Domingos da Cruz*ǁ A vigilância é uma prática comum dos Estados e actores não estatais, tendo ganho várias formas à medida que progredia a ciência e a tecnologia. No final do século XX e princípio do terceiro milénio, a vigilância digital tornou-se comum entre os serviços secretos nacionais.
De uma forma geral, é consensual que, em Angola, os serviços secretos operam tendo como pano de fundo a manutenção do poder de um grupo, contra toda a sociedade. Para compreender esta lógica de actuação, é necessário compreender a cultura política desta sociedade. De acordo com as análises mais recentes, Angola é um regime autoritário, mas, como em quase todos os contextos onde há opressão, existem focos de resistência, esta insurgência surge de uma parte da sociedade que não aceita a opressão de forma dócil, e é composta por democratas, aprendizes de democracia ou cidadãos abertos e desejosos de construir uma sociedade onde a liberdade geral venha a ser realidade. Estes que agem numa lógica democrática são o alvo preferencial do regime autoritário competitivo, embora outros grupos residuais sejam igualmente alvo quando certos interesses pessoais, ou de facção, estão sob ameaça no interior do regime (Gama: 2020). Neste caso, os serviços secretos ganham uma microfunção, deixando de servir temporariamente o grupo para servir interesses de indivíduos, como veremos adiante.
Quando se levantam vozes contra a vigilância que visa a manutenção do poder, outras vozes dizem ser aceitável a vigilância por parte dos serviços secretos angolanos, pois qualquer governo faz isso. É verdade, outros também têm serviços de vigilância. Contudo, o que é questionável e inaceitável, não é a vigilância em si, mas sim quando a vigilância visa grupos específicos em conta das suas convicções políticas, filosóficas, religiosas e étnicas. Para o caso de Angola, os alvos preferenciais da vigilância são aqueles que reclamam uma sociedade aberta, aqueles que militam em partidos opostos ao que governa. Os serviços secretos devem servir os interesses nacionais, um cidadão de um país só pode ser alvo de vigilância se estiver a conspirar contra o seu próprio país. Ou seja, somente criminosos investigados e sob ordem judicial podem ser alvo de vigilância. No caso de Angola, os três ramos dos serviços secretos – o Serviço de Inteligência e de Segurança do Estado (SINSE); Serviço de Inteligência Externa (SIE) e o Serviço de Inteligência e Segurança Militar (SISME) – são a extensão e prolongamento do partido que capturou o Estado. Em suma, estas instituições estão contra os cidadãos com vista a garantir a continuidade do mesmo grupo no centro da vida política nacional.
Quanto à manutenção do poder, é igualmente compreensivo dentro de um jogo político onde se cumprem as regras civilizatórias. É razoável desejar o poder, quando se exerce o poder com ética, quando os detentores do poder fazem dele uma ferramenta para a promoção do bem comum. Mais importante ainda: a manutenção do poder somente tem sentido, desde que seja resultante da vontade colectiva dos cidadãos mediante eleições livres, justas e transparentes. Gama lembra-nos que, em sociedades abertas por este mundo fora e nas quais os serviços secretos estão ao serviço dos cidadãos, essencialmente, eles visam “assessorar o Presidente da República (ou primeiro-ministro) em termos de informação estratégica, informação de carácter militar, de carácter económico, para poder ter elementos para dirigir o país.”
Direito da Vigilância como reafirmação do poder gangster
Em 2020, por iniciativa do governo, foi aprovada uma nova lei pela Assembleia Nacional, a Lei da Identificação ou Localização Celular e da Vigilância Electrónica. Esta lei permite, essencialmente, que as autoridades policiais e o Ministério Público interceptem e rastreiem as comunicações dos cidadãos. Antes de analisar esta lei, é importante compreender alguns precedentes históricos.
