«É muito importante que nós entendamos que o jornalismo digital é uma forma muito mais sustentável de comunicação, na medida em que ele oferece custos muito mais reduzidos de intervenção e um sistema operacional que pode ser muito mais rápido e muito mais efectivo…»
Domingos da Cruz – Está comigo Herculano Coroado responsável pelo canal TV Livre Angola. Gostaria de lhe agradecer pela sua disponibilidade.
Teremos uma entrevista monotemática, tal como é a linha das nossas análises. Falaremos sobre jornalismo digital e, claro, parece-me que o Herculano é uma das pessoas mais adequadas para se pronunciar sobre este tema, sendo certo que é nesta área sobre a qual ele se dedica há alguns anos.
Herculano gostaria de ouvir o seu comentário geral sobre jornalismo digital. Pode também contextualizar a análise no âmbito de Angola.
Herculano Coroado – O jornalismo digital é o ponto universal para onde se concentram todas as formas e forças da comunicação social. É bom lembrar que, ele só é possível dentro dum contexto da media pessoal. Ele responde à necessidade individual e pessoal da customização e do consumo da media, isto é o que tem sido o modelo de audiência, num universo em que nos movemos pela economia digital, portanto há, manifestamente, uma convergência de todas as forças da media para um ponto em que acaba por satisfazer o interesse cada vez mais individual e personalizado do consumo da media.
DC – Herculano olhando para o contexto angolano, como vê em termos de qualidade e de quantidade?
HC – Nós devíamos em primeiro lugar analisar como nos enquadramos no contexto global. Em segundo lugar, o jornalismo digital foi um jornalismo alternativo ao controlo, que se assistiu dos medias tradicionais — estou a falar da mass media — em que houve uma grande influência, um grande controlo por aqueles que detém o poder político na medida em que, quem quisesse desfrutar do espaço público, como veículo de comunicação, tinha que encontrar outras alternativas e esta forma alternativa era a Internet que naquela altura, era, portanto, nova e de alguma forma tinha muito fragilizada a audiência que se interessava pelos conteúdos angolanos.
A audiência angolana na Internet era muito pequena, ela foi evoluindo, está a crescer, ainda não está no nível satisfatório. De quaisquer das formas, há cada vez maior apetite para se consumir informação online e isso cria um mar enorme de oportunidades, para nós os players online e para os medias tradicionais — e que vão perdendo cada vez mais esta influência do domínio público — e querem abraçar esta nova onda de estar na economia e comunicação que tem a ver com a partilha do espaço virtual de informação.
DC – Em termos de quantidade, não me parece que para um país que tem mais de vinte oito milhões de habitantes tenhamos espaços suficientes para trabalhar nesta área, não é?
HC – É verdade, mas isso também responde a um conjunto de pré-condições. A nossa academia ainda é muito pobre, o framework do trabalho online desenvolve-se num contexto de saber, de conhecimento, e nós todos sabemos que o nosso ambiente académico não tem sido capaz de doptar a nossa força de trabalho, a nossa juventude de ferramentas, que podem ajudar a alargar e melhorar a exposição na Internet. Portanto, nós temos um déficit muito grande de produção, de mão de obra que possa ajudar de forma consistente a alargar este espaço de comunicação. Por esta razão, este é um movimento crescente, é insatisfatório, pois não estamos completamente integrados ao movimento digital da comunicação, de quaisquer das formas como disse, é crescente, vai depender da perícia que formos ganhando em termos do país que somos; vai depender da especialização que formos ganhando, mas de alguma forma nós teremos mais órgãos de comunicação, Website e bloggers a partilharem este espaço, como é aqui, onde se oferece mais capacidade de intervenção na media e com a media, de forma muito mais sustentável na medida em que há racionalização de custos. Há cada vez mais menos dinheiro para os medias. Um outro desenvolvimento é o “jornalismo cidadão” que alarga o espaço de cobertura de eventos. Quer dizer que deixamos de estar sozinhos, como jornalistas, no negócio da “notícia”.
DC – Eu gostaria de colocar uma questão muito concreta relativamente à qualidade, que também tem relação como é óbvio, com a quantidade. Tem a ver com a estrutura gráfica, o design. Quando olhamos, por exemplo, páginas que fazem jornalismo digital, estou a falar do Elephant no Quénia, ou de outras plataformas na África do Sul, Namíbia, Brasil, (Intercept) por exemplo; em Portugal, o caso do Fumaça… tu notas que, de facto, nós deixamos muito a desejar do ponto de vista do design, da qualidade gráfica, da linguagem, dos conteúdos. Não sei se tem a mesma reflexão em relação ao que acabo de dizer?
