Angola: A liberdade de imprensa é um embuste. Está evidente

Angola: A liberdade de imprensa é um embuste. Está evidente

Gonçalves Vieira│O Dia Internacional da Liberdade de Imprensa foi assinalado, no passado domingo, 3 de Maio. Uma data criada em 1993, cujo objectivo é promover os princípios fundamentais da liberdade de imprensa, combater os ataques feitos aos media e impedir as violações à liberdade de imprensa.

A data serve, igualmente, para lembrar os jornalistas que são vítimas de ataques, capturados, torturados ou a quem são impostas limitações no exercer da sua profissão, bem como prestar homenagem a todos os profissionais que faleceram vítimas de ataques terroristas, ou que foram assassinados por organizações terroristas.

Para o ano de 2020, a data é celebrada sob o lema: “Por um jornalismo independente e imparcial”.

Em Angola, a Liberdade de Imprensa é um direito consagrado na Constituição da República de Angola (CRA) que, no seu artigo 44º, número 1, estabelece que, “é garantida a liberdade de imprensa, não podendo esta ser sujeita a qualquer censura prévia, nomeadamente de natureza política, ideológica ou artística”.

O número 2, do mesmo artigo, determina que “o Estado assegura o pluralismo de expressão e garante a diferença de propriedade e a diversidade editorial dos meios de comunicação”, enquanto o número 3 refere que “o Estado assegura a existência e o funcionamento independente e qualitativamente competitivo de um serviço público de rádio e de televisão”.

Este direito, plasmado na carta magna, tem sido reiteradas vezes, “negado” aos angolanos, com níveis de censura e autocensura elevados, sobretudo na imprensa estatal, cuja cobertura é de âmbito nacional, bem como com a criação de leis próprias de regimes autoritários.

A feitura de tais leis, que têm por objetivo o controlo da informação com vista à manutenção do poder, tem sido muito criticada por diversos organismos da sociedade civil angolana e organizações internacionais, tais como a Human Rights Watch, a Freedom House e Repórteres Sem Fronteiras, colocando sempre Angola entre os países “não livres”.

A legislação e os atos do governo de Angola violaram, no passado, os padrões internacionais relativos à liberdade de expressão e informação. Pesquisas anteriores realizadas pela Human Rights Watch demonstraram que as inadequações presentes em várias disposições da legislação sobre liberdade de imprensa e do Código Penal Angolano, comprometiam seriamente o exercício da liberdade de imprensa no país, especialmente pela media privada.

Esta realidade, segundo os profissionais da imprensa, praticamente não mudou com o surgimento de um novo Presidente da República, João Lourenço, nas eleições gerais de 2017.

A Constituição Angolana protege o “direito à honra” e o Código Penal garante essa protecção, através de sanções em caso de difamação ou injúria (atribuição de características negativas a alguém, que possam afectar a sua dignidade moral).

No passado, autoridades públicas invocaram abusivamente essa legislação contra jornalistas para silenciar críticas na imprensa sobre as suas actividades públicas ou privadas, sendo que, os jornalistas que criticavam abertamente autoridades governamentais, foram por vezes condenados por difamação e sentenciados a pena de prisão, além de terem sido multados.

Félix Abias. Jornalista.

Muitos desses processos ainda se encontram em aberto, apesar de vários anos se terem passado desde a ocorrência dos factos levados a juízo. Embora os jornalistas envolvidos não tenham sido presos e continuem a exercer a profissão, permanecem, de facto, sob a constante ameaça de que os seus processos voltem a correr e eles venham a ser condenados por difamação.

“A Liberdade de Imprensa em Angola continua ameaçada”

“Nunca a liberdade de imprensa esteve tão ameaçada como hoje”, começou por considerar o jornalista Félix Abias, antigo profissional do extinto Jornal Angolense. Ao Observatório da Imprensa, Abias sustenta a sua tese apontando os cenários que, na sua visão, configuram uma “morte clara” da liberdade de imprensa em Angola.

“Neste momento só há três jornais a imprimirem, nomeadamente, o Jornal de Angola, o Expansão e Novo Jornal (que são do mesmo grupo) e muito raras vezes, mas em quantidades praticamente insignificantes, o Folha 8”, disse.

