DIREITO À MANIFESTAÇÃO EM TEMPO DE INCERTEZA

DIREITO À MANIFESTAÇÃO EM TEMPO DE INCERTEZA

Temos relatos de jovens presos, uns são deixados em zonas recônditas da cidade, muitos até, antes da própria realização da manifestação são retirados das suas casas as madrugadas.

Muitos dos manifestantes são espancados de forma bruta; encarcerados, com processo no SIC.”

“É preocupante e há a necessidade das autoridades, a nível da província de Malanje perceberem de uma vez por todas que, o direito a manifestação é um direito inviolável.”

Confira a comunicação que o Observatório da Imprensa-Malanje estabeleceu com o sociólogo Caetano Clemente.

Agostinho Quimbanda – Entendemos que o sociólogo conhece bem a realidade desta província e os eventos actuais da arena social e política. Qual é o seu comentário inicial ao nosso tema?

Caetano Clemente – O comentário que se impõe fazer, neste período particular do país, é que o direito à reunião e manifestação é um direito consagrado constitucionalmente pelos princípios estabelecidos pela Lei nº 16/91, a Lei da Reunião e Manifestação. A partir do momento em que se observa esses pressupostos legais, penso que não há nenhuma inconveniência, Nesta altura, por exemplo, várias formações políticas estão a fazer as suas movimentações, as suas manifestações políticas, de acordo a lei das manifestações: sem violência, sem o uso de armas e têm sido avaliadas de forma positiva.

AQ – Olhando a carta magna, a Constituição da República de Angola, no seu artigo 47º, o nº1 diz: “é garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei”. Que análise nos oferece?

CC – Relativamente ao artigo 47º, o nº1, há um aspecto importante que devemos ressaltar: a questão da realização da manifestação. A realização de uma manifestação não depende de qualquer autorização, devendo apenas ser comunicado às autoridades provinciais. Portanto, esses aspectos principais denotam e dão aso aquilo que é o Estado democrático e de direito. As manifestações não devem ser vistas apenas numa perspectiva política. O carnaval é uma forma de manifestação, uma passeata é uma forma de manifestação, a realização de culto ecumênico, ao longo da via pública também é uma forma de manifestação. Infelizmente, em Angola e particularmente em Malanje, quando se trata de manifestações pensa-se apenas na questão político-partidária. Contudo, uma manifestação, do ponto de vista social, é a demonstração da insatisfação de uma determinada política pública. O cidadão tem esta prerrogativa, do ponto de vista constitucional. As autoridades – governos provinciais, polícia deveriam observar este pressuposto, que é constitucional e não carece de nenhuma autorização, bastando apenas que seja comunicada de forma a garantir-se a segurança às pessoas que a realizam, bem como dos transeuntes e de algumas pessoas infiltradas que possam aparecer. É fundamental lembrar que, nos termos da lei, as manifestações não carecem de autorização.

AQ – Como é que olha a actuação da sociedade civil, aqui na província de Malanje?

CC – O movimento cívico em Malanje tem aparecido, dos formais aos mais informais. Refiro-me à Juventude Ecológica de Angola, que faz parte da sociedade civil; o movimento reivindicativo “Resistência Malanjina”, um grupo de jovens que nos últimos anos têm promovido várias manifestações a nível da província e não só no município sede de Malanje, mas também em Cacuso, Kangandala e Kalandula.

O aparecimento do movimento cívico é resultado de um despertar da consciência cívica da juventude e sociedade Malanjina. É positivo, é natural e é fundamental que, num Estado de direito e democrático, existam instituições que reivindicar contra as más políticas públicas do partido no poder. Sem esses movimentos, é raro haver passos de desenvolvimento. A forma como as autoridades administrativas têm actuado em relação ao movimento reivindicativo é que faz com que muitos não apareçam.

AQ – Qual a sua constatação no que diz respeito à actuação da polícia e da administração? Dizia que isso de certa maneira tem feito com que muitos não participam?

CC – Querendo, ou não, instala-se algum sentimento de medo. Nós temos noção da forma como algumas autoridades policiais, por exemplo, actuam e é extremamente preocupante. Temos relatos de jovens presos, uns são deixados em zonas recônditas da cidade. Muitos, até antes da própria realização da manifestação. Há uns dois anos, mais ou menos, aquando da visita do Presidente da República, um jovem que pertence à resistência malanjina, foi retirado da sua residência às quatro da manhã. Ele escrevia relatos no Facebook e tivemos acesso a essas informações.