HC – É de facto visível que há uma limitação na capacidade técnica e muitas vezes criativas daqueles que intervêm nestes espaços a nível de Angola. É de facto visível. Mas eu já disse que isso tem muito a ver com a nossa forma de educar, treinar, a nossa força de trabalho. Eu sei que nós estamos, enquanto players digitais, num universo em que estamos a intervir na perspectiva nacional porque estamos online, estamos na Internet, onde acabamos por actuar e aprender com os outros. Mas é bom lembrar que o framework da Internet mostra claramente a capacidade técnica, artística e tecnológica do Estado. Os Estados mais avançados vão ter certamente Websites e medias electrónicos muito mais sofisticados e os Estados mais atrasados, menos evoluídos a nível digital, vão ter obviamente um déficit a esse nível, vão ter dificuldades de afirmação no plano da Internet.
DC – Herculano, colocas a questão numa perspectiva macro, é verdade que o problema é macro, mas, tecnicamente, tem muito a ver com a equipa que compõe o órgão e as suas percepções do ponto de vista técnico, não é? Será que a estrutura das nossas plataformas, aquelas que nós gerimos em Angola, são fruto da nossa percepção estética? Porque temos que ser capazes de torná-las mais atractivas, isso é importante no mundo digital. Temos um grande défice estético no interface angolano comparado com o de outros países.
HC – É verdade, mas o mundo digital compreende a era tecnológica de informação e de conhecimento. Se nós tivermos deficit na transmissão de conhecimentos relevantes, que definem muitas vezes as bases estéticas, as bases operacionais, as bases de afirmação e as bases de comunicação a nível global, obviamente que os resultados vão ser esses que nós temos. Mas eu devo dizer que esse é um movimento jovem, um movimento que está a crescer, precisamos de melhorar a nossa capacidade de ensinar, treinar, e criar força de trabalho que pode produzir na era do conhecimento. Infelizmente, nós ainda continuamos a produzir quadros e, força de trabalho, que é treinada para agir na era industrial quando estamos obviamente na era digital do século XXI e precisamos de outro tipo de recursos que pudessem ser produzidos pela nossa academia para elevarmos os níveis de competitividade do Estado. A academia em Angola devia ser o centro para a produção do cidadão digital e da mente criativa nesta era do conhecimento, mas não tem sido, felizmente. Temos igualmente défice no domínio do ensino técnico, nas artes e, geralmente, o acesso à tecnologia também é precário.
Há que desenvolver a capacidade tecnológica, técnica e artística do cidadão para estimularmos a criatividade que nos ajuda a melhorar o framework e o interface da nossa presença online, o nosso registo do pé na Web. Por outro lado, a tecnologia, a técnica, a arte e a criatividade são os recursos mais importantes para o desenvolvimento económico digital. Isso é o que devíamos estar a produzir, mas não estamos a fazê-lo, suficientemente. Repare que não é apenas por questão de imagem. É também um desafio de competitividade do mercado e da economia, além do nível de atracção do Estado.
DC – Que comentário gostaria de fazer relativamente ao impacto. Acha que o jornalismo digital em Angola tem o impacto de que é capaz?
HC – Eu acho que nós não estamos sozinhos nisso, nós estamos num movimento que é global, universal e que compreende a era pós-verdade, que é a era em que o mais importante não é a tramitação de factos, ou da informação sobre factos, mas acima de tudo de elementos que sejam mais emocionais ou subjectivos e, que possam ter o domínio e influência, a manipulação das consciências públicas a nível dos Estados e, até mesmo, a nível global. E isso não se passa apenas no plano político. Não é apenas o plano político que usa a era da pós-verdade para obter influências e manipular acções no espaço público, mas também se assiste a isso noutros domínios do espaço público em relação às instituições que exercem esse tipo de actividades contamos as agências de relações públicas e institutos de pesquisa. Há também outros intervenientes, estamos a falar dos próprios jornalistas e do cidadão comum. Tudo isso nos leva à outra condição do jornalismo online.
Qual pode ser o nosso papel perante um quadro diferente daquele que operávamos na era industrial? Qual pode ser o papel do jornalismo digital? O que é que vamos fazer quando nós vivermos num quadro de excesso de informação e na era da fakenews?
