Nelson Domingos: “Estamos muito aquém daquilo que deveríamos considerar universidade”

Nelson Domingos: “Estamos muito aquém daquilo que deveríamos considerar universidade”
      PROJECTO-FINAL

O Observatório da Imprensa e da Comunicação/OI, ouviu o Professor Nelson Domingos, sobre três tópicos essenciais para  a vida de uma sociedade: a liberdade de pensamento, a liberdade científica, a esfera pública e questões conexas. Ao dissecar estas questões, defendeu a tese segundo a qual, embora se possa fazer abordagens separadas, estas questões estão intimamente relacionadas: «sem liberdade de pensamento e sem liberdade intelectual não é possível haver qualidade no debate…»

(…)

Nelson Domingos – Muito obrigado pelo convite. É uma honra ter a oportunidade de partilhar esta reflexão em torno da liberdade de pensamento, da liberdade científica e sobre a esfera pública.

Agostinho Gayeta – Muito bem professor, depois destas pequenas palavras introdutórias, vale a pena fazer a referência de que esta nossa conversa vai estar voltada a três assuntos fundamentais ligados a liberdade: a liberdade de pensamento, a liberdade científica e também a esfera pública. Em jeito de introdução, que comentários lhe apetece fazer a propósito destes três eixos que vão dominar essencialmente a nossa conversa aqui neste espaço?

Nelson Domingos Antes de mais é imperativo falar sobre a liberdade de pensamento como sendo a condição para o exercício das demais liberdades, entendendo a liberdade de pensamento enquanto aquela actividade intelectual, aquela actividade racional, isenta de qualquer tipo de restrição. Somente a partir da existência da liberdade de pensamento é possível existir a própria liberdade científica. Somente quando há a liberdade para exercer o pensamento é possível se falar em liberdade intelectual. Consequentemente, somente é possível falar em esfera pública quando há cidadãos que exercem o direito à liberdade de pensamento.

AG – De uma forma muito particular, professor Nelson, que comentário lhe apetece fazer, particularmente sobre a liberdade de pensamento. Quais são os fundamentos da liberdade de pensamento?

ND – Antes de mais, a expressão liberdade de pensamento é uma conjugação de duas palavras: liberdade e pensamento. Primeiro, a liberdade enquanto autodeterminação, enquanto ausência de limites. Segundo, o pensamento, que está ligado a capacidade racional, a actividade intelectual. Em outras palavras, liberdade de pensamento é aquela actividade intelectual, racional, isenta de qualquer tipo de limites. Este tipo de liberdade é inata, isto é, já nasce com os indivíduos. Cabe apenas ao Estado positivar esta liberdade, garantir o seu exercício e promove-la.

AG Na perspectiva cultural é possível no âmbito da cultura Bantu por exemplo, classificar o Onjango ou Tchota como um espaço de agenciamento para o exercício das liberdades, ou seja, da liberdade de pensamento? Como é que olha para nossas particularidades do ponto de vista da nossa cultura?

ND Bem, nós temos que fazer uma análise em duas perspectivas. Se tivermos que comparar o Tchota e o Onjango como equiparados aos modelos parlamentares e dos Tribunais ocidentais, poderíamos dizer que é, um espaço exactamente para debates, para julgamentos e para reflexão. No entanto, o exercício da liberdade de expressão e de pensamento não pode estar adstrito a certos lugares de excelência, pois, o pensamento manifesta-se em qualquer espaço.

AG Ou seja, não há limites para a liberdade, para o exercício da liberdade de pensamento?

ND – Bem, do ponto de vista legal, tanto a liberdade de pensamento, quanto a liberdade de expressão podem se deparar com limites legais, como por exemplo, o chamado segredo de justiça, o segredo de Estado, e toda a vez que o exercício da liberdade de pensamento e liberdade de expressão afecta directamente a outrem no que diz respeito a sua honra e dignidade.