Para Félix Abias, é uma situação “grave”, pois, dados avançados na última mensagem sobre o Estado da Nação, a 15 de Outubro de 2019, pelo Presidente da República, João Lourenço, na abertura do ano legislativo 2019/2020, indicavam que o país tinha pelos menos 200 jornais. “Isto significa que estamos em crise. Mas o Executivo nunca morreu de amor pela liberdade de imprensa”.

Reconhece que nos dois últimos anos, “Angola registou alguns avanços”, dado ao esforço que as autoridades fazem no país para este direito constitucional seja garantido. “No fundo, estou a falar do desempenhado dos órgãos públicos. E aqui, podemos dizer que houve avanços, mas em muitos casos, as práticas antigas continuam”.

Entre as práticas “antigas”, que, para o jornalista Félix Abias, ainda fazem morada na media estatal, aponta a não veiculação de vozes que contestam as políticas do partido dominante. “Quando os promotores de uma manifestação contra medidas governamentais ou parlamentares, anunciada como pacífica, não são ouvidos, mas são ouvidos aqueles que reagem negativamente à mesma, não sabemos se por ordem de quem”, disse para quem “estamos diante de actos que atentam contra a liberdade de imprensa”.

“Quando o presidente do maior partido na oposição não é entrevistado, tempo em tempo, depois de ser eleito, não é um bom sinal para quem, como nós, é defensor da liberdade de imprensa”, acrescentou.

Ente os aspectos positivos, Abias realça, por exemplo, o programa “Política no Feminino e a análise dos temas da semana, da TPA”, onde também há figuras ligadas a partidos na oposição, o que para ele “são sinais claros dos avanços de que me refiro”.

“Mas a liberdade de imprensa nos órgãos públicos reflecte-se nas críticas directas que são feitas a quem governa, e, diga-se, de forma geral, isto ainda é raro nos nossos órgãos”, sublinhou.

Actualmente o país está melhor do que antes, mas em muitos dos casos há semelhança nos métodos de actuação”

Na entrevista que concedeu ao OI, com vista a avaliar a Liberdade de Imprensa em Angola, o jovem jornalista entende que, “actualmente, o país está melhor do que antes no que a liberdade de imprensa diz respeito”, mas em muitos casos, sustenta, “há semelhanças nos métodos de actuação, talvez porque as pessoas são quase as mesmas”.

O jornalista disse que os exemplos que citou da TPA são sinais que “diferenciam uma era e outra. Os métodos que continuam são, por exemplo, o das manifestações, em que os promotores das mesmas não são ouvidos, mas há um espaço excessivo para quem as desencoraja”.

Ilídio Manuel. Jornalista.

Na comparação que faz entre a governação de João Lourenço e de José Eduardo dos Santos, o profissional refere que, “não há qualquer comparação possível”, pois, para Abias, “JLO está a anos-luz de JES”.

“Já vamos perdendo a conta das vezes em que JLO falou à imprensa quer em conferências de imprensa, quer em briefings após visitas de rotina, ao passo que JES era alérgico à imprensa. Se quisesse falar, preferia a imprensa estrangeira”, lembrou.

Apesar dos “avanços registados”, Félix Abias disse que ainda não é motivo para dizer que Angola está bem nesta matéria. “Uma coisa é dizer que estamos melhor que antes, como eu acho que estamos, outra coisa é que, apesar disso, estamos longe do ideal”, considerou.

“A imprensa privada está no cafrique e precisa ser salva”

Ao olhar para o desempenho da “imprensa privada”, como é tratada no nosso país, Abias entende que a “media privada está no cafrique e precisa ser salva”. Para o profissional, caso o Expansão e Novo Jornal deixarem de imprimir, nada mais haverá em matéria de publicações impressas, uma realidade que, de resto, é constada pelo Observatório da Imprensa, que numa ronda efectuada nas principais artérias da capital angolana, enquanto preparávamos este artigo, concluiu quase não há ardinas a venderem jornais privados.

