

Para um Carlos V, que, refugiado em um convento, assiste de longe a tragicomédia dos povos, quantos outros soberanos cuja ambição de comandar nunca será satisfeita e que, excepto a glória e o gênio, são outros tantos Alexandres, Césares e Átilas? Assim também, os financista que, cansados de ganhar, dão todos os seus haveres a uma bela causa, são seres relativamente raros: mesmo aqueles que tivessem a sabedoria de moderar seus desejos não podem parar diante dessa fantasia: o meio no qual eles se encontram continua a trabalhar para eles; os capitais não cessam de reproduzir-se em rendimentos a juros compostos. Tão logo um homem é investido de uma autoridade qualquer, sacerdotal, militar, administrativa ou financeira, sua tendência natural é usá-la, e sem controle; não existe carcereiro que não gire sua chave na fechadura com um sentimento glorioso de sua omnipotência; não há guarda campestre que não vigie a propriedade dos senhores com olhares de ódio contra o ladrão de frutas; não há oficial de justiça que não sinta um soberbo desprezo pelo pobre diabo ao qual ele intima. E se os indivíduos isolados já estão enamorados pela “parte de realeza” que imprudentemente se lhes distribuiu, muito mais ainda os corpos constituídos com tradições de poder hereditário e um ponto de honra colectivo! Compreende-se que um indivíduo, submetido a uma influência particular, possa estar acessível à razão ou à bondade, e que, tocado por uma repentina piedade, abdique de seu poder ou entregue sua fortuna, feliz de reencontrar a paz e ser acolhido como um irmão por aqueles que outrora oprimia sem seu conhecimento ou inconscientemente; mas como esperar semelhante ato de toda uma casta de homens ligados, uns aos outros, por uma corrente de interesses, pelas ilusões e pelas convenções profissionais, pelas amizades e pelas cumplicidades, e até mesmo pelos crimes?
Foi assim que bajuladores, interessados em louvar os pais para se servirem dos filhos, exaltaram em termos eloqüentes a noite de 4 de Agosto, como se o momento em que os nobres abandonaram seus títulos e privilégios, já abolidos pelo povo, tivesse resumido todo o ideal da Revolução Francesa. Se se envolve com essa auréola gloriosa um abandono fictício, consentido sob a pressão do facto consumado, o que não se diria de um abandono real e espontâneo da fortuna mal-adquirida pelos antigos exploradores? Seria temerário que a admiração e o reconhecimento públicos os reintegrasse no seu lugar usurpado. Não, é preciso, para que a justiça se faça, para que as coisas retomem seu equilíbrio natural, é preciso que os oprimidos se ergam por sua própria força, que os espoliados recuperem o que é seu, que os escravos reconquistem a liberdade. Eles só a obterão realmente depois de tê-la ganhado por intensa luta.
Nota: Extraído da obra “A Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista”, lançada pela Editora Imaginário em 2002.