Gabriel Tchingandu: “No jornalismo angolano falar de ética e deontologia é utopia”

Gabriel Tchingandu: “No jornalismo angolano falar de ética e deontologia é utopia”

«Aquilo que prevalece no jornalismo angolano vem de muita gente estranha a esta actividade. Muitos dos que fizeram parte da actividade jornalística vieram da Segurança do Estado e, até hoje, as salas de redacção estão infestadas desse tipo de gente.»

Domingos da Cruz (DC) – Teremos connosco o professor Gabriel Tchingandu. O professor Gabriel dedica-se à área da ciência da comunicação, tendo escrito uma obra com o título “Ética profissional de jornalismo”. Falaremos sobre a ética profissional na comunicação e no exercício do jornalismo. O professor tem uma obra dedicada a isto, focada também no contexto angolano, pelo que nos parece ser a pessoa mais adequada para se pronunciar sobre este assunto.

Professor Gabriel, qual o seu primeiro comentário sobre esta questão, que me parece relevantíssima, para a construção de uma sociedade verdadeiramente aberta, como diria Karl Popper?

Gabriel Tchingandu (GT) – De facto, é um assunto pertinente e transversal a todas as acções e actividades humanas, tal como a área da comunicação social e especialmente no jornalismo, porque nessa área não dependemos exclusivamente dos aspectos técnicos ou científicos para que o produto final esteja de facto a um nível adequado para o consumo, para a saúde e para a mentalidade das pessoas. Precisamos ter em conta os aspectos ligados à moral, ética e deontologia profissional que, infelizmente, muitas vezes são ignorados ou pisoteados pelos próprios profissionais.

DC – De uma forma geral, a ética supõe alguns fundamentos, e sobre esta questão o professor também fez uma abordagem no seu livro. Gostaria que falasse um pouco sobre os fundamentos éticos no jornalismo.

GT – Nas actividades humanas, sobretudo nas áreas de comunicação social e jornalismo, precisamos de fundamentos morais e éticos sob pena das pessoas ignorarem as normas e as regras, porque elas são simplesmente obrigatórias no âmbito da consciência. Como sabemos, a moral depende muito da cultura e da educação, esses são os aspectos fundamentais sobre os quais se enraízam e se baseiam naturalmente os costumes. É sobre esses bons costumes que a ética reflecte e, no caso específico, a deontologia do jornalismo. Os fundamentos económicos são quase sempre considerados nas profissões, e também notamos a sua presença na área da comunicação social, sobretudo no jornalismo em que muitos alegam ser o factor decisivo de produção. Isto porque essa atividade está vinculada a uma empresa que visa o lucro, portanto, esse prisma económico é que deve orientar toda a ação dos profissionais ligados a esta instituição. Nós sabemos que, do ponto de vista profissional, os aspectos científicos e tecnológicos não resolvem tudo.

Costumo sempre apresentar um exemplo do sector do desporto. Não é o facto de alguém ter um clube desportivo que vai fazer o que bem entender, só pelo facto de visar o lucro, os ganhos económicos. Tem a obrigação de cumprir os princípios, as regras que orientam esta actividade desportiva e, até, considerar os aspectos do fair play. Portanto, para que a pessoa possa singrar no desporto, deve respeitar as regras de jogo. Esse exemplo vale também para a área da comunicação. Não é o facto de as pessoas visarem o lucro na comunicação social, no jornalismo, que devem pura e simplesmente ignorar as normas fundamentais que regem essa actividade. Os aspectos de lucro, os aspectos económicos, agregados muitas vezes para evitar o violar a ética e deontologia, devem ser excluídos.