“Antes os leitores tinham, por exemplo, o Semanário Angolense, o Angolense, A Capital, Novo Jornal, O PAÍS, Semanário Económico, Folha 8, Agora, Manchete, A República, entre tantos outros, mas hoje nada mais tens além do Jornal de Angola, Expansão, Novo Jornal e Jornal dos Desportos”, lamentou o escriba, para quem “é um retrocesso muito grande”.

Este cenário, segundo o jornalista, “é perigoso para todos nós, particularmente para quem governa, porque a crítica, sobretudo quando é responsável, ajuda bastante a melhorar o país”.

Em relação à independência de muitos órgãos de comunicação social privados, Félix Abias disse que “em muitos casos a imprensa privada é só de nome, porque, no fundo, muitos patrões fazem agenda de quem governa”.

As notícias de censura na imprensa privada, segundo o jornalista, continuam aos montes. “Pessoalmente, estou a chegar à fase de esgotamento em relação aos órgãos privados, estou fora dos campos há quatro meses e o actual status quo não me motiva a integrar uma redacção”.

Os jornalistas não devem ter outras motivações que os desviem de procurar informar com verdade, justiça e ética. “E o mais importante: resistir a pressões; quando estas condições não estiverem reunidas, arrume as botas e baza”, disse.

“Angola continua a ser o pior país em matéria de liberdade de imprensa nos PALOP´s”

Por sua vez, o jornalista Ilídio Manuel disse que, desde a chegada ao poder do Presidente da República, João Lourenço, em Setembro de 2017, a comunicação social angolana, sobretudo a pública, registou alguns avanços em matéria de liberdade de imprensa, mas com o decorrer do tempo tem vindo a perder o pouco que tinha já sido conquistado.

Na apreciação do escriba, houve, de facto, uma abertura na abordagem dos temas antes tidos como “proibidos” ou tabus pela censura ou autocensura. “Notou-se algum esforço na busca do contraditório, assim como em escutar outras vozes e sensibilidades políticas diferentes dos habituais círculos do poder ou dos seus apêndices”.

Ao OI, o antigo jornalista do extinto “Semanário Angolense” referiu que “estes avanços, ainda que tímidos, fizeram com que Angola subisse, em 2018, doze lugares no ranking da liberdade de imprensa mundial, de acordo com uma avaliação da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF)”. Apesar da subida, afirmou o profissional, Angola continua, “lamentavelmente, a ser o pior país em matéria de liberdade de imprensa nos PALOP´s”.

Agostinho Canando. Jurista.

No seu ponto de vista, qualquer observador atento dá conta que a liberdade de imprensa em Angola está a decair aos poucos, ou seja, passou da fase do entusiasmo e da “descoberta” do país real para um jornalismo de maior controlo governamental e a imprensa Privada, sobretudo a escrita quase desapareceu.

“Definitivamente, a liberdade de expressão e imprensa continua a funcionar a duas velocidades no país: em Luanda há ventos relativamente mais arejáveis em relação às demais províncias do país. Provavelmente, porque na capital do país estão concentrados o nervo do poder, as embaixadas, as ONGs nacionais e internacionais, as redacções centrais dos jornais, as TV e rádios”.

De acordo com os RSF, Angola ascendeu, em 2019, três lugares no ranking da Liberdade de Imprensa no mundo, o que faz com o país continue a figurar na zona cinzenta. Para Ilídio Manuel, se é certo que Angola registou alguns avanços neste capítulo, não é menos verdade que, do ponto jurídico-legal, o país confronta-se com um paradoxo, ou uma situação, no mínimo, caricata, a avaliar pela manutenção do pacote de Leis da Comunicação Social de cariz autocrático, que foi aprovado pela Assembleia Nacional em Janeiro de 2017.

A legislação em causa, que visou proteger os interesses do partido que detém o poder, segundo o jornalista, “não só atenta contra à liberdade de imprensa e expressão, como também representa um retrocesso nas conquistas já alcançadas”.