Muitas vezes o mais importante, não é a informação como tal, como elemento factual que deve ser comunicado ao público, mas um conjunto de instruções para levar o público a se manifestar, comportar e a proceder de acordo com o interesse de quem emite esses códigos.
DC – Voltando à questão do impacto, gostaria de apresentar exemplos comparativos. Nós vimos a influência do Intercept no contexto brasileiro. A informação que é veiculada e vinculada ao Intercept tem uma grande repercussão do ponto de vista político e isto demonstra claramente, o impacto do Intercept, do jornalismo digital, de forma mais geral, a Agência Pública por exemplo. O mesmo sucede no Quénia, o Elephant faz reportagens que depois são retomadas pela media tradicional e têm um grande impacto. Nós, em Angola, temos sido capazes de fazer das nossas plataformas digitais um espaço que impacta a sociedade, que transforma a realidade, que inverta o curso dos factos?
HC – Eu acho que nós temos um movimento crescente, do ponto de vista de qualidade e, também, de quantidade. O espaço tem sido de inclusão. Mas é bom lembrar que [também] foi sempre no plano da informação, denúncias e jornalismo, sendo sempre um espaço de rebelião, um espaço que resistiu à enorme pressão que foi exercida por quem controlava o poder político sobre a mass media e, como alternativa, o espaço era de comunicação virtual, pois usava a Internet. É nesse framework que devemos entender.
Se há um impacto, obviamente que há, pois existe cada vez mais pessoas a consumirem media através da Internet. Portanto, esse movimento é imparável na medida em que nós estamos a assistir os medias tradicionais a nível de Angola a correrem imediatamente para Internet para poderem ser relevantes ao público, que é cada vez mais crescente, seja através de Websites ou até mesmo de redes sociais.
DC– Olhando para o futuro, acha que nós teremos, nesse campo, um grande crescimento não só em termos de nascimento de grandes plataformas, mas sobretudo de leitores que muito carece em Angola, uma vez que, possivelmente, teremos novas operadoras na área da comunicação e prestação de serviço de Internet? Será que as duas próximas operadoras podem ajudar a baixar preços e tornar a Internet mais acessível?
HC – A integração económica digital não é um desafio do futuro, mas sim do presente. Devia ter sido adoptado ontem. É uma questão vital da economia hoje, tal como temos vindo a ver em todo mundo. Por essa razão, urge criar as condições agora para que se baixe o custo no acesso à Internet para o cidadão e as empresas e se propicie um ambiente de cidadania inclusiva e de negócios digitais para as iniciativas do país. Geralmente mais inovadora, a juventude faz grande parte do trabalho tanto no consumo quanto na produção de aplicativos e negócios digitais. Os altos custos das telecomunicações em Angola que prejudicam principalmente a população mais jovem e desempregada, nos remete à margem da economia digital nesta era pós-industrial e obstrui a diversificação económica de Angola. O país não pode continuar a dar benefícios com os altos custos da Internet e prejudicar a maioria geralmente excluída, deixando o país sem capacidade de competir na era digital. No período dos “petrodólares”, a exclusão social e económica penalizou a maioria da população e em última instância atrasou o país. A exclusão digital tem o potencial de fazer a mesma coisa, ou pior ainda. Os níveis de capacidade da economia dependem hoje da integração económica digital dos Estados. Como vimos, a resiliência dos Estados perante à pandemia da Covid-19 residiu na Internet. Observamos a fragilidade das nossas instituições internas. Muitas fecharam as portas com a declaração do Estado de Emergência. Quem se integrou mais cedo, aumentou as vendas e dominou o mercado. Hoje, o mundo mudou. A Internet tornou-se no espaço mais seguro e acessível para o convívio em massa e os negócios, sem sair de casa. O pós-Covid-19 vai fechar os Estados ao turismo e à emigração e vai apressar o desenvolvimento tecnológico, a inteligência artificial, a Internet de Todas as Coisas, etc, por medo da guerra biológica com vírus, bactérias, medicamentos e vacinas. Ficou provado que o contacto humano é um meio de profundas vulnerabilidades aos estados. O mundo jamais será o mesmo.
DC – Mas, eventualmente, o facto de haver possibilidade para novas operadoras, novos prestadores de serviços na área de Internet, pode viabilizar preços menores e isso catapultar também o número de internautas e o número de leitores.