AG – E este limite até que ponto pode ser aceitável se olharmos para aquilo que é a actividade profissional dos jornalistas. Que é justamente muitas vezes beliscado por aquilo que é o segredo de justiça, mas que por outro lado tem a missão [o jornalista] de proporcionar a informação ao público, e depara-se com duas situações, primeiro o dever de informação e depois as limitações impostas pela lei, como é que olha para esta questão em particular.

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ND Bem, este é um dos maiores dilemas que provavelmente os jornalistas têm. De um lado o cidadão tem o direito à informação, do outro lado o jornalista que tem o direito de informar. No entanto, o direito de informar e de ser informado não pode violar os direitos de outrem, como por exemplo o bom nome, a honra e a dignidade da pessoa humana. Assim como o segredo de justiça, o jornalista deve orientar-se também pelo chamado sigilo profissional.

AG – Mas este sigilo profissional muitas vezes põem em causa aquilo que é o direito à liberdade de expressão ou de informar se tivermos que nos cingir naquilo que é a actividade profissional dos jornalistas?

ND Sem dúvida, como eu mencionei este é um dos maiores dilemas que existe. O que deve prevalecer em regra é o equilibrio entre o direito de informar e ser informado e o direito que deve ser salvaguardado em relação a honra e o bom nome daquela pessoa que está sendo objecto da informação.

 “As múltiplas misérias interferem na liberdade de pensamento…”

AG – Professor Nelson Domingos há outra questão que gostaríamos de colocar. As condições podem eventualmente, digamos limitar ou não a liberdade de pensamento? Estamos a falar das condições políticas, sociais e condições económicas, estas podem ou não condicionar o exercício da liberdade de pensamento?

ND – Sem dúvidas. Por isso temos situações em que certos governantes optam em desenhar um sistema político e um sistema social que condicionam os seus cidadãos. Colocam-nos ou atiram-nos  a uma situação de indigência em que ocupam-se tão-somente com questões banais e provavelmente com a sua alimentação, a fim de evitar que se coloquem em uma situação de reflexão, àquilo a que os Gregos costumavam chamar de otium cum dignitate,  o momento livre que o cidadão tem para reflectir sobre a sua situação política, social e económica. Por esta razão é comum determinados governantes fazerem com que os cidadãos não tenham este momento livre para reflexão e para a crítica sobre o que está diante si.

AG – Ou seja, as questões políticas, as questões económicas e as questões sociais interferem no sentido de pôr condicionalismos no exercício de pensamento, qual deve ser então a forma mais eficaz para poder ultrapassar esta situação? Olhando para a realidade angolana, encontramos políticos que têm vontade em falar, mas por questões políticas de ordens estatutárias limitam o seu pensamento, a sua liberdade de pensamento. Qual é o seu comentário a propósito?

ND – Bem, o nosso contexto é bem delicado. Muito delicado porque nós estamos em um país, com instituições que estão armadilhadas. Armadilhadas em que sentido? Os cidadãos tornam-se condicionados para obter determinados benefícios, isto é, se o cidadão questionar, determinada situação com que se depare e identifique que esta questão é ilegal,  ao denunciar pode sofrer retaliações. De que forma se pode superar isto? Eu acho que uma das questões fundamentais passa pela educação para a cidadania. A educação para a cidadania vai possibilitar que o individuo não enxergue apenas o seu próprio interesse. Estaria de alguma forma habilitado para olhar para um projecto de nação e não apenas para questões umbilicais.

AG – Ou seja é uma questão que passa também por uma educação e quando falamos de educação, leva-nos a falar de cientificidade. Agora gostaria que passasse para uma outra perspectiva desta nossa abordagem que tem que ver com a liberdade científica. É possível distinguir liberdade científica de liberdade académica?

ND Sim … sim, é possível sim. A liberdade académica refere-se à liberdade de ensinar, à liberdade de aprender, à liberdade de investigar e divulgar novos conhecimentos. Geralmente está muita adestrita ao espaço de ensino. No entanto, a liberdade científica está vinculada à liberdade de investigar, àquela liberdade de produzir conhecimento científico e divulgar este conhecimento científico.

AG – E olhando para aquilo que é a nossa realidade como é que olha e que relação pode estabelecer entre a liberdade científica e a liberdade de expressão? Já há esta liberdade cá em Angola?

