ESCÁRNIO NADA IRÓNICO

ESCÁRNIO NADA IRÓNICO

Luzia Moniz* ǁ O Escárnio” de Mbomba Mudiatela, uma novela com nuances de ensaio, em que o autor recorre abundantemente a conceitos filosóficos e de outras ciências do comportamento humano, retrata um regime ditatorial bárbaro africano que facilmente pode ser identificado como o angolano.

A história política, de certa forma autobiográfica, tem como personagem central um intelectual, académico, activista dos Direitos Humanos, o professor Verax Yan, cuja trajectória se confunde com o próprio percurso de vida de Domingos da Cruz que assina esta obra com o pseudónimo Mbomba Mudiatela.

A obra narra a prepotência e a barbaridade de um regime completamente desumanizado onde a banalização da morte faz parte do quotidiano e que atinge o orgasmo com o sofrimento dos seus habitantes.

Trata-se do relato de um país miserável, inviável a médio e longo prazo, em que as pessoas vivem em condições deploráveis e que apresenta todas as características das ditaduras, nomeadamente a impreparação generalizada, a desorganização organizada da sociedade, a prepotência de generais (militares) como regra, falta de liberdades de circulação e fixação e meios de comunicação social capturados e transformados em caixas de ressonância e de propaganda do regime.

A difícil e clandestina luta do professor Verax Yan contra a ditadura da ficcionada República Democrática de Matobu, remete-nos para o célebre processo dos activistas angolanos conhecidos por 15+2 em que Domingos da Cruz era um dos destacados membros.

O autor usa a luta de Verax para denunciar um nauseabundo regime, emprestando-lhe a realidade de ditaduras africanas e relacionando diretamente o atraso do país em termos de desenvolvimento humano, económico e social com o regime ditatorial.

Cheio de ironia e sarcasmo, para confirmar o referido atraso, o livro mostra variáveis como a elevadíssima taxa de mortalidade (“Em cinco horas já tinham entrado duzentos e três mortos” na morgue), pág. 70, ou a sobrelotação de salas de aulas com “quinhentos estudantes” universitários, pág. 26.

A ironia é realçada nos nomes quer do país, “República Democrática” também considerada “República da Felicidade” e de instituições e serviços locais como “Departamento do Crime Teórico” “Serviços de Investigação de Justos e Virtuosos” e “Prisão Anjos da Morte”.

Numa ditadura perfeita africana, o culto ao obscurantismo, a discriminação e o preconceito são usados como elementos de subjugação e distração das pessoas e, neste caso, Matobu não foge à regra com o esquartejamento e venda de corpo de albino como “viabilizador da prosperidade material” (pag.24) ou o recurso a tratamentos tradicionais em substituição da medicina convencional, sublinhado desta forma: “Vamos à velha Ngalaxi ela sabe tratar tudo com as nossas ervas”, pág. 70.

“O Escárnio” transporta-nos para o belo romance “O Ocaso do Pirilampo” do escritor e crítico de arte angolano Adriano Mixinge, uma denúncia do absolutismo do líder político de uma sociedade igualmente ficcionada, mas que pelas suas características também é facilmente identificada com Angola.

Tal como na citada obra de Adriano Mixinge, o autor de “O Escárnio” de igual modo aposta de forma mordaz na denúncia de absolutistas e regimes ditatoriais travestidos de Democracia.

*Socióloga e Jornalista.

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