Para aqueles que querem de facto deixar  um bom nome, fazer história no jornalismo, aconselhamos que, não só se munam de técnicas profissionais, mas procurem aplicar a ética e a deontologia profissional na sua actividade jornalística diária

Depois, temos o fundamento antropológico que é, do nosso ponto de vista, o mais racional e mais adequado porque visa o bem-estar do ser humano acima de tudo, no caso concreto, a sua vida, aquilo que o dignifica. No exercício de um jornalismo que vá para além das regras técnicas do próprio jornalismo, e da própria actividade económica, devemos acima de tudo servir o homem e fazer tudo aquilo que o possa de facto enaltecer, dignificar como mulher, como homem, num determinado espaço, num determinado tempo. Nós só podemos fazer isso se conhecermos muito bem essa pessoa, esse ser humano, as suas valências, as suas debilidades, as suas vontades e, com ele, buscarmos o que é melhor para si. Portanto, esse fundamento antropológico, quanto a nós, é aquele que deve ser a bússola orientadora nas actividades jornalísticas que se prezem, que visem, digamos assim, a grande qualidade profissional.

Fala-se também do fundamento dialéctico, que é o paradigma que se baseia no diálogo, na busca de consensos, numa determinada comunidade, numa determinada sociedade, numa área específica de actividade humana.  No contexto da democracia, normalmente, fala-se muito de que os fundamentos não fazem sentidos. Nesta perspectiva, o fundamento antropológico pode ser interpretado como uma mera mitologia ou ideologia. Nestes contextos, o mais importante são os consensos, e esses consensos quando são alcançado entre os pares da profissão, melhor, servindo assim de indicadores de comportamento para essas mesmas pessoas e profissionais.

Quanto a nós, na área da comunicação e do jornalismo, a busca de consensos, do diálogo, também é uma referência a ter-se em conta. Aliás, a essência da própria comunicação social consiste, naturalmente, em dialogar, um dialogar que pressupõe ouvir o contraditório, ouvir versões, não só diferentes, mas muitas vezes até opostas e contraditórias e chegar-se ao consenso. Se não for possível o consenso, pelo menos, procurar construir compromissos que, eventualmente, ajudem as partes a chegar ao objectivo e a soluções.

DC – Professor, há um aspecto importante ao qual gostaria de voltar, que tem a ver com o que eu prefiro chamar de fundamento económico como não sendo um fundamento, porque na verdade, do ponto de vista conceptual, nem sei se quer se fará muito sentido, sobretudo no plano metafísico. Na verdade, foi uma tentativa de usarem o poder económico enquanto instrumento para amordaçar a imprensa, é a grande verdade, tal como o professor acabou de dizer. Esta dimensão não colhe porque, na prática, demonstra que o poder económico tem sido um perigo para o funcionamento de uma imprensa verdadeiramente livre em qualquer parte do mundo.

GT – Exacto.

DC – Professor, que comentário gostaria de fazer relativamente à aplicação do fundamento antropológico no contexto angolano? Em termos práticos, como é que nós estamos no âmbito do respeito dessas normas deontológicas?

GT – Aqui, de facto, estamos perante uma realidade desafiadora. Em Angola, temos as nossas bases morais, que se fundamentam sobretudo na cultura Bantu e esta baseia-se no respeito do ser/estar da pessoa humana. Infelizmente, não são essas matrizes que prevalecem na acção diária, sobretudo na actualidade de muitos angolanos. Para nós, muitas vezes, o que vem de fora, sobretudo do ocidente, é muita das vezes os aspectos mais supérfluos, mais nocivos, e é o que consideramos como fundamento, como o correcto, como bom nas nossas funções e acções quotidianas e profissionais. Esquecemo-nos, e às vezes até desprezamos, as nossas bases, as nossas raízes culturais Bantu, por isso é que, nesse aspecto, somos um pouco esquizofrénicos morais. Não estamos integrados nem na cultura ocidental, nem nos valores dos nossos ancestrais. É uma situação muito penosa no geral, e isso também se constata na actividade jornalística em que muito dos profissionais não se posicionam, nem se orientam como seres africanos, angolanos e vão tentando agarrar-se às matrizes culturais ocidentais que, muitas vezes, também não conseguem encarnar o essencial dessas culturas. Por isso notamos, por exemplo, que o aspecto da moral não é muito bem visto nem praticado, como seria de esperar.