NDBem, eu tenho muita dificuldade em acreditar que nós já tenhamos estas liberdades. Por que razão? Em grande parte das nossas Instituições de Ensino Superior há sempre alguém a vigiar o que o professor diz, para depois reportar aos seus superiores. Por melhor que seja o professor, certamente estará coartado no sentido de apresentar a análise dos factos como eles realmente são. O que nós temos é um conjunto de professores que em grande medida se ocupam apenas em reproduzir o conhecimento e informações contidas nos livros e deixam de fazer uma análise e enquadramento à nossa realidade, sob pena de sofrerem algum tipo de represália. Eu falo porque de facto isto existe.

AG – Aí o Professor Nelson remete-nos a reflexão que apresentou há pouco quando falávamos sobre a liberdade de pensamento. Este pode ser considerado mais um dos condicionalismos para o próprio exercício da liberdade de pensamento?

ND – Sem dúvidas… Olhemos nas duas perspectivas. Na perspectiva dos estudantes, a medida que o estudante não é formado para pensar, não é formado para criar, não é formado para criticar, ele é simplesmente instrumentalizado, ele é “emburrecido”, ele é partidarizado e dificilmente poderá produzir o pensamento de forma autónoma. Do lado dos professores, em regra, estão muito mais preocupados, em certa medida em função do contexto que são colocados, em reproduzir determinada informação e evitar que sofram qualquer tipo de represália.

AG – Nós temos situações do género a acontecerem nas universidades? Com estas situações, uma delas o professor acabou de referir, podemos dizer que existe condições ou existe liberdade de expressão a nível das academias, se é de facto que podemos chamá-las de academia, se não há liberdade de expressão?

ND – A existência da academia pressupõe a existência de um conjunto de elementos materiais e condições de facto. Quem tiver a oportunidade de visitar as nossas instituições públicas verá a situação de degradação em que elas maioritariamente se encontram. Quem puder visitar os banheiros das nossas instituições verá que são deploráveis; as bibliotecas carentes de materiais; publicações científicas do quadro docente das instituições são quase inexistente. Do ponto de vista daquilo que não é quantificável nos deparámos com uma série de problemas.

AG – Quais problemas?

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ND – Por exemplo, nós não temos dentro do nosso quadro docente, professores que tenham publicado teorias que hoje sejam aceites, respeitadas e estudadas internacionalmente. Grande parte do nosso quadro docente não publica em revistas científicas certificadas.  Grande parte dos critérios utilizados para o ingresso nas instituições do ensino superior são manifestamente ligados ao amiguismo e à vinculação partidária. É o cenário que a gente tem. Curiosamente, grande parte dos que ocupam as Reitorias e os Decanatos das instituições são pessoas indicadas pelo partido maioritário e dificilmente haveria liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade intelectual.

“…investimento em ensino, pesquisa e inovação é manifestamente invisível”

AG – Com este quadro que o professor acabou de mostrar agora sobre as universidade do país, será que podemos considerar que temos universidades quando não se produz pensamentos novos, nestas instituições?

ND – Por um lado, as instituições privadas tornaram-se em  um negócio rentável para os seus proprietários. As instituições públicas em sua grande maioria estão preocupadas apenas em apresentar número de graduados ao mercado. No rigor da palavra, estamos muito aquém daquilo que deveríamos considerar de universidade, porque nós não produzimos ciência! O que temos maioritariamente nas nossas instituições são funcionários, são professores e membros de direcção que preocupados maioritariamente em defender os seus próprios interesses. E, pior, temos em grande parte das nossas instituições de ensino as chamadas associações de estudantes. Elas estão aí com uma grande finalidade: atrair mais filiados [partidários e] por outro lado, intimidar os estudantes que não integrem aquele grupo hegemónico. Não só estudantes, assim como professores. Impedir que haja algum tipo de pensamento que vá na contra mão daquilo que é o pensamento hegemónico.

AG – Professor, qual é a comparação que faz entre a liberdade científica em Angola e a realidade de outros países que conhece?