HC – Eu acho que esse não é o ponto mais importante. O ponto mais importante deve ser o interesse do Estado, o interesse público. Ora, a nossa integração deve ser na perspectiva da economia digital, em que vamos bastante atrasados.
Como é que funciona a economia digital? Nós, de facto, estamos expostos a essa economia, mas duma forma muito restrita, por exemplo, vamos analisar o contexto angolano em que havia duas operadoras e uma a funcionar de forma mais efectiva que a outra, em que a forma de fazer dinheiro era e tem sido pelo custo dos acessos à Internet e às telecomunicações. Os outros países o que fizeram?
Eles removeram as dificuldades de acesso à Internet e telecomunicações, treinaram as pessoas e incluíram muita gente dentro da plataforma electrónica, não somente reservada à de comunicação, mas acima de tudo, aos negócios, produção de bens e serviços e, além de estimular a criatividade, desenvolveram as suas economias de outras formas, não somente através do acesso às telecomunicações.
O que nós fomos tendo em Angola? É que, elevou-se o custo de acesso ao sistema e isso limita a capacidade do país de se integrar à economia digital, limita a capacidade do país de criar a sua própria capacidade de economia digital, pois a economia digital é baseada na capacidade de inclusão dos mais diferentes e variados players, empresas e cidadãos para criar valor da Internet.
A criação do valor, no caso angolano, tinha e tem sido maioritariamente por um número muito limitado de pessoas. Estou a falar dos donos das empresas operadoras de comunicação, são esses maioritariamente que ganham dinheiro com a economia digital em Angola. Por esta razão nós estamos atrasados, e vamos continuar a estar ressentidos.
Nós não podemos pensar o futuro da forma como colocas a tua questão, porque isso significa ignorar os fenómenos que estão a ocorrer agora. A necessidade de inclusão é agora e está acontecer principalmente com a pandemia global do covid-19, toda gente sobrou nas redes sociais para a comunicação e interligação seguras, para fazer negócios. Os Estados fisicamente fecharam as portas às pessoas, as instituições foram paralisadas, as empresas foram encerradas, as pessoas são somente livres de circular e fazer troca de valores através da Internet, duma forma ilimitada. Daí que fomos forçados a entrar para este universo por esta pandemia, logo, não podemos pensar isso no futuro, isto é uma realidade, temos que agir agora, não devemos que esperar por novas operadoras para um dia termos o custo de acesso à Internet reduzido.
O Estado responde à uma exigência do momento, a uma força maior que se aplica ao país que devia estar a trabalhar para imediatamente reduzir os custos e fazer com que as empresas e cidadãos angolanos, construíssem uma maior presença na Internet e fossem criando valor na sequência desta influência que teriam no espaço digital de comunicação.
DC – Percebo essa perspectiva, que é bastante interessante e integradora, na medida em que viabiliza a inclusão e faz com que este espaço digital de facto beneficie a todos e não só a alguns tal como, infelizmente, foi até agora no contexto angolano.
HC – A actividade é agora. Está a fazer-se de tudo na Internet e nós não podemos ficar à margem disso sob pena de sermos penalizados economicamente, uma vez que o paradigma mudou, a economia mudou, e é digital.
DC – Que relação se pode estabelecer entre o jornalismo digital e o jornalismo de investigação? Nós podemos estabelecer uma relação entre esses dois polos?
HC – Há obviamente um mar de oportunidades neste sentido, mas também, claro, a perícia técnica é fundamental. Nós vivemos num universo em que a fake news domina em toda parte, o papel do jornalismo e do jornalista é distinto, e surgem aqui oportunidades de comunicação do jornalista não somente verificar, mas também apressar os factos, validando, digamos assim os factos. Apesar de termos a capacidade de produção de tanta informação, ou até da tecnologia digital, que estamos a observar a emergir em toda parte, o jornalista vai continuar a ser importante porque ele pode verificar e pode certificar a informação. Daí que a perícia técnica é importante, mecanismos de investigação online devem ser aprimorados para que os jornalistas possam fazer o seu trabalho com zelo nessa nova era de comunicação digital. Obviamente, um dos grandes desafios do jornalismo investigativo tem a ver com o financiamento; os recursos materiais e financeiros para a realização do trabalho porque ele não é imediato. Ele toma tempo, paciência, toma um esforço enorme usando a Internet. O jornalismo online diminui os custos de investigação e também nós entendemos as limitações da publicação do material de recolha que vem do jornalismo investigativo. E a Internet acaba por ser um instrumento facilitador, na medida em que ela está no espaço público de informação, que muitas das vezes não é controlado pelo Estado, em que o operador se encontra. Pode obviamente fazer a publicação em estado de anonimato, sem exposição pessoal, e isso dá alguma segurança em ambientes em que ainda há alguma pressão sobre a liberdade de expressão e de imprensa. Portanto, há de facto, não só uma interligação entre o jornalismo digital e o jornalismo investigativo, como também existe aqui um mar de oportunidades que devem ser exploradas.