Assim sendo, a actuação não é das melhores e acaba por enfraquecer a vontade da juventude e dos cidadãos em participar. Aliás, nós estamos a falar na perspectiva da democracia participativa. Fazer parte, por exemplo, dos movimentos cívicos também é garantido do ponto de vista constitucional. Cada um de nós tem de reflectir sobre o que tem sido a actuação das autoridades administrativas, em particular a polícia.

AQ – Registou algum caso, em 2022, no que diz respeito ao direito à manifestação?

CC- Sim, há um de ponto de vista negativo, com respaldo positivo. Do ponto de vista positivo, podemos referir a manifestação espontânea das zungueiras, no dia 8 de julho, depois do anúncio da morte do Ex-Presidente José Eduardo dos Santos. As senhoras, de forma voluntária, manifestaram-se, solidárias com a figura do Ex-Presidente. Começaram na Administração Municipal e depois encaminharam-se quase até ao Governo Provincial. Nesse momento, a polícia saiu e dispersaram as senhoras, o que é negativo. Reprimiram esse sentimento e, infelizmente, há vídeos e áudios que confirmam esta má actuação.  

Não sei com que orientação age a polícia. Ficou a ideia de que as senhoras foram movidas a fazer aquilo, não na perspectiva cívica, mas por influência político-partidária opositora. Não sei se chamaria isso de síndrome…qualquer pessoa tem direito a reclamar, mas associa-se sempre isso a um partido político. É preocupante. Se é um direito constitucional, deveria ser respeitado e quem as instituições também devem respeitar esse direito.

AQ – Acha que a sociedade civil, em Malanje, pode fazer mais ou a actuação da política já os “afogou” e não há grandes acções possíveis para enfrentar a má actuação da polícia?

CC – Infelizmente, posso assegurar-vos que a sociedade civil de Malanje poderia ter feito mais. Porém, como costumo dizer, “Malanje é um quarto e sala. É um circuito fechado” e, do ponto de vista da ordem social, quase todo mundo se conhece e, quer queiramos quer não, a represália, por vezes, não é só física. A nível do trabalho, dos grupos da igreja, até da própria família, há exclusão de quem participa das manifestações públicas. Isso acaba por inviabilizar, embora a vontade cívica não falte. Há dois, três anos, observamos o caso de um grupo de jovens, sem orientação, que se manifestou em frente à Direcção Provincial da Educação, contra a exoneração de uma directora de determinada escola. Os alunos sentiam que a exoneração não era justa e foram protestar e o cargo foi reposto. Isto demonstra como a consciência cívica das pessoas está além da perspectiva de quem governa. Do ponto de vista sociológico, podemos dizer que estamos diante de um conflicto geracional. Do ponto de vista da teoria do conflicto, qual é o efeito? Quem está no poder tem de estar atento às preocupações dos liderados, sob pena de vermos acontecer o que ocorreu, por exemplo, em França, com o movimento dos coletos amarelos. Pela pressão que exerceram, o Presidente Macron teve de desistir das medidas aplicadas. Aqui em Malanje, tivemos exemplos similares. A manifestação, espontânea, dos rapazes teve efeito. Nomearam, infelizmente, um diretor que nem sequer trabalho uma semana e a senhora voltou a desempenhar as suas funções.

AQ – Olhando o teor do artigo 36º, relacionando com o artigo 47º da Constituição da Angola, sobre a salvaguarda da dignidade e da integridade física dos manifestantes, pensa que está em causa aqui a violação do direito cívico?

CC – Exactamente. Aliás, as autoridades que podiam salvaguardar a integridade da constituição, são as que mais claudicam, as que mais violam. Se olharmos, por exemplo a alínea a), do número 3, do artigo 36º, lê-se “que ninguém deve ser sujeito a quaisquer formas de violência por entidades públicas”, isto é, da polícia e das forças de segurança. Ora, muitos dos manifestantes são espancados de forma bruta. Muitos são encarcerados e alguns ainda têm processo no Serviço de Investigação Criminal (SIC).

Há aqui a necessidade das autoridades, a nível da província de Malanje, perceberem que o direito à manifestação é um direito erga omnes. É um direito inviolável porque, além de estar previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, está em outros intrumentos internacionais de Direitos Humanos.

Por outro lado, o Tribunal Constitucional que é parte da garantia da justiça, tem de actuar como garante da justiça e, em algumas situações, não tem tido posições sérias. A própria Assembleia Nacional também não reage. O Gabinete Provincial da Provedoria de Justiça, enquanto intermediária, também não aparece. Volta e meia, o partido MPLA, relata pelos meios de comunicação públicos, publica fotos e vídeos sobre a actuação da polícia, mas com informações que não correspondem à verdade. Os Comandantes Provinciais, deviam ser objectos de formação jurídica, para interpretarem melhor a Lei nº16/91 sobre reunião e manifestação. Tem de haver um melhor entendimento e enquadramento dos artigos, desde 40º ao 47º, que estão todos no âmbito das liberdades e garantias fundamentais.