Toda a lei nasce de um contexto histórico, económico, político, social, religioso e cultural. Isso significa que esta atmosfera tem influência sobre as leis construídas por determinada sociedade e Angola é uma sociedade que terá sido vítima da colonização. Está provado que nas sociedades cuja história está manchada pela violência, entre os oprimidos, existem aqueles com a pretensão de se livrarem do opressor e construir a liberdade colectiva e do lado oposto, estão aqueles que interiorizam o opressor, o amam e se identificam com ele. Para estes, a sua luta visa substituir o opressor, para se tornar o novo senhor perante os antigos escravos com os quais partilharam a mesma experiência de dor, diria Paulo Freire. A compreensão desta verdade inteligível, contribui para perceber o caminho seguido pelas autoridades angolanas depois do alcance da independência física – libertação do território – mas mantendo a colonialidade psicológica na forma como tratam os seus semelhantes. Por isso, o novo regime endocolonial, adoptou as mesmas práticas de vigilância, à semelhança do que fazia a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Na reprodução da mesma lógica colonial, os novos senhores assoberbados com a captura do Estado, criaram a Direcção de Informação e Segurança de Angola (DISA, 1975-1981), cujo modus operandi se assemelhou ao dos mestres coloniais: vigiar e punir, perseguir, assediar e assassinar os divergentes. As suas acções foram tão sangrentas, que se estima terem sido assassinadas mais de 400 mil pessoas no famoso 27 de Maio de 1977. O Ministério da Segurança do Estado (MINSE), entre 1981 e 1992, foi a instituição que tomou o lugar da DISA e seguiu o mesmo padrão de actuação. Antes da sua institucionalização e actuação efectiva, houve um período de transição da DISA para o Ministério da Segurança do Estado de 1979 a 1981.
Nos anos subsequentes, manteve-se a mesma lógica, ocorrendo apenas reformas nominalistas e cosméticas. Entre 1991-1992, com o advento do multipartidarismo sem democracia, multipartidarismo forçado, reformaram a estrutura interna dos Serviços Secretos cuja cultura e lógica de actuação não mudou. Seguiram-se outras mudanças para não mudar, continuaram a vigiar, perseguir e assassinar os seus alvos preferenciais, como ilustram alguns casos: Alberto Chacusanga (2010), Nfulupinga Nlandu Victor (2004), Simão Roberto (1997), Ricardo de Melo (1995). Todos eles foram vigiados e mortos por tentarem exercer o direito de comunicar (Cruz: 2010).
Desde o alcance da independência do território, sem a independência psico-espiritual, as comunicações entre os cidadãos angolanos sempre estiveram sob vigilância. Vigilância em massa, uma violência que era do conhecimento dos angolanos. As cartas enviadas por correio eram verificadas, e o mesmo sucedia com os telefonemas, vigiadas pelos serviços de correios, em parceria com a Angola-Telecom e os Serviços de Investigação Criminal e os Serviços Secretos. Todo este abuso e demonstração de poder era feito sem qualquer base legal. Era arbitrário e indiscriminado. Impõe-se a questão: se sempre vigiaram e puniram, sem base legal e durante décadas, quais são as razões por detrás de tentarem criar leis que justifiquem a cultura do medo e a necropolítica? Face a um contexto de pressão da sociedade civil, que existe que os detentores de cargos públicos actuem com base no império da lei, o grupo hegemónico viu-se forçado a alicerçar a sua acção criminosa no ‘direito penal do inimigo’.
Segundo uma visão benigna e ingénua do Direito e das instituições que o concretizam, este visa arbitrar conflitos, garantir a cada ser humano o que lhe é devido e fazer justiça (William:2020). Ao contrário desta perspectiva, temos a concepção/teoria crítica sobre o Direito, que entende o Direito como um instrumento de poder (Okin & Olsen: 2020). O Direito seria um instrumento ao serviço dos poderosos, a fim de oprimir os mais fracos e manter vantagens no campo político, económico, cultural, religioso, entre outros. As evidências históricas sobre o papel do Direito como ferramenta para amordaçamento dos mais fracos são exaustivas: passam pelo Direito da Família, com enfâse para a relação entre os cônjuges; a colonização é um argumento irrefutável sobre o Direito ao serviço daqueles que estão do lado forte na relação de poder. Sobre este quesito, basta lembrar que foi o Direito e as instituições que o aplicam que transformaram os seres humanos em mercadoria vendáveis, aprovaram o apartheid e as leis separatistas nos EUA; as leis ocidentais sobre a imigração no mundo contemporâneo. Tudo isto fundamenta com eloquência o papel e o fim do Direito.
