Yonara Tchissola: “Há mulheres que podem revolucionar as ciências em Angola”

Yonara Tchissola: “Há mulheres que podem revolucionar as ciências em Angola”

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      Yonara Tchissola: “Há mulheres que podem revolucionar as ciências em Angola”

Duas pesquisadoras angolanas, Manuela Miguel e Yonara Tchissola desempenharam um papel chave na concepção, construção e funcionamento de um biofiltro inovador, e adequado ao contexto angolano. Tudo foi feito no laboratório/centro de pesquisa “Química Verde Lab”.

Deonilde da Graça ─ O que significa para vocês fazer parte da equipa de criação do projecto Biofiltro ─ Minha Água, Minha Vida?

Manuela Miguel ─ Sinto-me lisonjeada, porque nós fizemos a diferença na vida das pessoas. Numa primeira fase não tínhamos noção do que estaríamos a enfrentar quando fomos verificar as condições em que as pessoas se encontravam, nos apercebemos que eram condições difíceis.

Yonara Miguel ─ Muitas vezes nós olhamos para o que temos em casa e não temos noção do que as outras pessoas passam para poder adquirir água. Estando lá, visitando aquela realidade, tendo noção do quão difícil é para algumas pessoas ter condições, bens básicos… Então é uma sensação de que fizemos a nossa parte. É muito bom!

Deonilde da Graça ─ O que as motivou para trabalharem neste projecto?

Yonara Miguel ─ O primeiro passo foi investigar, saber o mudus vivendi [do pessoal] da localidade que nós queríamos ajudar e depois pensar no filtro. O principal motivo foi facilitar o acesso a água potável às pessoas. Sei que elas não podem conseguir por si só. O nosso objectivo é ajudar.

Deonilde da Graça ─ Quando e quem concebeu este projecto de investigação?

Manuela Miguel ─ O projecto foi criada por nós “Química Verde Lab”. Foi criado no âmbito da nossa responsabilidade social, pensamos no que podíamos fazer como empresa para melhorar a sociedade e em função das pesquisas, notamos que podíamos alargar o âmbito de actuação.

Yonara Tchissola ─ Nós começamos projecto em 2017. Concepção da pesquisa. [Sendo que] nós somos um centro de investigação e pesquisa, nós começamos por desafiar os nossos formandos, incutimos na mentalidade dos estudantes que não podem só estudar para passar de classe, devem sempre procurar resolver os problemas sociais com aquilo que foi aprendido. Desafiamos os estudantes para que fizessem um filtro que servisse para ajudar as comunidades rurais, mas, a maior parte destes filtros necessitavam de energia eléctrica, produtos químicos e bombas de sucção. Então, sentimos que havia mais desvantagem para ajudar. Daí, nós “Química Verde Lab” decidimos conceber mesmo um projecto.

“Nós temos vários protótipos do biofiltro e começamos por distribuir esse primeiro por ser feito com materiais locais. Não precisa de importações de algum tipo de material e porque nós achamos que este é o mais adequado às zonas rurais.”

Deonilde da Graça ─ O projecto foi concebido e conduzido numa universidade, num centro de pesquisas ligado à uma universidade ou num centro de pesquisa independente de qualquer universidade?

Manuela Miguel ─ O projecto foi criado aqui mesmo pelo nosso grupo de pesquisadores. Pela nossa equipe. Não tivemos apoio de nenhuma outra instituição.

Foto/OI// Manuela Miguel

DG ─ Qual é o orçamento operacional do projecto desde a concepção até ao estágio actual?

 YT ─ Desde a fase de pesquisa até a primeira entrega que fizemos à primeira comunidade, foi de nove milhões de Kwanzas.

DG ─ Qual foi a entidade financiadora da pesquisa?

YT ─ Não tivemos nenhuma entidade a financiar. Tudo foi por custos próprios. Nós somos uma empresa, então tudo aquilo que foi arrecadado ao longo das formações e de todos os serviços que nós fomos prestando utilizamos para conceber o projecto.

DG ─ O estágio em que o protótipo do biofiltro se encontra já é o final?

YT- Não. Nós temos vários protótipos do biofiltro e começamos por distribuir esse primeiro por ser feito com materiais locais. Não precisa de importações de algum tipo de material e porque nós achamos que este é o mais adequado às zonas rurais. Entretanto, temos outros protótipos, mas, para podermos implementar precisamos de financiamento, do apoio de outras entidades públicas e privadas. E temos corrido atrás para conseguimos apoio e materializar estes projectos.

DG ─ Há inúmeras variedades de filtros para purificarem a água. Onde reside a diferença entre a vossa invenção e os que já existem? De outro modo, gostaríamos de saber onde está a originalidade deste biofiltro?

MF ─ A diferença é que o nosso biofiltro é feito de matérias locais. Não precisamos importar nada, se formos ao mercado encontraremos todo material de construção, até os intervenientes de filtração são feitos de material local.

