Xenia de Carvalho*│“O homem que se perdeu a si mesmo”.
Em 1985, comprei um italiano em segunda mão, na Julius Nyerere. Já não me lembro quanto paguei por ele, era propriedade de alguém desde 1971. O porquê da sua venda permanece uma incógnita até hoje.
Estávamos em Maputo, Samora ainda era vivo e o regime o do partido único e da construção do homem novo, que (des)arrancava em campos de reeducação quando o marxismo-frelimismo assim o determinava. A época era também a da Guerra Civil, que só viria a terminar em 1992 com os Acordos de Roma, e na capital as senhas de racionamento não contemplavam a compra de pessoas ou livros, sabendo hoje que as pessoas também vêm em forma de livro.
A esse propósito, devo acrescentar que, mesmo que as senhas permitissem comprar pessoas ou livros, as poucas livrarias que havia em Maputo apenas tinham nas suas estantes as afamadas Edições Moscovo que versavam sobre a doutrina marxista-leninista, ou narravam a biografia hagiografada de Marx, Lenine e Stalin, o trio com mais êxito na editora, podendo também encontrar-se as revistas “Nova China”, nas quais aprendíamos o mandarim falado e escrito (nas últimas páginas havia sempre lições de língua com inclusão de vocabulário e umas notas culturais) ou a russa “Sputnik” (onde víamos fotografias fantásticas do mundo internacional e do espaço, tudo devidamente paginado de acordo com a tipografia mental da URSS).
À data, numa clara atitude mercantilista, simultaneamente de contestação silenciosa, todo um mercado informal de livros para além de Moscovo se desenvolveu na capital, sem necessidade de apresentação das senhas distribuídas pelo partido único. E desta forma se comprava gente não indexada nos missais do partido.
Breve biografia do italiano em segunda mão
Foi assim que, certo dia, me deparei com Giovanni Papini (1881-1956), cidadão italiano, nascido em Florença, naturalmente já falecido quando o encontrei em modo impresso. Papini foi jornalista, escritor, agnóstico até se converter em católico acérrimo, anticlerical convicto até à morte. Um florentino de inúmeras contradições e que provocou acesas discussões pela sua obra. No final da sua vida, o escritor cegou e foi acometido por uma doença que lhe atrofiou os músculos, impedindo-o de escrever por si próprio. Contudo, Papini não se rendeu e continuou a escrever, encontrando uma forma de ditar as suas palavras para que alguém as pusesse na forma escrita.
“O verdadeiro mundo só se descobre no pensamento, em nós próprios, eu posso ser dono de tudo o que quiser, desde que busque dentro de mim, no mais profundo do meu ser”.
Comprei o italiano em segunda mão pelas suas “Palavras e Sangue” (1912), uma coletânea de contos que trago comigo até hoje, editada pela Bruguera, com tradução do poeta e jornalista brasileiro Mário Quintana (1906-1994), que em 1934 publica a sua primeira tradução, estas “Palavras e Sangue”.
São contos sobre homens que se perdem e homens presos por si próprios, entre outros que por lá andam. De todos, vou falar-vos de um que comigo caminha na memória após ter lido um primeiro conto, do “Trágico Cotidiano – O homem que não pôde ser imperador”, o conto-mestre da coletânea, o conto com o qual Papini me insultou e me levou a comprá-lo por ser um “vilíssimo leitor, pobre diabo mal arrumado, que estás aqui a ler páginas, escutando palpitações da vida de outro, porque não sabes viver por tua conta”. O homem-Papini, que me apedrejou em modo literário, pretendia ter sido imperador, mas falhou na ascensão ao cargo. O conto que tenho por companhia desde esse período, o que li após o conto-mestre, esse do homem-imperador-falhado, fez-me reaprender que o totalitarismo ou a lógica do partido único eram dominós brancos e máscaras negras – mais à frente já explico melhor isso – e só o li porque o italiano me revelou a importância de falhar na aquisição de cargos imperiais.
O conto-mestre, do “Trágico Cotidiano”, narra a história de um homem que saiu mundo afora com o objetivo de o conquistar, anunciando em todos os lugares a que aportava que pretendia ser rei, pretendendo levar todos os homens para a guerra afim de conquistar o mundo. Mas ninguém o levou a sério. Imaginem que até moeditas lhe atiravam, chamando-o doido! E dada a inaceitação do seu projecto, o homem não se tornou imperador, descobrindo que a falha era consistente com a aquisição da humanidade: “Compreendi, afinal, o meu destino. Cego fui eu, saindo a conquistar o mundo. O mundo que eu considerava real não o é, não é ele o real, o supremo, mas apenas o mundo das aparências, dos sentidos, do engano (…). O verdadeiro mundo só se descobre no pensamento, em nós próprios, eu posso ser dono de tudo o que quiser, desde que busque dentro de mim, no mais profundo do meu ser”.