Se quisermos recuar um pouco no tempo, notamos ainda resquícios do comunismo e do marxismo. Nesta época, tudo que tivesse a ver com a ética, a moral, era pura e simplesmente menosprezado, ignorado. São essas pessoas que nas suas escolas, especificamente do jornalismo, não tendo tido a ética e a deontologia como prismas fundamentais da estrutura jornalística, hoje, são pessoas de referência, são os gatekeepers. Temos notado um total desprezo da configuração da moral, da ética e deontologia nesta profissão em Angola. Prova disso é que, até agora, não conseguimos construir um código deontológico, enquanto que todos os outros países da lusofonia já têm um regulamento deontológico próprio.

DC – Isso revela o desprezo que se tem pela questão ética, não é?

GT – Naturalmente, porque se as pessoas sentissem a necessidade de trabalhar profissionalmente com ética e deontologia, já teríamos há muito tempo um domínio, um código de ética e deontologia, mas eu noto também que aquilo que prevalece no jornalismo angolano vem de muita gente estranha a esta actividade. Por exemplo, na nossa história recente, muitos dos que fizeram parte da actividade jornalística vieram de outras áreas de formação, eram militares, agentes da Segurança do Estado e, até hoje, as salas de redacção estão infestadas desse tipo de gente. Muitas vezes são eles que decidem, que têm, digamos assim, o queijo e a faca na mão. Aqueles que estudaram, que conhecem as técnicas do jornalismo são, pura e simplesmente, colocados de lado e por isso pisoteiam as normas fundamentais do jornalismo, já para não falar da ética e deontologia. No meio dessa confusão toda, fica difícil separar as águas.

foto/arquivo do autor.

Olha, nem mesmo em relação à regulamentação, daquilo que seria a lei magna de comunicação social em Angola se consegue chegar a um consenso. Até mesmo em relação à própria lei as pessoas são avessas. Isso significa, portanto, que, na prática, os jornalistas deverão seguir as chamadas “ordens superiores” que, infelizmente, é uma regra na prática jornalística angolana e nós nunca sabemos quem é realmente este senhor “ordem superior” e quais são essas ordens, onde estão escritas, como devem ser regulamentadas e seguidas, mas sabemos que são aquelas que prevalecem no dia-a-dia do jornalismo angolano, infelizmente.

Nós sabemos que, do ponto de vista profissional, os aspectos científicos e tecnológicos não resolvem tudo.

DC – Sendo certo que há um desprezo, mais ou menos generalizado, da questão ética no contexto de Angola, e que isso tem repercussão no exercício do jornalismo tal como acabou de referir, olhando para os órgãos que estão sobre o controlo do Estado, que em Angola chamam, erradamente, de órgãos públicos, se fossem públicos prestariam serviço ao público com ética, mas há também órgãos privados que estão sobre controlo de agentes do poder.  Assim, a minha questão é a seguinte. Estes mesmos jornalistas, muitos já sabemos o que são de facto, terão dado uma contribuição negativa para o estado actual em que o país se encontra? Estamos praticamente afundados e este grupo sempre apoiou. Acho que este é o momento de responsabilizar essa classe, a que chamamos genericamente jornalista, mas nós sabemos que há de tudo e mais alguma coisa.  Eles diziam, por exemplo, que o país estava a ser bem governado, que o país era dos melhores de África, que era um milagre, nos mais variados campos, mas hoje vimos que, na verdade, não somos grande coisa no contexto das nações.

Estes jornalistas devem ser responsabilizados por isso?

GT – De facto, isso é feito porque, infelizmente, como dizíamos, o jornalismo em Angola está infestado de muita gente que de jornalismo não entende nada. Como dizia e muito bem, é a ocasião de começarmos a separar as águas. Entretanto, há pessoas com intenção de fazer com que os jornalistas não sigam de facto aquilo que aprenderam nas academias porque, segundo eles, isso seria contraproducente aos seus intentos. Esses agentes, que atrapalham a actividade jornalística têm objectivos muito claros, eles visam sobretudo a propaganda, a manipulação das mentes. Ultimamente, tenho dito que eles trabalham mais os aspectos de “comunicação institucional”, que é um tipo de comunicação com estratégias que, até a própria comunicação institucional moderna já ultrapassou, esses são os objectivos deles. Infelizmente estão connosco à porta e eles não entram na linha ética, nem deixam os autênticos profissionais entrar, acabando por atrapalhar, e de que maneira, o jornalismo em Angola.