DG ─ Sendo certo que já existiam filtros com o mesmo fim, o vosso biofiltro é uma invenção, no sentido de criar algo novo ou é uma inovação, se entendermos esta categoria como sendo ressignificação, melhoria ou dar outras valências a um produto ou tecnologia pré-existente?

YTNão é completamente uma invenção ou algo do género, porque a tecnologia que nós usamos é uma tecnologia usada nas estações de tratamento de água. O que nós fizemos é produzir numa escala menor e sem precisar outros intervenientes, como a minha colega já disse: bomba de sucção, electricidade, produtos químicos conforme os outros modelos de purificadores existentes. Nós fizemos numa escala menor e também na vertente que o próprio usuário consegue fazer a manutenção e ter maior controlo do filtro.

Foto/OI// Yonara Tchissola

Os outros modelos têm um tempo de validade e faz com que o usuário continue comprar, é uma forma que as empresas usam para continuarem a crescer financeiramente, o nosso foi feito no intuito de tornar os usuários independentes. Eles adquirem o filtro, fazem manutenção, ficam controladores do filtro. Então, não considero uma invenção porque é uma tecnologia já usada, mas, considero que é uma valência que vai melhorar a vida das pessoas.

DG ─ Como se chamam as diferentes peças que compõem o biofiltro e qual é a função de cada uma?

YT ─ Primeiro o nosso filtro tem 97 centímetros de altura, 30cm de largura e o recipiente é feito de betão. Para fazer o betão, nós precisamos de cimento, areia, brita por ai fora. A camada de filtração é composta por célica: um tipo de areia pré-seleccionado por nós e damos um tratamento, porque ela precisa atender a especificações. Não é qualquer pessoa que consegue fazer a camada de filtração. Está é a composição.

DG ─ Como é que o usuário faz a manutenção?

YT ─ A manutenção é muito fácil. A pessoa simplesmente vai agitar a camada de filtração, e retirar um pouquinho desta camada que fica por cima. Depois disso, a pessoa pode voltar a utilizar.

DG ─ Esta manutenção deve ser feita depois de quanto tempo?

YT ─ Dependendo da forma como o usuário vai utilizar, pode ser feita de três em três meses, ou de seis em seis meses e mais. Nós fizemos um filtro totalmente comunicativo com o usuário. A medida que o fluxo de água vai diminuindo, ele já está a informar ao usuário que precisa de uma manutenção, então, ai o usuário já consegue intervir. É um filtro simplificado e fácil de ser manuseado.

DG ─ Já fizeram contactos com as indústrias cá ou no exterior de Angola para a reprodução em massa do biofiltro?

MF ─ Sim. Já enviamos cartas às empresas. Até ao momento não temos resposta.

“Nós fizemos um filtro totalmente comunicativo com o usuário.”

DG ─ Como tem sido a vossa relação com o coordenador do projecto, António Adelino Quilala e outros membros da equipa?

MF ─ Risos. Temos uma relação pacífica. Não tem tarefas que são exclusivas para homens e/ou para as mulheres. Todos colocamos a mão na massa. É pacífica Yonara?!

Foto/OI// Estudantes e assistentes de pesquisa.

YT ─ Risos! É como qualquer tipo de relação. Não existe aquela coisa de que vocês são mulheres e por isso não podem fazer. Nós aqui atendemos pela igualdade de género. A relação é pacífica porque todos tratamo-nos da mesma forma. Igualdade…

Uso prático do biofiltro

DG ─ Algumas reportagens já divulgaram o projecto. Quantas famílias até ao momento foram beneficiadas?

YT ─ Mais de 100 famílias de duas comunidades do Bengo, e aqui em Luanda tem algumas pessoas também que já fazem uso do biofiltro.

DG ─ Qual é a vossa meta de cobertura? Quantas famílias poderão ter um destes filtros?

MF ─ O projecto foi concebido para resolver o problema de água potável nas comunidades rurais. A nossa meta é chegar a todas pessoas que passam por este problema de falta de água potável e melhorar as condições de saúde das mesmas.

YT ─ Nós já temos incluído as pessoas das comunidades urbanas: muitas pessoas das Centralidades, da Mutamba, Projecto Nova Vida, já fazem o uso do biofiltro. Estamos abertos para pessoas individuais, organizações da sociedade civil, instituições do Estado, estamos abertos para qualquer pessoa que queira usar o nosso biofiltro.

DG ─Têm alguma ideia criativa para solucionar a seca no Sul de Angola? Ou o mundo já tem tecnologias para combater esse tipo de problema e falta somente políticas públicas para as implementar em Angola?