Posto isto, este grupo que capturou as instituições angolanas, não poderia fazer leis que viabilizassem o respeito pelos cidadãos, com destaque para o direito de não ser alvo de vigilância digital ou outra. Por isso, em 2015, o então Ministro do Interior e Director dos Serviços de Inteligência e Segurança do Estado (SINSE), Sebastião Martins, terá apresentado uma proposta de lei que visava interceptar, localizar e gravar as chamadas telefónicas (Gama:2020). Este projecto não se concretizou. É preciso lembrar que a prática de vigilância digital nunca careceu de uma base legal, sempre aconteceu e é comum, como diria Rui Verde (2021), no seu trabalho Vigilância Digital na Angola Contemporânea. Tendo como base a Constituição de 2010, esta proposta foi mais uma tentativa de violação da Carta Magna, mediante uma lei infraconstitucional que daria estatuto legal a uma prática que expressa as continuidades coloniais. Formalmente, a Constituição da República de Angola é perfeita no que diz respeito à protecção do direito à privacidade, uma vez que o artigo 34º estabelece com clareza e eloquência que: i) a confidencialidade das correspondências e comunicações mediante qualquer meio não podem ser alvo de vigilância de nenhum tipo; ii) se for necessário, somente mediante autorização judicial. Neste sentido, não há espaço para dúvidas, “toda a comunicação privada significa, oral ou escrita, por carta, via telefone ou computador, são sacrossantas”, por isso, “somente uma ordem judicial pode permitir a intercepção de tais comunicações” (Verde:2021). Por sua vez, a Lei Constitucional de 1992 não tinha qualquer referência clara sobre a vigilância digital. Os artigos 36º e 44º, combinados, proibiam que outras formas de comunicação fossem objecto de vigilância, mas fez silêncio sobre o digital. Ainda assim, parece razoável que os cidadãos não fossem vítimas de espionagem por parte do governo por duas razões: primeiro, uma interpretação extensiva era suficiente para cobrir o electrónico; e uma vez que Angola é Estado parte das Nações Unidas e da União Africana, e ratificou os instrumentos internacionais de Direitos Humanos, que proíbem a quebra de privacidade das comunicações, existem razões suficientes para que a dignidade humana e o império da lei fossem respeitados. Por outro lado, uma vez que o direito é também resultante da expressão das dinâmicas sociais, do estágio da ciência e tecnologia, das forças em disputa, uma hipótese que parece plausível para justificar o silêncio sobre a vigilância digital na Lei Constitucional de 1992 está relacionada com o facto de que a categoria electrónica e o digital não estarem em voga ou serem sequer populares na altura.
A proposta supra, do então Director dos Serviços de Inteligência e Segurança do Estado (SINSE), Sebastião Martins, em termos jurídicos violaria também a Lei sobre Protecção de Dados Pessoais que está em vigor desde 2011. Esta lei estabelece que os cidadãos cujos dados pessoais forem objecto de colecta por parte de uma instituição (por exemplo, empresas de telecomunicações), podem requerer o acesso aos dados, rectificar, actualizar ou requerer a eliminação dessas informações pessoais das base de dados. A violação desta lei traduz-se em multa para as empresas, no valor de $150.000. Sendo certo que Sebastião Martins desejou traduzir em lei o que já é comum, a interceptação e acesso aos telefones pressuporia a colaboração das empresas de telecomunicações, uma parceria já pré-existente, mas que neste caso ganharia estatuto legal. Se combinamos o que está estabelecido na Lei sobre Protecção de Dados Pessoais, e a Carta Magna da República de Angola, especificamente ao Instituto do Habeas Data, previsto no artigo 69º, que nos garante o que a referida lei institui, uma vez que esta lei entrou em vigor em 2011, pode-se afirmar que parte do seu conteúdo constitui a reafirmação do Habeas Data que afirma ipisis literis o seguinte:
- Todos têm o direito de recorrer à providência de habeas data para assegurar o conhecimento das informações sobre si constantes de ficheiros, arquivos ou registos informáticos, de ser informados sobre o fim a que se destinam, bem como de exigir a rectificação ou actualização dos mesmos, nos termos da lei e salvaguardados o segredo de Estado e o segredo de justiça.
- É proibido o registo e tratamento de dados relativos às convicções políticas, filosóficas ou ideológicas, à fé religiosa, à filiação partidária ou sindical, à origem étnica e à vida privada dos cidadãos com fins discriminatórios.
- É igualmente proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, bem como à transferência de dados pessoais de um ficheiro para outro pertencente a serviço ou instituição diversa, salvo nos casos estabelecidos por lei ou por decisão judicial.