Os impostores do jornalismo angolano continuam, infelizmente, a ter sucesso. Os jornalistas não se conseguem reencontrar nas várias associações, nos organismos que se criam, e consequentemente os vários projectos e iniciativas dificilmente vão adiante.

A minha esperança, era de que muitos desses jovens, que estão a sair agora das academias e há um número significativo, fizesse a diferença, mas infelizmente os indicadores entre os formados e a sua redistribuição nos órgãos de comunicação social, sobretudo públicos, são desanimadores, por isso não se fazem sentir.

DC – Eles continuam a contratar parentes, amigos…

GT – Para não falar desse desfasamento de critérios, no momento de contratação das pessoas desses órgãos, tudo isso não está regulamentado! Quem estiver no comando, com a faca e o queijo na mão, faz o que bem entender, portanto, é uma desordem orientada. Veja, nem o próprio Estado consegue regulamentar essa actividade ao seu contento, pelo menos nós diríamos temos a lei, estamos descontentes, mas a lei está lá. Infelizmente, nem isso conseguimos.

O que sabemos, até agora, é que a Lei da Imprensa não está regulamentada, portanto não pode ser uma referência prática. Penso que interessa a alguém com poder que as coisas se mantenham assim e, em termos pragmático, os jornalistas estão entregues à sua sorte, entregues aos caprichos dos patrões que fazem deles o que bem entendem. Os jornalistas, com medo de serem expulsos, ou serem encaminhados à comissão disciplinar e coisas do género, reagem com os mecanismos à sua disposição como: a autocensura, e outras formas de proteção do seu pão, para continuarem a sobreviver.

Não podemos exigir o heroísmo a todos, os jornalistas são pessoas normais e comuns, e estas são coisas que não dependem exclusivamente deles. De facto, vejo uma grande confusão em toda esta situação e, neste contexto, falar de ética e deontologia profissional é uma utopia. Mas, mesmo nesse caos, devemos continuar a falar sobre o que é correcto, o que é ideal, desejável e respeitável para, no meio desta confusão, encontrarmos caminhos, encontrarmos saídas, porque há esperança e é possível, sim. Eu penso que, depois dessa geração, talvez, os jovens — que estão a sair agora das academias — venham fazer diferença, se os deixarem de facto trabalhar.

DC – Professor Gabriel, estes que referiu, dizendo que têm sucesso, são tidos como referências num contexto de anormalidade. Ou seja, eles só são referência porque se está num país anormal. Nas sociedades onde de facto os códigos deontológicos e a questão ética são tidos em conta, não seriam referências coisíssima nenhuma, mas a grande verdade é que não passam de referências sob o patrocínio político, são um instrumento ao serviço do próprio de poder porque são, na verdade, ferramentas para manter o fim último: o poder.

GT – Infelizmente, essa é a realidade em que vivemos. Tenho dito que o sector jornalístico está açambarcado por outro poder, o poder político e esse tem feito das suas na comunicação social. Esses tais gurus, esses que têm sucesso e que deveriam ser a coluna vertebral do jornalismo e dizer “a casa é nossa e aqui mandamos nós”, infelizmente, deixam-se instrumentalizar simplesmente por causa das regalias que lhes dão, que lhes prometem. Eles sabem que se assim não fizerem caem, não só no descrédito, mas também na miséria, e, infelizmente, poucos têm a ousadia de fazer finca-pé e mostrar como é que as coisas são feitas. Não encontrando essas pessoas que façam diferença, em Angola, o jornalismo continua refém da política. Desde a nossa independência, o jornalista não consegue ser autónomo nas suas actividades. Eu pergunto sempre aos meus estudantes se, por exemplo, já notaram um jornalista a intrometer-se na política e a dizer como é que se deve fazer política a um governador provincial? Isso não cabe na cabeça de ninguém, mas o contrário achamos que é normal. Portanto, nós devemos fazer-nos respeitar, e isso passa pela formação, pelo profissionalismo e, sobretudo, pela vontade e a coragem de cumprir as práticas deontológicas no jornalismo angolano.