DC – Qual é o comentário que faz sobre o jornalismo de investigação em Angola em termos de quantidade e qualidade?
HC – Na verdade, fazendo uma observação, o jornalismo investigativo, em Angola está morto, praticamente não existe, está profundamente adormecido, até porque esse tipo de jornalismo depende muito da capacidade de financiamento para operacionalidade e para a sua eficiência. Depende de um conjunto de pré-requisitos que, provavelmente, hoje estão desintegrados, mas acredito que ainda seja possível recuperar este modelo de intervenção da media porque ela é muito útil, é muito importante para que a gente consiga trazer diversos aspectos relevantes da vida pública que não são explorados pela mass media.
DC – Acha que o jornalismo de investigação também tem a ver com a qualidade académica dos profissionais?
HC – Também é verdade, mas eu acredito que a nossa academia também ensina os estudantes a investigarem, ou pelo menos, devia ensinar os estudantes a investigarem. Daí que é fundamental que as escolas de jornalismo possam atiçar o interesse e a habilidade dos novos formandos, e os potenciais jornalistas, a se dedicarem ao jornalismo investigativo, ele é muito importante no contexto em que vivemos. Principalmente, no caso angolano em que, por exemplo, há assumidamente uma guerra contra a corrupção e essa luta só pode ser bem-sucedida se tivermos o jornalismo investigativo a atuar, vibrante, em quase toda parte. Sem este pressuposto, eu não creio que a luta contra a corrupção possa ter muita força para ser bem-sucedida.
DC – Numa altura em que estamos a comemorar o dia dedicado mundialmente à liberdade de imprensa, qual é a caraterização geral que faz sobre a situação em Angola?
HC – É aquilo que eu tenho feito como referência, as liberdades, hoje, estão muito relacionadas com a capacidade económica das instituições do Estado e dos cidadãos. Se os Estados, as instituições e os cidadãos estiverem frágeis economicamente, isso afecta a capacidade de expressão na medida em que o framework de intervenção da comunicação é muito técnico, porque a intervenção no espaço digital de comunicação envolve tecnologia, e técnicas cada vez mais modernas e para aquisição destes instrumentos é necessário que haja algum tipo de poder económico. E também, se os órgãos de comunicação estiverem economicamente fragilizados, não terão capacidade de operar, não terão capacidade de informar o público satisfatoriamente e todas as limitações se colocarão. Daí é que eu vou ver que essas limitações operacionais, decorrentes das fragilidades financeiras e económicas dos Estados, das instituições e dos cidadãos, vá contribuir para uma fragilização, digamos assim, do movimento da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, essa é a minha observação acima de tudo.
Há outros pré-condicionalismos, o condicionalismo político a ser revisto, há também as desigualdades sociais, há ainda aqueles que detêm o poder político, o poder económico e controlam os órgãos de comunicação social. O jornalista intervém nesses órgãos num mar de fragilidades, sendo submetido aos ditames dos interesses dos donos destes órgãos, que tem profundos interesses políticos, e que muitas vezes, nós sabemos quais são. Na medida em que nós estamos economicamente fragilizados, temos menor capacidade de empreender, especialmente na comunicação social.
Eu conheço um conjunto de iniciativas de media que não consegue ir para lá e não consegue operar de forma eficiente, porque não há fontes de financiamento para estes projectos, não há sustentabilidade económica, há uma fragilidade na sua operação e, obviamente, isto vai condicionar a liberdade de imprensa.
DC – Herculano estamos a chegar ao fim, há uma questão que eu acho importante colocar numa perspectiva comparativa. O anterior presidente era tratado ao nível da imprensa, sob o controlo do Estado (TPA, RNA, Jornal de Angola e ANGOP), de uma forma especial, como se fosse uma espécie de entidade divina. Na nova era, que alguns dizem ser uma era melhor, que parece haver sinais de liberdade de imprensa, não é esse o meu ponto de vista como é óbvio, mas o novo presidente também nunca é alvo de críticas desses órgãos de comunicação. Qual é a análise que faz sobre isso? Portanto, parece que o padrão em relação a esse aspecto não mudou. Os dois têm um tratamento de entidade angélicas, não?