Foto/OI

YTSim, nós já fizemos alguma pesquisa referente a esta situação da seca a Sul de Angola, mas, por falta de logística, [falta de] apoio, nós não conseguimos avançar. Temos projectos relacionados que visam solucionar esta questão devido aos gastos que nós já fizemos com o projecto Minha Água, Minha Vida. Agora não temos condições para poder ajudar na questão da seca no sul do país, mas estamos abertos para qualquer entidade que queira criar uma parceria connosco e levar solução para o sul.

DG ─ Segundo António Quilala, em uma entrevista dada à RFI enquanto coordenador do projecto, “o biofiltro já é usado por algumas famílias na província do Bengo”. Quando é que as outras províncias do país poderão ter acesso ao uso do biofiltro?

MF ─ Sim, nós pensamos alargar o âmbito de actuação do projecto, mas, como disse a minha colega Yonara, nós tivemos muitos gastos na primeira fase do projecto. Agora, estamos a procura de parceiros que queiram ajudar a desenvolver o projecto.

Mulheres na Ciência e Tecnologia

DG ─ Como é que vocês se sentem no mundo das engenharias?

YT ─ É difícil estarmos num tempo em que as mulheres procuram sobressair. Mostrar que também podem. Ainda é uma luta muito grande porque há um número limitado de mulheres […] na área de engenharia, e quebrar paradigmas é difícil quando estamos numa sociedade com uma mentalidade de que as mulheres foram feitas para estar na cozinha, para cuidar da família e não ter este espaço que nós estamos a ter. É uma luta difícil, mas nós não paramos, vamos continuar e a cada dia vamos nos orgulhar mais por fazermos parte deste universo.

MF ─ Sinto-me feliz por saber que faço a diferença na sociedade e por saber que não estou aqui apenas para ter acesso ao salário, mas, pelo papel importante que presto para sociedade.

“…nós já fizemos alguma pesquisa referente a esta situação da seca a Sul de Angola, mas, por falta de logística, [falta de] apoio, nós não conseguimos avançar.”

DG ─ Como é que o país está nessa área?

Foto/OI

MF ─ O número de mulheres nesta área já aumentou. Não é como antigamente que todo mundo só queria ser secretária, médica… Já estamos a dar bons passos.

DG ─ Qual tem sido a vossa maior dificuldade e desafio?

DG ─ O facto de ser um espaço com uma forte presença masculina vos incomoda?

MF ─Não incómoda. A maior parte sabe do seu papel e trabalhamos em equipa.

YT ─ A mim incomoda muito. Eu gostaria que a minha classe, a classe feminina tivesse a mesma visão que eu, a Manuela e outras mulheres tivemos. E não nos acanharmos e achar que existem tarefas para homens e para mulheres, que os homens podem escolher fazer alguma coisa e nós simplesmente vamos fazer aquilo que já foi deixado. Existem mulheres que podem despertar, que podem fazer parte desta classe. Mulheres que podem revolucionar Angola, que querem revolucionar a área das ciências.

DG  ─ O que têm estado a fazer para que mais mulheres se interessem por este mundo?

YT Intervenho muito nessa área, quero que mais mulheres façam parte da nossa comunidade.

Foto:OI// Da esquerda para direita estão Manuela Miguel (pesquisadora), Deonilde da Graça (Jornalista) e Yonara Tchissola( pesquisadora).

DG ─ Novos projectos e sonhos neste campo das invenções e inovações?

MF ─ O nosso país tem jovens com bons projectos que funcionam. Nós [em Angola] gostamos de implementar projectos que não foram concebidos cá, sem ter em conta a nossa realidade. O meu sonho é que se aposte mais nos jovens que têm iniciativas locais.

YT ─ Eu sonho com um país [onde] os jovens são apoiados e as mulheres são incluídas. Nós temos muitos projectos. Nós temos muitas ideias para apresentar, e que o simples facto de sermos um grupo pequeno não nos impede de encarar desafios grandes. Eu espero que daqui há 10, 20 anos tenhamos um país diferente; jovens com uma mentalidade diferente, que queiram usar tudo que têm aprendido para beneficiar outras pessoas, porque não importa termos mestrados, doutoramento e não usarmos tudo que aprendemos para ajudar quem não teve a mesma oportunidade.

 

 

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2 Comentários

  1. Kasanda

    Felicito e desejo sucessos.
    Mas também preocupado com a menina super inteligente da Cáala, que ja seria “coisa” do estado.
    .Mais um cerebro sub aproveitado em Mbanza Kongo, no rio Mfumu via Luvo a exibir invenção sobre electricidade.
    Há valores que merecem proteção estadual.

  2. Juvenália Da Costa

    É muito bom ver jovens desenvolvendo projecto como esse, que ajuda a população mais pobre. Meus parabéns a todos que fazem parte dele e com persistência e muito trabalho, o financiamento há de chegar.
    Continuem a fazer o bem, o país agradece.

    Um abraço bem grande à Eng° Yonara Tchissola

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