ND – A nossa realidade é vergonhosa. A SADC recomenda que se destine cerca de 20 porcento do Orçamento Geral do Estado para o ensino. Nós destinamos menos da metade deste valor recomendado. E quanto ao investimento em ensino, pesquisa e inovação é manifestamente invisível, dificilmente nós teremos condições para competir com as outras universidades, como por exemplo a universidade de Pretória e outros da nossa região. Para termos uma ideia, nós não temos publicações, não temos livros, nem teorias inovadoras que são publicadas e discutidas em principais universidades. Em contrapartida as universidades Sul-africanas, por exemplo, no seu quadro docente têm professores internacionais de renome. Nós não temos nenhum nas nossas instituições. Para termos uma ideia, quando um professor defende uma tese de doutoramento pressupõe que apresente uma teoria inovadora.

AG – Uma teoria que deve ser publicada numa revista?

ND– Revista científica certificada. Deve ser publicada em livro e deve ser debatida entre os pares. Eu gostaria de conhecer os professores que têm doutoramento para que as apresentassem. E o caricato é que houve um provimento administrativo excepcional na carreira docente em que uma série de professores chegaram a professores catedráticos. O que é um professor catedrático? Quando nem sequer publica em uma revista. Nós temos colegas em várias instituições que nem sequer apresentam textos em conferências ou colóquios e têm a titulação de professores catedráticos.

AG – Se não temos cátedra, então o que dizer daquelas pessoas que afirmam ser catedráticos? Há aqui uma confusão que se faz em relação as expressões no âmbito da liberdade científica ou não há problemas nestas expressões ou estes conceitos?

ND Bem, o que se pode ver na verdade são indivíduos que ostentam títulos, mas que não correspondem a sua real capacidade intelectual.

AG – Ora, passemos agora para uma realidade que tem a ver com o ensino em Angola. Estamos a falar do ensino universitário e um pouco mais para baixo. Professor o nosso sistema de ensino permite criar condições para que os alunos possam por iniciativa própria promoverem a liberdade de pensamento e liberdade de expressão?

ND – Eu acredito que não. Nós temos um sistema de ensino que estimula o jovem ou a criança na verdade a serem meros reprodutores do conhecimento. Ele [o aluno] não está muito preocupado em ler, em interpretar o que lê e realizar um pensamento crítico em relação  àquele conteúdo que ele acabou de ler. Por esta razão, prevalecem no nosso sistema de ensino as cábulas. O aluno está preocupado em decorar, porque ele não é preparado para pensar criticamente. Por outro lado, grande parte das nossas instituições de ensino são carentes de laboratórios. Se o estudante não for estimulado a ter contacto com laboratórios e aulas práticas, dificilmente vai desenvolver habilidades práticas. O nosso sistema tem currículos que são manifestamente teóricos. As nossas aulas são muito teóricas. Por isso é muito comum entre nós sermos muito bons em falar e sermos débeis em realizar.

AG – Qual é a solução que pode avançar sobre este nosso sistema de ensino em relação a criação de condições para um exercício da liberdade científica começando já a partir do nível básico de ensino?

ND – Primeiramente, do ponto de vista governamental é preciso algum projecto de Governo para o efeito. A educação precisa ser prioridade. Nós vemos investimentos em diferentes áreas. Estamos muito preocupados com aquilo que é tangível, queremos construir escolas e não queremos construir o conhecimento e sobretudo de qualidade.

Nós somos domesticados a não questionar, e este processo começa em casa. Quando a criança questiona é necessário estimular. Aristóteles já dizia que o verdadeiro filosofo é a criança que começa por questionar tudo e o porquê das coisas, mas nós matamos essencialmente esta veia questionadora da criança e quando somos adultos somos domesticados, somos moldados, somos tornados militantes, partidarizados, incapazes de realizar qualquer tipo de pensamento crítico, porque no final se não for partidarizados não temos acesso a este ou aquele benefício.

AG – Com esta realidade que acabou de apontar é possível termos instituições capazes de permitir o exercício da liberdade de expressão e da liberdade científica?