HC – Há um modelo operacional dos órgãos de comunicação social público em Angola e o tratamento é em função da proeminência das fontes de informação, na medida que há sempre a tendência de se tratar de forma muito similar como se tratou no passado as figuras do Estado. O presidente da república, a figura mais alta do Estado e do governo, detém o controlo destes órgãos de comunicação social. Hoje, sem obviamente ignorar a maior integração de outras fontes de informação na cobertura destes órgãos, ainda há uma protecção da figura do chefe de Estado quando esses órgãos de comunicação social fazem reportagens dos eventos decorrentes, ou não, em Angola. Portanto, isso é indiscutível.
DC – Isso é um sintoma de que a liberdade de imprensa continua condicionada, quando há alguém que é intocável. Numa verdadeira democracia não pode haver intocáveis, não é?
HC – Nós estamos a viver um momento crescente de abertura, nós notamos abertura a nível da comunicação social, na sequência da transição pacífica de poder que nós tivemos em Angola. Obviamente que, ainda não é satisfatório o ponto em que estamos, vai se trabalhar muito mais, mas também entendemos que isso envolve uma sociedade com cerca de 30 milhões de pessoas, milhares de instituições, muitos órgãos de comunicação social e este movimento não é imediato, não é automático, é um movimento de descoberta dos limites próprios. Creio que esse movimento vai continuar a alargar-se na medida em que a construção dos polos de poder continuam também a se alargar.
Nós agora temos a meta da instituição das autarquias locais, do poder local, também vai trazer um outro ar à conjuntura política, à relação política e ao espaço político, à compreensão do poder das instituições, à “checkcagem” dos limites — até onde podem ser estabelecidas. Portanto, é um movimento crescente de abertura, é apenas um ponto em que estamos não é necessariamente o fim.
DC – Gostaria de pedir-lhe um comentário final, que lhe parece relevante no seu ponto de vista.
HC – Para mim é relevante entendermos que, quando falamos do jornalismo digital, estamos a falar precisamente da nossa capacidade de empreender, da capacidade de criarmos valor fora do contexto tradicional da economia, logo há uma inovação, e toda inovação para ser bem sucedida deve apresentar instrumentos aceitáveis de qualidade e também de quantidade e isso é só possível se nós tivermos capacidade técnica e tecnológica que nos ajude a chegar a este nível.
É importante que naveguemos numa era de informação e de conhecimento logo, a nossa academia deve preparar força de trabalho capaz, não somente de navegar nesse cosmo novo, mas de explorar as oportunidades que se nos apresentam no universo digital, e através da criatividade, criarmos valor e criarmos a nossa economia digital, é importante essa integração económica digital, o que só vai ser efectiva quando nós elevarmos o nosso nível de criatividade, além dos conhecimentos técnicos e operacionais da nova media.
É muito importante que nós entendamos que o jornalismo digital é uma forma muito mais sustentável de comunicação, na medida em que ele oferece custos muito mais reduzidos de intervenção e um sistema operacional que pode ser muito mais rápido e muito mais efectivo, embora hajam riscos muito grandes porque a era da comunicação digital, também potenciou um outro fenómeno extremamente negativo que tem a ver com a fake news.
A fake news sempre existiu no contexto físico, sempre houve a propaganda no sentido de se denegrir figuras, Estados, seja isso no plano nacional ou internacional, mas a era digital, a era da informação magnetizou a capacidade desta informação falsa influenciar o público de uma forma global, embora usando muita das vezes a media pessoal, pois o cidadão já intervém na criação da media e na partilha desta media, aliás, o segredo do sucesso do jornalismo online tem muito a ver com a capacidade da partilha daquilo que é exposto, o que torna o movimento viral e o movimento viral torna a informação influente.
A meta do comunicador online muitas vezes é ter um nível muito alto de influência, e isso passa pela capacidade de partilha, pela capacidade do público online consumir e partilhar, ao mesmo tempo criando uma bola de neve na projecção da informação.
Nós precisamos de compreender, que este universo em que intervém a fake news e em que a fake news se potencializa, é cada vez mais influente e o jornalista tem a missão de averiguar os factos, onde repousa a verdade no domínio público.
DC – Herculano gostaria de agradecer-lhe pela disponibilidade.