A vontade de poder de Martins, ignorou também a Lei sobre as Empresas de Informação e Comunicação, de 2011, que protege a privacidade e a segurança no ciberespaço, entre outras disposições. A proposta de Martins, poria ainda em causa o Regulamento da Lei de Buscas e Apreensões, em vigor desde 2014. Esta lei estabelece com clareza, no seu postulado 17, que a vigilância electrónica e a interceptação de qualquer outra forma de comunicação só pode acontecer através de uma ordem judicial. No quadro do aparato legal sobre a vigilância electrónica e digital, esta Lei sobre Segurança do Estado, de 2002, é usada de forma arbitrária e abusiva para tudo e mais alguma coisa. Inclusive o exercício da liberdade de expressão e de imprensa é amordaçada ao abrigo desta lei.
As normas que constituem a base ou correlativas À vigilância digital, em Angola, desde o fim da guerra civil é relativamente vasta. Em 2017, terá sido aprovada a Lei sobre Protecção de Redes e Sistemas de Informação, obrigando as empresas provedoras de serviços de telecomunicações a armazenar e localizar os dados e o tráfico de informação para fins de “investigação, detenção e repressão de crimes.” Quanto ao tempo e prazo para armazenamentos dos dados, de acordo ao artigo 23º, as operadoras de telecomunicações devem manter a informação nas suas bases de dados, pelo menos durante um ano. Por sua vez, o artigo 22º, obriga as operadoras a permitirem que o Procurador-Geral e outros magistrados abaixo na hierarquia tenham acesso aos dados que constituem evidência em caso de existir uma investigação em curso. Por sua vez, o postulado 37, estabelece que os serviços secretos só podem ter acesso a estes dados, ou interceptar as comunicações, mediante a autorização de um magistrado. É preciso lembrar que todo este aparato legal que freia e inviabiliza a vigilância, está morto, de nada vale. O que tem prevalecido é a vontade daqueles que têm o poder político, económico e militar. Por outro lado, a Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Publico, estabelece que a Procuradoria-Geral da República é relativamente ‘subordinada’ ao Presidente da República (Art.º. 2, alínea l e m). Esta norma é chave para manter esta instituição e os seus operadores em aplicadores/concretizadores da vontade do poder político, tal como a prática demonstra sem razões para dúvidas. Em adição, ainda em 2017, foi aprovada a Lei sobre as Comunicações Electrónicas. Para a Freedom House, esta lei habilita o governo o controlo total do sector das comunicações através da infra-estrutura tecnológica. Aliás, a lei permite que o Presidente tenha ‘tutela’ sobre o sector. Esta facilidade com que o chefe do poder executivo pode intervir sobre o campo das tecnologias de informação, facilita a violação dos direitos dos usuários e tornam-nos preza fáceis para vigilância digital conforme a vontade da Presidência da República.
O Direito como perigo
Em 2020, foi aprovada a Lei da Identificação ou Localização Celular e da Vigilância Electrónica (22/20 de 23 de Abril). O escopo não podia ser mais claro que a sua denominação: visa interceptar e fazer vigilância digital através das mais recentes tecnologias na área das comunicações. Esta vigilância, segundo a mesma lei (artg.1º), pode ser levada a cabo em ambientes privados e públicos. Sobre as comunicações e meios que devem ser objecto de vigilância, a lei permite literalmente tudo (art. 12º). Embora artigo 5º estabeleça alguns limites: i) as pessoas que não estejam sob investigação criminal não podem ser alvo de vigilância; ii) os advogados envolvidos em processo também não podem ser objecto de investigação; iii) a vigilância não pode ser feita com motivações políticas, ideologias, religiosas, social ou étnica. Em adição, o artigo 23º da mesma lei, estabelece que a interceptação de telefones e comunicações telemáticas requerem autorização judicial. A Lei da Identificação ou Localização Celular e da Vigilância Electrónica constitui o ponto mais alto da concretização legal do Big Brother. O que antes era feito no vazio jurídico, agora ganha estatuto de lei que facilita o mais importante para o grupo hegemónico: manter o poder sem projecto político. Garantir o poder pelo poder, usando as tecnologias de vigilância digital para amplificar o medo, enquanto instrumento perfeito de paralisação do povo.
Felizmente, é também certo que, onde existe opressão nasce sempre a resistência, mesmo que em pequena escala. Neste sentido, a sociedade civil reagiu negativamente à proposta de lei e, mais tarde, à aprovação que a transformou em lei. Na esfera pública ficou clara a ideia de que esta lei representa um perigo para os direitos civis e políticos, com enfâse para o direito à privacidade e à segurança. É neste quadro que a Ordem dos Advogados de Angola terá requerido que o Tribunal Constitucional se pronunciasse sobre a inconstitucionalidade de alguns artigos da lei em análise. Em resposta, a 15 de Dezembro de 2020 a corte declarou inconstitucionais os artigos 6º, n.3; 8º, n.3 e os artigos 19º, 20º, 21º. (Acórdão n. 658/2020). Esta decisão significa que, essencialmente, a presente lei põe em causa o artigo 34º da Constituição da República de Angola de 2010, que garante a inviolabilidade e sacro santidade das comunicações a todos os níveis, formas e meios.
Como é comum em regimes autoritários, nada aconteceu. O acórdão foi completamente ignorado. A Assembleia Nacional que, em Angola, é essencialmente um instrumento do partido-hegemónico, manteve silêncio, e, por conseguinte, a lei opera tal como a conceberam para os interesses do grupo opressor. Sem mudanças na lei, sem pressão da sociedade civil, sem intervenção dos partidos nominais da oposição…a tirania segue o seu curso. Esta é uma expressão adicional da ausência de fiscalização dos poderes. Por isso, este equilíbrio necessário está adiado para quando Angola alcançar a democracia.
Segundo Verde (2020:11), esta lei abre portas a muitas arbitrariedades porque ela tem uma linguagem imprecisa, vaga, ambígua e conceitos abstractos. Para que se possa compreender a gravidade desta lei, basta referir que ela permite que uma vasta rede de entidades e instituições levem a cabo ou autorizem a vigilância digital: polícias, procuradores, juízes. Não é nada que nunca terão feito, mas agora têm a base legal e a porta escancarada para proteger a todos os níveis do Estado Capturado. Para complementar e encerrar o quadro legal, o novo Código Penal e o Código do Processo Penal comportam normas relativas à vigilância. Essencialmente, o código penal pune, mediante prisão, aqueles fazem vigilância digital ilegal (art. 230º); abrir uma carta destinada a outrem também e punível com prisão (art. 231º); filmar ou fotografar alguém em público, mesmo que esteja num evento, requer autorização desta, sob pena de ser responsabilizado criminalmente (art. 236º). Esta norma é problemática porque põe em causa a liberdade de expressão nas mais diversas formas e é uma ameaça tangível à liberdade de imprensa. Por sua vez, o Código do Processo Penal, nos artigos 241º e 242º refere que a vigilância digital só será permitida em sede de investigação criminal, mas com autorização judicial. A carta também é submetida à mesma regra e critério.
Compulsado o quadro legislativo, é evidente que a Carta Magna da República de Angola (art.34º) protege os cidadãos contra a vigilância digital, mas as demais leis, ou violam a Constituição, ou se mantém dentro dos limites constitucionais, ou carregam contradições e ambiguidades. Em síntese, vai prevalecer o que sempre aconteceu: a vontade política arbitrária, a violação da Constituição e dos direitos dos cidadãos. E não haverá punição dos criminosos.
Necropolítica e alvos recentes de vigilância digital
Segundo o filósofo camaronês Achille Mbembe, em muitas sociedades, os grupos que detém o poder e controlo sobre o Estado, transformaram a morte no único projecto. Ou seja, ao contrário da teoria crítica, que entendia a morte como efeito colateral de políticas securitárias para a protecção de outros interesses, para Mbembe, a morte é o único projecto que estes lumpenos, que actuam em nome do Estado, têm. Neste sentido, o único fim do Estado é decidir quem deve morrer e quem pode viver. Por isso, é intuitivo compreender porque o grupo que capturou Angola mata e mata tanto. Todos os anos, de forma directa e indirecta. Nesta atmosfera necropolítica, o cadáver é um instrumento psicopolítico de bloqueio dos habitantes do lugar, de petrificação e capitalização política.
A compreensão da necropolítica – enquanto a morte de pessoas como o único propósito daqueles que governam – pressupõe um breve recuo histórico sobre a vigilância em Angola. Durante a Guerra que opôs a UNITA e o MPLA, o governo angolano usou bastante a vigilância electrónica. A UNITA também fez uso deste recurso (Miranda:2021). É perfeitamente compreensível a aplicação e uso da vigilância no quadro de uma Estratégia Geral de Guerra. Relatos, que carecem de evidência, dizem que a localização exacta da zona onde Jonas Savimbi estava, meses e dias antes da sua morte foi possível mediante o uso de tecnologias de localização e interceptação de comunicações. Finda a guerra, os serviços secretos jamais abandonaram a lógica militar de actuação. Tal como o colono tinha todos os nativos como inimigos, o regime transformou o povo angolano em alvo dos serviços secretos, e por isso, vítimas de vigilância em massa, seja ela artesanal ou sofisticada, conforme a disponibilidade de meios técnicos e recursos humanos para garantirem a omnipresença fantasmagórica ou real, cuja implicação é o medo generalizado na sociedade.
É neste quadro que se pode compreender que um cidadão numa actividade normal, como é foi o caso de uma manifestação a 11 de Novembro de 2020, foi assassinado com um tiro na cabeça. Relatos indicam que tinha posições críticas na universidade e noutros espaços onde frequentava. Por isso, à semelhança de muitos angolanos, estava também sob vigilância das milícias digitais informais, criadas pelo partido hegemónico com a orientação e assistência técnica dos serviços secretos. O cidadão em causa foi o Inocêncio de Matos cuja luta por direitos humanos pagou com a vida.
Os integrantes do caso 15+2 também terão sido vítimas de vigilância digital. O regime fez questão de exibir as evidências em tribunal e nos canais de TV e rádios sob seu control0. As discussões do grupo eram gravadas através de esferográfica-câmara, por dois agentes dos serviços secretos, com destaque para Vladimiro. Enquanto viajava para a Namíbia, a localização e captura de Domingos da Cruz, terá sido através de tecnologia que é capaz de localizar e interceptar telemóveis. Informações prestadas por agentes descontentes dentro do regime, dão conta que a Esperança Gonga, esposa de Domingos da Cruz, foi alvo de vigilância digital, antes, durante e depois do processo. Outros parentes próximos dos presos políticos do caso 15+2 estiveram, também, na mira dos serviços secretos. Uma lista nominal de um governo de Salvação Nacional foi postada no Facebook, em gesto de brincadeira. Os integrantes dessa lista foram arrolados no mesmo processo judicial, na condição de declarantes, entres os quais o Padre Jacinto Pio Wakussanga.
O jornalista Rafael Marques terá sido alvo de vigilância durante muito tempo. Por um lado, era vigiado por agentes oficiais dos serviços secretos, mas por outro, era vigiado por agentes privados. Cidadãos com posições de poder no governo serviram-se desta posição para locupletar fundos públicos alocados para a compra de meios tecnológicos e contrataram mercenários para fazer o trabalho. É o caso de Manuel Vicente, então Presidente do Conselho de Administração da SONANGOL, e, mais tarde, o vice-presidente de Angola, General José Maria, Chefe dos Serviços de Inteligência Militar e Ministro de Estado e da Segurança, General Hélder Vieira Dias Kopelipa, que compraram tecnologia a Israel e aos EUA para levar a cabo os seus intentos. Para isso, foi necessário a instalação de uma base de operações no bairro azul, na mesma zona onde vive Marques (cf. Africa Monitor: 2020; Gunter: 2014; Verde: 2021). Em 2013, o seu computador foi hackeado e o site Maka Angola, também terá sido atacado. Findo o consulado do então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, a relação de Marques com o regime tornou-se cordial. Talvez por isso, a operação de vigilância conheceu o seu termo.
Em Maio de 2012, Isaías Cassule e Alves Kamulingue tentaram organizar uma manifestação que teria lugar em Luanda. Por esta razão, foram raptados e assassinados por sufocamento com sacos de plástico, tiros na cabeça e peito, por agentes dos serviços secretos e da Direcção Nacional de Investigação Criminal. Em seguida, lançaram os corpos no rio Dande para que fossem comidos pelos jacarés. Ambos estavam sob vigilância. Os seus telemóveis eram objecto de geolocalização e as comunicações trocadas estavam sob escuta (DW: 2017). O chefe desta operação foi o General Filomeno Pedro, dos Serviços de Inteligência Militar; outros agentes desta operação terão sido Maurício Júnior que, à época dos factos, estava colocado no Gabinete Técnico do MPLA em Luanda e participou na operação sob Comando de Bento Bento, Primeiro Secretário do partido na capital, à data dos acontecimentos. Este último negou publicamente o seu envolvimento na operação e assassínios. Por outro lado, o agente Benilson, conhecido por Tucayano, também participou no rapto das vítimas. Antes do rapto teve uma conversa telefónica com ambos. Benilson tinha protecção do então Procurador-Geral da República, João Maria de Sousa. Como afirma Gama (2019), os envolvimentos de todas estas personagens indicam um sistema articulado de todo Estado que patrocina “actos de terrorismo, de morte e execuções de pessoas.”
Quis a ironia que as armas que, o então Presidente José Eduardo dos Santos, instalou contra a sociedade angolana, se virassem contra a sua família. A análise, tratamento e divulgação de conteúdos de mais de 700 mil documentos – Luanda Leaks (2019-2020) – sobre os assuntos económico-financeiros de Isabel dos Santos, terá sido através de espionagem digital levada a cabo pelos serviços secretos de Angola, disse a própria Isabel, através dos seus advogados. “A investigação da Black Cube revelou que a nova administração é a fonte dos ‘Luanda Leaks’, tendo sido a orquestradora e executora do acesso ilegal aos servidores da Sra. Dos Santos, bem como dos seus associados e prestadores de serviços, incluindo escritórios de advocacia encarregados a favor dela” (Observador & Lusa: 2021). Esta versão foi desmentida pelo governo e a que prevalece é de que os documentos foram disponibilizados por Rui Pinto, hacker e denunciante português que já recebe comarcões a Edward Snowden e Julian Assange. A defesa de Isabel insiste que Rui Pinto recebeu os documentos de uma fonte dos serviços de inteligência externa. No acto de entrega esteve presente o Ministro das Relações Exteriores, Manuel Augusto.
Numa extensa análise, com o título “Os serviços secretos foram usados para fins pessoais, para perseguição”, o jornalista José Gama descreve como em determinadas circunstâncias o alvo de espionagem muda temporariamente. Embora o alvo preferencial seja o povo, como um todo, enquanto inimigo imaginário e atomizado, dentro do qual existem alvos singulares, imediatos e seguidos de forma sistemática e permanente: membros relevantes da sociedade civil, académicos e jornalistas credíveis, e políticos da oposição, não obsta guerras internas que despoletam a aplicação e uso dos aparelhos de espionagem entre os membros do grupo opressor. Tal sucedeu com a espionagem digital feita e comandada por José Maria, então chefe dos Serviços de Inteligência Militar em parceria com o General Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’ contra o Chefe dos Serviços de Inteligência Externa, General Garcia Miala. Gama reafirma o seu argumento baseado em factos, dizendo que “verificou-se também, em 2006, a forma como os próprios serviços foram usados, para retalhar os próprios serviços, no caso concreto o General José Maria, o General Kopelipa, acabaram por usurpar os serviços das mãos do Chefe do Executivo para acabar com outra ala de um outro aparelho de segurança, neste caso concreto aquela que foi a antiga direcção dos serviços de inteligência externa, que deu lugar depois àquele processo que levou à detenção dos antigos responsáveis, que foram acusados inicialmente de planearem um golpe de Estado contra o Presidente.”
Um breve recuo no tempo e encontramos outra prática semelhança. Miala terá usado a espionagem digital para desmantelar o então Secretário do Conselho de Ministros, Toninho Van-Dunem, que esteve envolvido em actos de corrupção e desvio de créditos da China, no início desta relação credor-beneficiário. Outros Ministros e colaboradores próximos de José Eduardo dos Santos também foram alvo de espionagem. Algumas vezes com a intenção de combater e prevenir crimes, mas também como meio de consolidação do poder pessoal (Carlos: 2017; Verde: 2021). Esta prática generalizada e arbitrária terá sido feita dentro (entre os membros da gang) e fora (contra a sociedade).
*Este relatório foi financiado pelo Media Policy and Democracy Project (MPDP). O MPDP é um projecto conjunto da Universidade de Joanesburgo, Departamento de Comunicação e Media e da Universidade da África do Sul, Departamento de Ciências da Comunicação, no qual o autor é pesquisador convidado.