Não sei como é que essas pessoas vão olhar para si na história. Elas vão estar do pior lado da história. Eu penso que depois de uma certa idade, numa certa caminhada, as pessoas deviam repensar um pouco mais nos seus posicionamentos, pensar num jornalismo isento que possa de facto servir Angola e, não servir somente os interesses de um determinado partido ou de um determinado grupo, sabendo discernir que, isto é propaganda, isto é publicidade, isto é relação pública e que, portanto, não tem a ver com o jornalismo propriamente dito.

DC – Recentemente, Jean Michael Mabeko Tali, professor na Howard University, dos Estados Unidos, disse que “em Angola as pessoas falam à toa.” É exactamente esta expressão que ele utilizou num comentário que fez. Sirvo-me disto para colocar a seguinte questão: Tendo em conta o tipo de jornalismo que se faz, o que é que o professor acha da qualidade da nossa esfera pública? Falo de esfera pública como a concebeu Habermas, no sentido de opinião pública, de debate público.

GT – Bem, em termos de opinião pública, aqui estamos num quadro muito diferente. Eu penso que, em princípio, merece um estudo de caso, porque nós sabemos que na opinião pública cruzam-se três variáveis: a agenda política, a agenda da sociedade e a agenda dos próprios media, e em Angola não conseguimos ver isso na prática. Como resultado desse entrosamento, só tem prevalecido a agenda política sobretudo nos media públicos, porque são aqueles que contam, que estão presentes em todas as províncias do país, têm mais meios, mais profissionais, embora se deixem guiar e reger mais, e quase exclusivamente, pela agenda política. Essa agenda do poder está infestada de propaganda, de marketing, de publicidade e por aí adiante, naturalmente vai distorcendo a realidade dos factos, a realidade angolana como ela é. É isso que, infelizmente, se vende no país e que se tenta também mostrar lá fora, e as pessoas atentas descobrem  que isso é banha, que isso não é a realidade de Angola; que isso não é, digamos assim, aquilo que realmente é no terreno dos factos.

DC – Mas, até essa agenda que eles transportam para a imprensa e com a qual tentam manipular toda uma sociedade, há quem diga que é bastante artesanal, atrasada semelhante ao debate feito na Europa do Leste, na Cuba dos anos 60 e 70. A artesanalidade a que me refiro, é mesmo no sentido da falta de refinamento intelectual e estético, onde se percebe que os intervenientes são pessoas muito desprovidas de substâncias, do ponto de vista do conhecimento.

GT – De facto notamos isso em Angola. Já dissemos que prevalece o poder político quase em tudo, infelizmente, e as decisões políticas desse poder não se têm baseado em estudos e na realidade concreta de Angola. Normalmente, noutras paragens, faz-se primeiro o levantamento de dados no terreno e toma-se as decisões, apoiados nestas informações isentas. Aqui, fazem as coisas mais ou menos de acordo com a vontade de quem tem o poder naquele sector, naquela área  e depois notamos que, o que se diz não é o que se faz. Muitos deles até se queixam de terem bonitos programas, bonitos projectos, mas depois não conseguirem implementar, nem ter os resultados esperados.

Nas eleições de 2008 e 2012, por exemplo, o partido no poder, nas vésperas das eleições foi ao Brasil, a Portugal, pegaram nos marketeiros políticos famosos de lá e trouxeram-nos para cá, fizeram os seus estudos para o partido e, em função desses estudos, viram como se posicionar, como o partido pode procurar ganhar votos. Deviam, portanto, continuar com essa lógica nas políticas públicas, não só para projectos eleitoralistas, mas sobretudo no aspecto da própria governação. Mesmo em relação aos profissionais que vieram trabalhar para o partido, recolheram dados científicos, fizeram estudos relevantes e quando os colocavam na mesa, muitas vezes, as decisões do partido pura e simplesmente ignoravam esses dados, faziam olhos grossos e avançavam à maneira deles. Por estas razões é que ainda vamos ver uma governação a trabalhar de forma muito artesanal e isso torna-se quase uma referência para todos os outros sectores. 

foto/OI.