ND – Eu tenho muitas dificuldades em acreditar que isto seja possível, porque as nossas instituições como disse anteriormente estão armadilhadas. Armadilhadas no sentido de terem indivíduos colocados em determinados pontos para evitar que pessoas que pensam livremente apresentem novas teorias e novas formas de ver o mundo.

AG – Professor, é possível termos por exemplo a liberdade ou um melhor desenvolvimento do país sem a liberdade, seja científica ou académica? Colocaria a questão de uma outra forma, a liberdade académica e científica pode proporcionar desenvolvimento ao país, de que forma?

ND – Nós temos pelo menos duas questões, quando falamos em desenvolvimento, se estivermos a pensar sobretudo do ponto de vista de desenvolvimento tecnológico, certamente a liberdade científica e a liberdade de pensamento são condições para a realização tecnológica. Mas, existem também outras formas de pensar o desenvolvimento, sobretudo o chamado desenvolvimento sustentável  e não manifestamente destrutivo dos nossos valores e do nosso modo de ser. É possível pensar também nesta perspectiva mas, como a ciência moderna nos possibilita o tal densenvolvimento tecnológico, a condição para o alcance deste desenvolvimento é exactamente o conhecimento científico e a liberdade científica. Infelizmente, na nossa realidade ainda não é possível se dizer que se faça ciência de facto em Angola.

AG – Ou seja, a questão da realidade social e política de um país tem muita relação directa com aquilo que se chama qualidade no exercício de liberdade científica ou a liberdade académica?

ND – Sem dúvida, dificilmente alguém que está preocupado tão-somente com o pão para o almoço estará preocupado em parar e reflectir sobre a realidade, investigar a realidade e produzir ciência. Até porque produzir um livro em Angola é uma tarefa hercúlea. Primeiro, o custo da produção. Segundo, o investigador ou se dedica a investigar e passa fome ou se dedica a leccionar para poder ter o seu sustento. Não há investimento, não há iniciativas governamentais ou iniciativas privadas no sentido de se fazer investigação e produção científica.

“se os indivíduos não são ensinados a exercerem a sua liberdade de expressão o que nós teremos (…) na esfera pública no âmbito do debate, será simplesmente uma mera reprodução do senso comum”

AG – Estamos a conversar com o Professor Nelson Domingos, é docente universitário, formado em Ciência Política, Filosofia, Teologia e também em Direito. Ora, vamos agora olhar para as questões sobre a esfera pública. Professor, a primeira questão tem que ver com a qualidade do debate público e a qualidade de um sistema de educação, é possível haver aqui uma relação entre a qualidade do debate na esfera pública e a qualidade de educação na perspectiva da liberdade de pensamento?

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ND – Sem dúvida. Se os indivíduos não são treinados a exercitar o seu pensamento, se os indivíduos não são treinados a investigar e produzir ciência, e se os indivíduos não são ensinados a exercerem a sua liberdade de expressão o que nós teremos literalmente na esfera pública no âmbito do debate, será simplesmente uma mera reprodução do senso comum e geralmente travestidos de diálogo científico, quando na verdade são proferidos por indivíduos que ostentam títulos que não correspondem a sua verdadeira capacidade e ouvidos por uma audiência manifestamente domesticada. Nesse contexto, não é possível falar em um debate público na esfera pública onde se produza um conhecimento que seja de facto eficiente capaz de transformar a sociedade.

AG – Como é que um cidadão comum vai distinguir os factos reais daqueles factos que são criados ou se me permite a expressão que manipulam a opinião pública, como é que o cidadão comum podem distinguir uma e outra para melhor se posicionar na sociedade olhando sempre para a questão da liberdade de pensamento, científica e também a esfera pública?

ND – Bem, o ponto de partida volta a ser a liberdade de pensamento do indivíduo. Quando lhe é retirado aquelas amarras para o exercício da liberdade de pensamento, ele tenderá a estar mais habilitado a exercer a crítica diante daquilo que lhe é apresentado por um lado, e por outro lado, outros mecanismos que podem possibilitar é necessariamente uma imprensa de facto livre, capaz de informar com verdade e não preocupada apenas com interesse particular de garantir emprego e outras questões. E uma formação sobretudo que seja capaz de estimular um indivíduo a desenvolver o pensamento crítico.