AQ – Entende que as nossas autoridades policiais e administrativas podiam ser mais proficientes, mais profissionais, mais actuantes? O que estará em causa nas más actuações? O que falta? O problema é ético ou formativo?

CC – Podemos considerar vários aspectos, mas o elemento fundamental é a questão formativa, Em especial em Direitos Humanos. Em 2005, participei de uma formação do MOSAIKO e notei que é importante que existam cada vez mais refrescamentos. Isto deveria ser promovido pela Provedoria de Justiça. Criar seminários dentro das escolas, dos tribunais e da própria Procuradoria Geral da República (PGR). As universidades e alguns institutos privados que têm cursos de Direito, podiam promover secções formativos de âmbito cívico. O que acontece nas manifestações não é invenção de outro mundo. É apenas o gozo de um direito. O que se pretende é que quem está no poder perceba, de forma definitiva, que as políticas públicas não estão a chegar ao bem comum. Eu reclamar sobre água, não é crime; reclamar sobre energia, não é crime; reclamar sobre a degradação do asfalto, não é crime; da falta de medicamentos no hospital, não é crime.

AQ – Quais são os problemas sociais a nível da província de Malanje, que estarão a deixar os jovens descontentes?

CC – A questão da mobilidade nesta província está dificil. Estamos a viver e a observar obras cosméticas, por ocasião do período eleitoral. Não no casco urbano, mas na rua principal vê-se o constrangimento que as pessoas têm. Para ires do mercado municipal, antes demorava-se 1 minuto e meia, agora 10, 20 minutos. Tens de entrar por ali para ter acesso a outros bairros. Também se nota problemas na energia eléctrica. Malanje tem duas barragens, consideradas como das melhores barragens de África, mas o município sede de Malanje carece de energia elétrica e as ruas andam às escuras. A única estrada que tem um mínimo de iluminação, é a rua principal. Se saíres do hospital, até ao SIC, está tudo escuro. Do SIC até à rotunda da vila, está claro. Da rotunda da vila para lá, não há iluminação. Resido num bairro onde, depois das 19h, encontras os portões acorrentados. A escuridão gera insegurança aos moradores. Sobre a água, Malanje está recheado de quatro rios, com um caudal acima da média, mas até no centro da cidade falta água. Aqui onde estamos falta água, só há às 3ª e 6ª feiras.

Portanto, quem sente na pele, quem tem consciência cívica sobre os seus direitos, necessariamente, manifesta-se. Contudo, do ponto de vista da democracia participativa, não temos as famosas Ágoras, espaços de debates da Grécia antiga. Temos um núcleo da Assembleia Nacional Provincial, se fores lá, um deputado pode receber-te, mas, desculpe que eu diga, Malanje não tem deputados. Se tem, é do benefício partidário, não da interpretação em prol do interesse colectivo, em representação do povo. Isso acaba por elevar a consciência de reclamar-se sobre os direitos.

AQ – Como é que olha a arena político-partidária nível da província de Malanje?

CC – Bem, a arena política em Malanje, está como está. Sabemos que temos um Partido-Estado, com o domínio de todas as instituições públicas, com o suporte da comunicação social. Um ou outro partido tem alguma expressão, mas é muito insuficiente do ponto de vista democrático e de direito. Por exemplo, não me consigo identificar com os partidos políticos em Malanje. Obviamente, tenho as minhas paixões políticas, não só enquanto sociólogo, mas enquanto cidadão, mas nalgumas situações não consigo expressar a minha perspectiva política. Se te identificas do lado ‘A’ podes ser conotado de forma pejorativa; se te expressares do lado ‘B’, podes ser excluído da família, da igreja e do emprego. Deveria haver mais de abertura para outros partidos políticos.

AQ – Em trinta segundos, o que é que deseja sublinhar?

CC – Que se respeite mais o direto à manifestação. Que as pessoas possam exercer os seus direitos cívicos, como em qualquer sociedade democrática e não olhem os jovens como arruaceiros, porque muitos deles, que fazem parte do movimento “Resistência Malanjina”, são licenciados, em Sociologia, em Direito, em Matemática. Há muitos jovens bons aí, com acções de bem. Por exemplo, o Manu Moma tem um movimento de literatura que promove feiras de livros, em que já aderi algumas vezes e foi positivo, num bairro (Carreira de tiro) onde não tem nenhuma escola do ensino médio público.

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