Para mim, tudo isso acontece ainda hoje em Angola porque não há concorrência real, concreta e transparente no sector político e jornalístico. No dia em que tivermos alternância real, essa concorrência, mesmo para o poder político, será muito salutar e eficaz para protesto, para a mudança de mentalidades ou moralização da sociedade, para fazermos bem e melhor as coisas aqui em Angola. Depois, a partir dali, vamos então transmitir aos sectores empresariais, académicos e outros, incluindo o próprio jornalismo. Por arrasto, iríamos conseguir muitas coisas, por isso até estava a ver com bons olhos a realização das eleições autárquicas, cujo sucesso para as populações vai depender muito da forma como se vai definir os aspectos da disputa e concorrência política. Enquanto não tivermos normas claras e transparentes, que permitam às pessoas competir consciente e profissionalmente, muitas coisas vão continuar como estão e depois não sei se dali tiraremos resultados eficazes.

DC – Professor Gabriel estamos a chegar ao fim, um comentário sobre algo estranho. Existem, por exemplo, jornalistas em Angola que para escrever determinada matéria recebem dinheiro, existem jornalistas que têm salário na empresa onde trabalham, mas têm também um salário do ministério para escrever matérias favoráveis ao ministro A ou B. Eu não sei se o professor tem dados sobre estes factos, inclusive jornalistas muito conhecidos em Angola já escreveram artigos denunciando isto. Qual é o comentário que se oferece fazer sobre isso?

O jornalismo em Angola está infestado de muita gente que de jornalismo não entende nada.

GT – Sim, nós conhecemos essa realidade de promiscuidade profissional, é esse o termo. Como podemos resolver a situação? Com uma lei clara, a distinguir quem é quem na comunicação, a proibir e a evitar situações do género e tendo, também, um código de ética para os profissionais no sector evitar-se-ia situações de género. As desculpas que se têm dado é que “saco vazio não fica em pé”, o salário não compensa, enfim, não justificam essa promiscuidade, até porque, temos notado, aqueles que estão envolvidos nestas práticas são os mais privilegiados em termos de bens materiais, portanto não é a escassez de bens que os leva a fazer isto. Eles aproveitam-se desta confusão, desta falta de regulamentação e vão fazendo, digamos assim, das suas com todo o estrago que isso tem causado na qualidade jornalística. Está difícil e muito mais porque já sabemos que os patrões, os detentores desses órgãos também não são exemplares em termos de cumprimento da lei e da ética, e mais os tais amiguismos e todos as práticas de corrupção, que naturalmente não abonam ao bom nome do jornalista.

Para aqueles que querem de facto deixar  um bom nome, fazer história no jornalismo, aconselhamos que, não só se munam de técnicas profissionais, mas procurem aplicar a ética e a deontologia profissional na sua actividade jornalística diária, porque desta forma serão um ponto de referência e os seus nomes não se apagarão na história do jornalismo angolano, e, o mais importante, estarão de facto a servir os angolanos que mais precisam.

Quero também concluir dizendo que, em caso de relatos sobre violações, a deontologia jornalística orienta que não se deve revelar a identidade da vítima para que esta não sofra represálias, discriminação ou bullying. Nos casos de crimes não comprovados, não se deve revelar a identidade dos suspeitos ou arguidos, e tentar evitar fazer narrações macabras. Como sabemos esses pormenores, muitas vezes também indecorosos, não informam mais, por isso devem ser evitados. Já para não falar daqueles casos de mistura intencional de propaganda e publicidade com o jornalismo que transforma os tóxicos mentais produzidos, em venenos para o público consumidor.

DC – Professor, agradeço pela disponibilidade, pela rica conversa, espero que esteja disponível noutras ocasiões.

GT – Muito obrigada Domingos da Cruz.

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1 Comentário

  1. Narciso Pedro

    Nota 10. É preciso trabalharmos para mudar esse quadro. Apesar que o cenário não é de todo favorável, sem autonomia financeira muitos órgãos de comunicação e jornalistas são “obrigados” a violarem a ética de forma escandalosa, tudo para garantir o pão e alimentar os caprichos que o salário não cobrem. É hora da classe pensar, o país precisa de jornalistas sérios.

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