AG – Falou sobre a questão dos jornalistas no caso, profissionais que têm a missão de recolher e tratar as informações que sejam de interesse público mas há aqui a questão (e remeto em reflexão) a questão levantada por si no princípio desta conversa que tem que ver justamente com os limites e um destes limites é exactamente o segredo de justiça e estão ligadas ao exercício do jornalismo. Como é que o jornalista pode, numa sociedade como a nossa (a angolana) exercer plenamente a sua liberdade e seu direito de informar com estes condicionalismos? Porque levantou-se esta questão de que o jornalista precisa fazer melhor o seu trabalho e a questão que falou do princípio segundo o qual há esta imposição legal do segredo de justiça diante de uma situação em que o jornalista deve informar mas também tem que respeitar o segredo de justiça e como se pode posicionar no âmbito da sua liberdade e do seu dever de informar em relação a sociedade e em relação ao serviço público que presta a sociedade que é manter o público informado?

ND – A liberdade enfrenta exactamente esse paradoxo. Se por um lado ela é ausência desses limites para o seu exercício, por outro lado surge uma série de condicionamentos na medida em que ela pode violar o direito de outrem. O segredo de justiça é internacionalmente consagrado. Não há grandes questões, acredito que o jornalista pode informar até ao limite da sua actividade. No nosso contexto a grande questão é outra. A preocupação vai além da legalidade. Está ligada àqueles que instrumentalizam o chamado segredo de justiça, que instrumentalizam as instituições do Estado. Temos instituições controladas por pessoas que não têm interesse em informar, porque provavelmente têm algum tipo de “compromisso” e evitam que certas informações e assuntos sejam divulgados, sob o pretexto do segredo de justiça.

No caso angolano, temos uma série de jornalistas que são processados, são levados à tribunal e em várias situações não porque o segredo de justiça está em causa, mas porque aquelas pessoas investigadas detêm poder político, económico e militar capazes de coartar o direito à informação. A grande questão é esta.

AG – Ainda ligada a esfera pública. A Arquitecturas das Cidades, a forma como a cidade está construída pode promover ou não a liberdade, seja do ponto de vista da esfera pública até mesmo a liberdade científica?

ND – Sem dúvida. Imaginemos o seguinte: indivíduos com algum poder aquisitivo, com algum grau de escolaridade que residam a três ou quatro horas do local de trabalho, ao voltarem para casa não terão o tempo para reflectir sobre as questões inerentes à sociedade. Não terão tempo suficiente para se articularem enquanto comunidade e exercerem pressão sobre o governo. Não poderão organizar algum mecanismo para melhor estruturar a sociedade ou comunidade em que eles se encontram. Não é por acaso a forma como determinadas sociedades são organizadas.

AG – Ao olhar para o nosso cenário, em particular naquilo que é chamado de Centralidades. Temos cidades, estas novas Cidades em Luanda nós temos em particular o Sequele na zona de Cacuaco. Temos o Zango, uma nova zona de expansão, temos a Centralidade do Kilamba fora de Luanda têm outras também e são todas elas afastadas do centro e é no centro onde estão concentrados uma grande parte dos serviços, os decisóres públicos e tudo mais. Qual é o comentário que se lhe apraz fazer a propósito do cenário arquitectónico da Cidade de Luanda, numa relação claro, com a da liberdade de pensamento, a liberdade científica e académica e também a própria investigação científica?

ND – Certo, esse distanciamento retira em certa medida o tempo de reflexão, o tempo de leitura e investigação, porque o cidadão perde pelo menos 4 a 6 horas por dia ao se deslocar do trabalho para casa  e de casa para o trabalho. Em um cenário como este em que os cidadãos estão acomodados em lugares manifestamente afastados, quase não têm contacto com os seus vizinhos para se organizarem, dialogarem, reflectirem e conhecerem-se. O facto de o cidadão estar muito distante do local de trabalho, perde tempo, produtividade e qualidade de vida.