Lembra que, a nova Lei de Imprensa é defensora da prisão dos jornalistas quando deveria defender apenas a responsabilização cível. “Ela confere, por exemplo, poderes quase discricionários ao Ministério da Comunicação Social que tem a prerrogativa de proceder à cassação das licenças aos média, aplicar pesadas multas aos jornalistas que podem chegar até aos 20 milhões de kwanzas”, uma situação que antes, de acordo com Ilídio, “era da esfera dos tribunais passou agora ao livre arbítrio do órgão de tutela”.

“Politólogo diz que o quadro é de estagnação e mais para o pior”

O politólogo Agostinho Sikato é de opinião que o cenário que o país apresenta em matéria de liberdade de imprensa é preocupante. “O quadro é de estagnação, mais para o pior”, considerou. Numa pontuação de 0 a 10, Sikato atribui nota três à realidade angolana.

Um dos males apontados por Sikato e que na sua visão, enfermam o bom desempenho dos órgãos, é a falta de liberdade por parte dos jornalistas. “O cidadão é obrigado a falar o que convém ao estado”, considerou.

Sobre o passado e o presente, o politólogo entende que “houve uma pequena abertura em alguns órgãos do Estado de 2017 a 2019, mas actualmente voltou a ser o mesmo, como há cinco anos para cá”.

Agostinho Sikato defende a abertura para que os jornalistas tenham mais acesso às fontes de informação, bem como a melhores condições de trabalho para melhor servir o interesse público. “O cidadão deve falar o que pensa sem temer a ninguém que no dia seguinte ridiculariza a sua posição ou vem aliciá-lo”, referiu.

Entende ainda que, os cidadãos fazem muito e mais, para que, a liberdade de imprensa, que é um direito constitucional seja cada vez mais garantida, “mas tem sempre limitações que o impedem”.

Agostinho Sikato. Politólogo.

Segundo o politólogo, algumas dessas medidas “restritivas” à liberdade de imprensa “até são legais. Dito de outro modo, o impedimento maior está nas leis que são aprovadas que são absolutamente sectaristas”, considerou.

Em entrevista ao OI, Agostinho Sikato, que lamenta o “triste” cenário que o nosso país continuar a enfrentar, sustenta que “o Estado Angolano faz o que lhe convém, satisfazendo o interesse da elite governante”.

“É o momento de os jornalistas unirem-se em instituições fortes e lutarem contra tudo e todos”

O lema escolhido pela UNESCO para o ano de 2020 é: “Por um jornalismo independente e imparcial”, uma realidade que o jurista Agostinho Canando disse “não ser vivenciada no seio dos órgãos de comunicação social em Angola, sobretudo a imprensa pública”.

O jurista pensa ser o momento da classe jornalística “unir-se em instituições fortes e lutarem contra tudo e todos, que pretendam inviabilizar o seu trabalho, inclusive contra deputados na aprovação de leis e o poder executivo que, para ele, levam o poder judicial a tomar decisões esquisitas contra os profissionais de imprensa”.

Contra todas as expectativas, disse o jurista, “em princípio, pensamos, num passado recente, que estivéssemos numa mudança de paradigma em termos se liberdade de imprensa, isso a partir dos finais de 2017 e princípios de 2018, com a entrada em funções do novo governo”.

Agostinho Canando disse que o “caminho ainda [é] longo”, para que Angola atinja a liberdade de imprensa almejada nos marcos da lei e das organizações internacionais, pois, segundo o jurista, o “nosso país apresenta uma realidade preocupante”.

“A nossa imprensa ainda apresenta uma liberdade utópica, na medida em que, a própria media pública só passa os conteúdos permitidos pelo poder executivo e as ditas informações oficiais só são consideradas verdadeiras quando vindos da RNA, TPA, JA ou outras instituições bajuladoras, bem como as ordens superiores que ainda imperam e dão ultimatos no jornalismo de um país que se diz democrático”

Quanto ao quadro jurídico/legal, o jurista pensa que “por enquanto, facilita o exercício da liberdade de imprensa, mas não com a interpretação que o Executivo quer fazer ou dar a entender”, disse, acrescentando que “a liberdade de imprensa não pode ser limitada ou vetada senão nos termos da lei, e nunca porque uma dúzia de pessoas assim o desejam”.

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