando a democracia – Como Trump venceu”, do jornalista francês Thomas Huchon, 2018, acessível em https://vimeo.com/295576715), surge o debate sobre o que pode e não pode ser partilhado, quais os limites dessa partilha e qual a legislação necessária para a protecção da privacidade dos dados dos cidadãos. Hoje, o sonho de King não teria passado para a multidão.

Face à invasão do espaço público, um espaço que vai deixando de ser nosso para passar a ser propriedade de quem o compra, a construção da PALAVRA ÚNICA, que em si não contém mais do que propaganda de quem controla os meios de comunicação e a produção de opiniões, relembro aqui a batalha de Winston Smith que, após 40 anos de luta, e contrariamente a Martin Luther King, aceitou a liberdade driblada em prol da liberdade sonhada. Relembro, para que não haja equívocos e não sejamos reduzidos à expressão vazia de um simples “like”.

foto/ El Pais.

George Orwell (1903 – 1950), escritor e jornalista britânico, escreveu o livro “1984”, onde fala do regime do Grande Irmão e a criação da Novilíngua pelo Ministério da Verdade. Syme, especialista no Departamento de Pesquisa do Ministério da Verdade, explica a Winston Smith, personagem central do livro de Orwell e também trabalhador no Ministério da Verdade, como serão as palavras no futuro: “Sabes que a Novilíngua é o único idioma do mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano?”, tendo por objectivo “estreitar a gama do pensamento”, tornado o crime de ter ideias ou a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido (…)”.

Com a redução prevista das palavras, ninguém saberá o que é a liberdade ou a escravidão, apenas restará uma única palavra, pois “que justificação existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra?”. Tudo isto é obra do Grande Irmão. “Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer ‘liberdade é escravidão’ se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar… não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência”.

A batalha de Winston Smith anuncia-se logo na abertura do livro, quando este se senta afastado da “Teletela” o monitor que permite ao cidadão ver os programas definidos pelo regime e ser controlado na pausa entre programas ─, e começa a escrever um diário. Curiosamente, é na sua sala de estar que o faz, ao abrigo de um acaso – a teletela não fora colocada onde era suposto estar, permitindo-lhe o exercício proibido de escrever os seus pensamentos.

Smith luta com as palavras, e ao relembrar a explicação de Syme sobre a criação da Novilíngua, entre outros eventos, apercebe-se que escreveu sem dar conta e em letras gigantes a mesma frase vezes sem conta: “ABAIXO o GRANDE IRMÃO”. Smith cometeu a “crimidéia”. É preso, claro, a Polícia do Pensamento tudo controla. E tudo extermina.

A história termina com Smith a olhar para o “rosto enorme” do Grande Irmão: “Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro [do Grande Irmão]. Oh mal-entendido cruel e desnecessário! (…) agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograda a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão”.

Eu não amo o Grande Irmão, “Eu [também] tenho um sonho”, como Martin Luther King, em que exercito a minha liberdade de expressão através de palavras que se opõem, através de imagens que não se reduzem à sua expressão mais simples ─ um “like” ─, recusando uma aparente liberdade. Desta forma, eu não sou Smith, sou King.

8 de dezembro.

O autor do retrato de M. Luther King é Nora Gad.

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