Contudo, o florentino é homem de muitas contradições aparentes e levou-me desse trágico cotidiano para um baile de máscaras, a fim de esclarecer-me quais as vertentes da condição humana.
“O homem que se perdeu a si mesmo”
Giovanni começa o conto dizendo que nunca gostou de bailes de máscaras e acabou indo a um, a convite, apenas para olhar – “todos deviam ir de dominó branco e máscara negra e dançar sem dizer uma só palavra”. E o homem lá foi saltando ao som da música, mas em breve cansado pela falta de hábito e do calor que o sufocava. Ao procurar a saída, deparou-se com um enorme espelho e colapsou ao perceber que se tinha perdido – todos eram iguais no reflexo devolvido pelo espelho, todos com a mesma máscara e os mesmos gestos, homem ou mulher, tanto fazia. “Onde estou eu entre todos estes? Onde está o meu eu entre todos esses estrangeiros silenciosos? Todos brancos com a cara negra… (…) Perdi-me a mim mesmo… Onde estou? Procurem-me, encontrem-me!”.
Após o desmaio, acorda num hospital e os médicos sentenciam que o homem está louco – ninguém se perde a si próprio… Assim o acharam essas “bestas pretensiosas”. Dada a incompreensão, o homem foge passado uns dias e retorna à casa do baile de máscaras, falando com o dono que o convidara para o baile. Tal dono “não é médico e por isto não deu muita importância ao que me havia sucedido”, acompanhando-o pela casa toda para lhe assegurar que não tinha ficado em lado algum da residência – nessa noite, ele tinha-se levado a si próprio, pois ali não constava. Conclusão lógica: o homem tinha-se perdido noutro sítio. Onde? Quem poderia saber? O dono deu-lhe a lista de todos os convidados e ele lá foi, não sem antes se recordar da história de Peter Schlemihl, “que vendera a sua sombra e andava a buscá-la pelo mundo” (personagem criada por Adelbert von Chamisso, botânico e escritor, que escreveu, em 1814, a ‘muito estranha história’ do homem que vendeu a sua sombra ao diabo e depois percebeu que sem sombra não era aceite em sociedade). Mas esse Peter não se compara com o homem que se perdeu a si mesmo: É que “eu tinha perdido a alma, o corpo, tudo!”.
O homem em busca de si próprio entra na noite à procura de si, olha para todos a ver se se encontra em algum e “nenhum deles era eu”. Quando visitou todos os que foram ao baile de máscaras, as reacções foram tão dispares que entendeu não ser por aí a forma de se encontrar. Nos dias que se seguiram procurou-se nos cafés, em reuniões políticas, nas missas religiosas, na universidade, seguiu muita gente para ver se em alguém estava ele. E nada. Ao que decidiu imprimir cartazes com “a descrição exata de como eu era antes de perder-me”, pedindo que o devolvesse à morada de sua casa. Alguns agarraram nele e devolveram-no, contudo, como morava sozinho ninguém lhe abriu a porta….
Após continuar a sua busca, cansado, dirigiu-se aos serviços municipais e participou que se tinha perdido. Pagou e deram-lhe a morada da sua casa… O funcionário “não quis ou não soube compreender; disse-me que era impossível que alguém se perdesse a si mesmo e que, em todo caso, nada mais podia informar”. O homem que se perdeu a si mesmo saiu em braços, após muito contestar por não o ajudarem a encontrar-se, e enquanto refrescava as ideias andando de um lado para o outro em frente ao edifico municipal, viu um cartaz que referia “Objetos Perdidos”, e entre vários itens, estava lá escrito “um dominó branco com máscara negra”.
Na secção dos objectos perdidos encontrou o seu dominó branco e a sua máscara negra. Ficou feliz! Muito feliz! E levou-a para casa. Sem saber bem porquê, vestiu-se como no baile e olhou-se ao espelho. “Eis-me! Era eu! Sou eu! Encontrara-me. Era sem dúvida eu, em pessoa – eu só. Não havia nenhum outro homem perto de mim”. Reza a história que desde esse dia, não mais teve coragem de sair de casa ou tirar o dominó branco e a máscara negra com receio de se perder novamente, “nunca mais…”. O homem reconhecera-se.
Xénia de Carvalho. Antropóloga & Consultora, Investigadora colaboradora no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)/Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL).