“Crua canção de ira e de resistência”

“Crua canção de ira e de resistência”

Resistencia
[Pt| rmc]
Por João P. G. Dias|| Roxa raiva, de escravos de uma força sem razão. A raça dos senhores é puro desmando, girando para sempre em espirais de orgulho vão, tentando impor-se contra a evidência do argumento chão, sem outro projecto ou proveito para além de indesejados paradigmas no futuro de um mal absoluto, em total desacordo com o bem da criação.

Quando os mitos afloram à flor do olhar, trocam o ódio todo por fermento de amor de coração retribuído, trocam o pão da cólera pela calma compreensão da graça de estar vivo, trocam a fome toda pelo apetite de uma maçã ácida, trocam-nos o ressaibo da viuvez pela romã do riso, ou pela polpa do mel de tangerina.

E encontram a cabra remoendo o sal da malícia de todas as idades. Olhos de ouro nocturno e de gulosa fixidez, pegajosa de mau estar, é cripta de pelo na qual se acoita o frio anacoreta do receio de amar, tentativa obcecante e já gorada, obediência servil com inconfessável intenção, doença milenar na relação entre humanos, chaga sem poção.

No olhar, o escaravelho do protesto contra este cara velho, e uma maneira jovem de estar pronto e atento. Brada o pregão do fresco, e o arguto manancial dos sonhos futurados. É juventude e aspira pelo ciclo fechado de uma crença explicada, é semente oferecendo-se à dor de germinar.

Se ouvirdes a alguém dizer:_«Eu sou o melhor escriba, o melhor chefe, o maior qualquer coisa que seja, duvidai. Pois quem mais perto está da perfeição são aqueles que mais duvidam. Lembrar que a ferramenta pode prolongar-nos o braço para a vida ou para a morte, e castrar na mente as flores sadias. Arma de caça é pura ferramenta, arma de guerra é pura insensatez.

Nunca manchar a lança em sangue irmão, pois se um segundo crime justificar o primeiro, nunca mais terá fim este ciclo infernal. Nunca pensar em procurar desculpas, qualquer que seja o peso do tirano, pois as mil larvas do crime têm mil irmãs gémeas de remorso. Que a malícia nestas coisas sagradas não tenha porta por onde entrar, há que apontar os erros e exigir um agir coerente com a ideia da Justiça, que se defende, defendendo crimes contra a vida.

Não te sintas menor por bem fazeres os trabalhos menores de mais trabalho. Labor que menorize só de escravo, ainda que o sejas, que seja de alto voo e precioso. Faz o que for humilde com bravura, isso te distinguirá dos senhores, que temem conspurcar as mãos de branda preguiça pelas lamas da seara. Desonre-te somente o não fazer nada, ainda que o faças muito activamente!

Resistencia popular
[Pt| rmc]
Todos são teus iguais. Só deste outro modo te permitirás tratar qualquer dos teus servos: como a senhor! Nem sempre aos que servem lhes é dado entender que o servir é um reger natural. Quase nunca aos que regem lhes é dado entender que o reger é um servir natural e se os não servem, não servem para dar conta do recado.

Tombou a rigidez que me empenava o gesto e o dom da fala, graças à humilhada convicção de que o homem é um ser completamente diferente, com direito a ser tratado como igual. Gritei: Poderoso serás, mas não meu Senhor! Ainda era tão jovem que a raiva tomou todo o lugar do razoar. Mas na manhã que crescia de súbito sem pausa de alvorada, entendi que a nossa vida era já diferente, pela introdução de um conceito estranho.

Enquanto descia até ao povoado, ia sentindo endurecer o cerne da paixão. A minha resolução amadurecia a cada passo e ao chegar era já homem feito. Percebi-o pelo modo diferente de olhar, com que os meus me olharam nesse dia. Ouviram minha fala tão serenos, tão ofertados em sua crença em mim, tão cândidos buscando-me ordenança, que senti que os traía, se traísse o meu horror nocturno perante eles.

Pedi-lhes que juntassem todos os seus haveres: todos os gados que pastavam, as sementes, os frutos e utensílios ainda que menudos e sem valia aparente, suas parcas vestes e toda a farinha. Isto pedi aos velhos, às mulheres, às moças e aos meninos. Aos homens feitos e rapazes ardendo em ânsias de mostrar seu valor, expliquei simplesmente, quanto pude e soube, o meu propósito.

Sem armas, sem víveres, rumo à floresta, com apenas a serenidade por companhia. Chamávamos com francas vozes os animais do mato. Talvez porque, em tempos como este, os bichos entendem as humanas falas, ou porque a lei urgente do apelo das nossas vozes fosse convincente, ao meu brado:

― Irmão Leão!

O bando surgiu do recôndito matagal e pôs-se a seguir os meus passos, meigos como gatinhos domésticos.

Chamava:

― Irmã Gazela!

E logo vinha, por sobre o alto capim, a manada inteira, balindo, misturando pelo meio dos leões os seus penteados dorsais de pelagem dourada.

Inimigos naturais, seguiam juntos pela trégua de uma subtil e comum obstinação, como num sonho ou num cândido e ingénuo desenho de criança.

Chamava:

― Irmão Corvo!

E das alturas, num estranho e difuso crocitar, todo o bando descia sobre o bando que já éramos, pousando sobre os dorsos peludos ou sobre as nossas cabeças.

― Irmã Águia! Irmão Esquilo!

E mais se misturavam. A nossa voz juntava-se num coro bravo, mas carregado de modéstia, turvo de simplicidade e de nobreza.

Um só grito de:

― Irmão. Irmão. Irmão… Irmã. Irmã!

― Irmã Formiga! Irmã Toupeira! Irmã Girafa! Irmão Elefante!

Cantávamos uma crua canção de ira e de resistência ao poder, e ao seu desprezo pelo nosso existir. Que nunca mais, no Futuro, possam, por tão cruéis arbítrios, sumir nossa humanidade.

Só a contínua marcha para o monte nos alimentava a decisão de fria cólera. Nem parávamos para beber a água das ribeiras. Não dávamos espaço à fome e à sede por temor de tirar lugar à nossa determinação. Só o brado: ― Irmão! Era alimento, e bastava essa voz para matar sedes antigas que nunca supuséramos saciar.

E toda a terra começou a tremer, enquanto um rumor surdo espirrava do chão gretado, envolto em vapores de enxofre, entrando-nos na pele, e ritmando um estalar de tutano nos ossos. E a Norte e a Sul, oposta labareda de dois sóis nascentes, apertaram de súbito a nossa noção de espaço, como se tivéssemos crescido!

E as sombras desrazoadas que nasciam do vórtice celeste, metiam medo só de ver as faces dos meus à louca e dupla luz da alvorada! Sóis vaporizando o gelo polar da opressão e da ignomínia, sóis cegando o olhar do opressor, sóis nascendo por todo o lado, em todos os olhares. Acode um grande bando de vivos, de todos os lados, congregando rebeldes ao mando insultuoso.

JES NUNO 2
[Pt| rmc| JES deve ser o alvo da resistência democrática. Tudo resto é perca de tempo]
E o ditador sentirá um radical temor, de ver ali um grande e único corpo, que julgara poder secar com uma ordem extrema! Ali estávamos, sim, não um grupo de curiosa amostragem, como o autocrata gostaria de mostrar, mas um corpo inteiro e muito belo, com uma só consciência, um espírito apenas, um único e determinado querer. Ali estávamos, escravos, exigindo não a nossa alforria, mas o fim do seu mando, no acto.

Não há vias fáceis, e todas são possíveis, desde que sãs e depois de expurgada a intolerância. Ignora aqueles que, como tu, têm cabelo na cabeça e unhas nas mãos, assemelhando-se a homens ou a mulheres, mas não o sendo. Ignora chamadas aos deveres contrários à razão da vida. Obedecer é cómoda e cobarde manobra de proto-escravo, pisando as falsas uvas da razão para obter o vinho da cegueira.

Não há mais parança, nem regresso, nem acalmia de propósitos. Se o teu chefe não for o mais humilde no falar e na acção e no aceitar da fala alheia e do agir dos outros, retira-lhe a chefia! Dito isto, passai palavra, ouvido boca, boca ouvido, sempre à coca dos esbirros, para seu engano e teu desfrute.

Não é nossa a palavra, transportamo-la em cadeias de gesto e dedicadas audácias de querer melhor. No fim desta cadeia sem fim, estão as reservas de amor acumuladas durante a grande invernia, geradoras de novos universos.

Um texto de João Pedro Grabato Dias em «A Arca», Edição de Autor, Lourenço Marques,1971, adaptado (com alguma liberdade) por José Fernando.

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