AG – Ou seja, há aqui uma grande contradição entre aquilo que se chama de miséria material, esfera pública e também naquilo que se chama liberdade em geral se olharmos para o facto de o cidadão não poder sentir ou nem sequer exercer a sua liberdade nas condições que determinadas cidades apresentam do ponto de vista da sua arquitectura?

ND – Parece intencional. O facto de alguns governos como nosso condicionarem cidadãos a situação de miséria material, lhe é retirado em grande medida o direito de exercer a liberdade de pensamento porque está preocupado apenas com o pão no dia seguinte.

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Há aqueles que residem mais próximos do local de trabalho, mas enfrentam problemas de falta de energia eléctrica e de água, dificultando o seu efectivo desenvolvimento intelectual.

 

“Liberdade pressupõe exactamente essa ausência de constrangimento para manifestação artística.”

 

AG – Olhando para esta questão e já na parte final da nossa entrevista. Como é que vê a liberdade de expressão versus liberdade artística. Qual é o seu comentário?

ND – Em Angola, temos uma liberdade de expressão que é controlada. Eu defendo a tese de que Angola experimenta um período de transição por transacção que é aquela transição negociada. Só que este processo deu lugar a chamada ditablanda. Um regime de alguma forma ainda autoritário, que dá alguma abertura e possibilita que os cidadão protestem, mas são claramente identificados e controlados. Em um contexto como este, a liberdade de expressão é praticamente inexistente. Quem tem direito à livremente se expressar é aquele que em certa medida não contraria as orientações do partido hegemónico e as directivas do governo.

Quanto à liberdade artística, continuamos no mesmo entrave.  Tivemos alguns exemplos de uma certa estátua colocada em um espaço público que foi rapidamente removida. Liberdade pressupõe exactamente essa ausência de constrangimento para manifestação artística. Tivemos situações de uma certa novela que foi retirada do ar. Então, não podemos falar ainda claramente sobre a liberdade artística.

AG – Se falarmos sobre questões ligadas a música?

ND – Sim a música.

AG Particularmente a música de intervenção social…

ND – Nós temos um histórico longo. No período pré-independência e no pós-independência, foram sendo produzidas músicas de orientação nacionalista. Estas musicas tiveram muito espaço até ao momento em que alguns daqueles músicos desagradaram a elite da época e foram retirados da cena, apesar de que algumas músicas começam a ser resgatadas. Vem surgindo há algum tempo algumas músicas de intervenção social, mas que não têm espaço na grande mídia. Estas não são geralmente consideradas pela elite como sendo produção artística. Em contrapartida, aquelas músicas que muitas vezes nada dizem no sentido de produzir um pensamento crítico, têm espaço e apoio governamental.

AG – Professor, em síntese qual é a relação que estabelece entre liberdade de pensamento, liberdade científica e esfera pública?

ND – A liberdade de pensamento é a condição para as demais liberdades. A liberdade de pensamento possibilita que o indivíduo desenvolva a sua capacidade racional, o que lhe permite desenvolver a liberdade científica. Afinal, a racionalidade é um dos requisitos da ciência.

O exercício da liberdade de pensamento e da liberdade científica pode assegurar a qualidade do debate na esfera pública. Em outras palavras, sem liberdade de pensamento e sem liberdade intelectual não é possível haver qualidade no debate. O que teremos será a mera reprodução de um palavreado fruto do senso comum.

AG – Muito obrigado professor Nelson Domingos. (…) por ter aceitado este convite, e estar aqui a falar a volta do tema liberdade de pensamento, liberdade científica, esfera pública e outros assuntos conexos a estas três questões.

ND Sou eu que agradeço a oportunidade e espero voltar mais vezes.

AG – Muito obrigado professor e até a próxima.

Perfil: Doutor em Ciência Política. Mestre e Licenciado em Filosofia. Licenciado em Direito. Licenciado em Teologia. Professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto. Autor do livro “Transição pela transacção: uma análise da democratização em Angola” e de diversos artigos e capítulos de livros.

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